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EUA: a Covid-19 tem marca de “raça” e de classe?

Afro-americanos são 30 por cento da população de Chicago, mas representam 55 por cento dos infetados e 68 por cento dos mortos por Covid-19. Latinos são 29,1 por cento da população e 45,8 por cento dos infetados em Nova Iorque. Políticos e epidemiologistas apontam para impacto desproporcionado da pandemia nas comunidades pobres.
mulher negra a limpar comboio
foto trensurb/flickr.com

Já morreram cerca de 13 mil pessoas nos EUA por causa da pandemia da Covid-19. Um número de mortos superior ao registado na China, conforme noticia o New York Times. O número de pessoas infetadas nos estados e territórios dos EUA é de pelo menos 397754 pessoas.

No mapa da pandemia, o Estado de Nova Iorque destaca-se pelo número de pessoas infetadas: são 130 mil casos e quase metade das mortes do país. O mayor de Nova Iorque Bill de Blasio comparou a tragédia ao furacão Katrina, afirmando que a crise pandémica é o equivalente a “vários Katrina”. A tempestade tropical de agosto de 2005 é ainda hoje não só um símbolo da catástrofe, mas também uma memória de como as desigualdades sociais multiplicam os efeitos das tragédias. A forma desigual como foram afetadas as pessoas de acordo com diferenças de classe e de "raça" foi objeto de estudo de investigadores como James R.Elliott e Jeremy Pais ou Kristen Lavelle. Nas desigualdades sociais e raciais, a Covid-19 também vai ser vários Katrina?

Chicago: negros americanos são 55% dos infetados e 68% dos mortos

Em relação a Nova Iorque ainda não há dados definitivos, mas em Chicago os números já foram revelados. Na segunda-feira, a mayor de Chicago Lori Lightfoot fez uma declaração pública de alerta sobre a disparidade racial do impacto da pandemia do novo coronavírus. E apelou a que todas as autoridades públicas façam o registo do marcador etnorracial para um melhor conhecimento e combate à desigualdade.
 

Embora sejam apenas 30 por cento da população de Chicago, os americanos negros são 55 por cento dos infetados e 68 por cento dos mortos pela Covid-19, conforme registos feitos pelo Departamento de Saúde Pública de Chicago. Este registo de dados mais precisos sobre as vítimas do novo coronavírus são uma excepção. E, em diferentes pontos dos EUA, há especialistas que procuram fazer aproximações com os dados disponíveis.

Esta desigualdade não é exclusiva da cidade de Chicago. Conforme notícia do The Atlantic, no condado do Milwaukee, onde a população negra corresponde a 28 por cento dos residentes, quase metade do número total dos infetados e 73 por cento (33 dos 45) dos mortos pela Covid-19 eram negros. Ao nível da totalidade do Estado do Wisconsin metade dos mortos por Covid-19 são negros, quando apenas 6 por cento da população é negra.

Investigadores e políticos querem dados com “raça” e classe

Marcus Plescia, diretor médico da associação representativa das agências de saúde pública dos EUA (Association of State and Territorial Health Officials) declarou: “Estou preocupado que este seja outro caso em que haverá uma enorme diferença entre pessoas mais ricas e pessoas pobres, e haverá uma diferença em relação às pessoas de cor e a quanto elas sofrem”. De acordo com as informações de Plescia, citado pela NBC News, até ao momento apenas nove dos 50 estados forneceram dados etnorraciais:  ConnecticutIllinoisLouisianaMichiganMinnesotaCarolina do NorteCarolina do SulVirginia e Washington, D.C.. Uma informação que considera importante: “temos um legado muito antigo de discriminação e racismo no nosso país e não vamos superar isso rapidamente".

Também o epidemiologista Usama Bilal está preocupado com o viés racial que existe ao nível da saúde. E também considera necessária recolha de dados quer de classe, quer etnoraciais. Bilal analisou o número de testes aplicados em cada código postal, o que permite obter dados sociais e etnorraciais por aproximação. Citado numa artigo do jornal The Philadephia Inquirer, o professor Bilal sublinha que só registou se estas comunidades estavam a fazer os testes, tendo concluído por uma taxa mais baixa de testes aplicados às comunidades mais pobres. No entanto, apesar dos seus dados serem provisórios, o epidemiologista alerta para que os dados de Nova Iorque e de Barcelona indicam que “o número de positivos tende a ser mais alto nas áreas mais pobres.”
 

