“Estamos a assistir a um massacre de inocentes no Mediterrâneo”, denuncia médico italiano

27 de July 2018 - 0:01

Pietro Bartolo, médico em Lampedusa, fala sobre os “campos de concentração” na Líbia, e as violações, torturas e mortes que lá ocorrem, e desmonta o “artifício retórico” de que estamos perante uma “invasão” de migrantes. Bartolo afirma ter “vergonha da resposta do governo italiano”.

PARTILHAR

Num artigo de opinião publicado no Guardian, o médico italiano deixa um apelo: “Não podemos deixar que essas mortes de migrantes continuem”.

Pietro Bartolo, médico na pequena ilha de Lampedusa, no meio do Mediterrâneo, refere que, “nas últimas décadas, a Itália mostrou como poderia honrar a humanidade, dando à palavra 'bem-vindo' um novo significado, sem jamais construir muros ou colocar arame farpado ao longo das suas fronteiras”, atos esses que “foram reconhecidos por outros países, pela UE, e pela gratidão de milhares de pessoas cujas vidas salvamos ao longo dos anos”.

Bartolo sublinha, contudo, que deixou de sentir orgulho em ser italiano a partir do momento em que o governo do seu país, “negando tudo o que tinha sido feito anteriormente, decidiu estabelecer um acordo com grupos líbios em Tripoli - o que significava, direta ou indiretamente, com traficantes de pessoas”.

“Ainda me lembro como, em 2016, o meu país aderiu vigorosamente à indignação provocada pela decisão da Europa de financiar o presidente da Turquia, Erdoğan, com 6 mil milhões de euros, para que ele ignorasse ou interrompesse os fluxos migratórios da Síria. A posição da Itália era então sacrossanta. Desde então, tem sido inexplicavelmente negada em ações”, escreve o médico.

De acordo com Pietro Bartolo, as condições dos campos de refugiados da Líbia, que permitiram reduzir em 70% o número de chegadas às costas italianas, são manifestamente piores do que as que se registam na Turquia: “Na Líbia, as pessoas são detidas em campos de terror, onde são violadas, torturadas e mortas”, descreve, acrescentando que os migrantes que chegam à sua clínica, “de helicóptero ou barco a motor, estão perto da morte, com queimaduras, ferimentos graves provocados por golpes, correntes elétricas na cabeça ou genitais, ferimentos a bala e cortes de lâmina de barbear”.

“Quase sempre estão desidratados, em estado de hipotermia e, assim, desnutridos, estão à beira do colapso”, continua, sinalizando que estamos perante verdadeiros “campos de concentração”.

“Está em andamento uma operação de 'distração em massa'”

Pietro Bartolo denuncia também a “operação de 'distração em massa' que está em andamento” e que “é inteiramente sustentada por um artifício retórico e habilidoso”.

Conforme assinala o médico, “em vez de pessoas - um termo que nunca é utilizado - ouvimos sobre migrantes, refugiados, requerentes de asilo”, o que consiste numa tentativa de