Também o professor Ibram X. Kendi, diretor do Centro de Investigação e de Políticas Antirracistas, tem defendido a pesquisa de dados etnorraciais para demonstrar aquilo que todos suspeitam: “o vírus está a ter um impacto desproporcionado em algumas comunidades”. Esse impacto é sentido de tal forma que a African American Mayors Association, associação representativa de cerca de 500 afro-americanas e afro-americanos que são presidentes de municípios, escreveu a vários congressistas dos EUA a alertar para “o impacto díspar que a Covid-19 vai ter na comunidade afro-americana".

De acordo com dados do Pew Center Research, o sentimento de insegurança perante o avanço da pandemia reflete-se nos diferentes grupos demográficos: 46 por cento das pessoas negras e 39 por cento das latinas vêm o coronavírus como a maior ameaça à sua saúde. Quando se considera apenas a população branca essa preocupação cai para 21 por cento. A análise que o professor Kendi faz dos dados disponíveis sobre os efeitos da pandemia da Covid-19 sugere-lhe que esta esteja a atacar mais os grupos demográficos classificados como people of color (pessoas afro-americanas, latino-americanas, asio-americanas).

Latinos são 45,8% dos infetados em Nova Iorque

O professor Kendi fez a análise relativamente à população de Nova Iorque, apesar da opacidade dos dados. De acordo com os censos, a população da cidade de Nova Iorque é 32,1 por cento branca, 29,1 por cento latina, 24,3 por cento negra, e 13,9 por cento asiática. Analisando por códigos postais, o investigador verifica que os bairros com maior prevalência de infeção com o novo coronavírus traduzem uma sobrerrepresentação de pessoas latinas (45,8 por cento) e asiáticas (23,4 por cento) e uma sub representação de pessoas brancas (21,2 por cento) e negras (8 por cento). Já no Estado do Michigan, por exemplo, onde 14,1 por cento da população é negra, 40 por cento das pessoas mortas pela Covid-19 são negras.

Outro exemplo gritante da disparidade demográfica sugerida pelos dados estatísticos é Orleans Parish, Nova Orleães, que tem 60,2 por cento de população negra e está com uma taxa de infeção de 1268,3 por cada 100 mil pessoas e uma taxa de mortalidade de 47,5 por cada 100 mil pessoas.

Qual a razão destas disparidades?

Num tempo em que as autoridades de saúde recomendam a distância social e o isolamento para fazer frente à evolução da pandemia, há muita gente que continua a ter de trabalhar e corre mais riscos. São chamados “trabalhadores essenciais” e não são apenas compostos por pessoal médico e de enfermagem. Como analisa o artigo da rádio de Filadélfia Whyy-FM, há outros profissionais continuam ativos: responsáveis de manutenção, assistentes pessoais de saúde, assistentes sociais, empregados de mercearias, trabalhadores  dos restaurantes de fast food, trabalhadores das entregas.

Muitos desses trabalhadores da linha da frente são pessoas negras ou latinas que, por razões económicas, não tinham outra opção senão continuar a trabalhar. Essa situação expõe as comunidades a que pertencem a um risco maior de contágio. Um risco que é agravado pelo facto de muitos destes trabalhadores não terem possibilidade de cuprir o distanciamento social ou entrar em auto-isolamento, em caso de suspeita de infeção, nomeadamente devido à grande densidade populacional dos bairros mais pobres e à frequente sobrelotação das habitações.

 

Estes aspetos denotam um cruzamento entre os fatores classe e "raça" na pandemia da Covid-19. Aos que dizem que pode ser considerada apenas a classe, esquecendo o fator etnorracial, o professor Kendi responde com ironia: “talvez eu deva ignorar o fato de que uma mulher negra pós-graduada tem maior probabilidade de perder o bebé do que uma mulher branca com menos de oito anos de escolaridade. Talvez a raça não importe nos resultados de saúde".

Os tipo de dados exigidos pela mayor de Chicago fazem falta em todo o país. O professor Kendi afirma taxativamente: “não temos dados nem sobre a classe nem sobre a raça das vítimas, muito menos sobre os dados interseccionais que nos permitiriam avaliar, digamos, se mulheres asiáticas pobres estão a morrer a taxas mais altas ou mais baixas do que mulheres brancas pobres; ou se as elites brancas e as elites latinas estão a ser infetadas a taxas semelhantes ou diferentes”. E conclui que “nós simplesmente não sabemos.” Esse desconhecimento devido a falta de dados gerais, no entanto, não apaga o seguinte facto: “repetidas vezes, um Estado ou município fornece dados raciais. Repetidas vezes, esses números revelam uma disparidade racial considerável. Repetidas vezes, os americanos negros estão sobrerrepresentados entre os infetados e os mortos.”

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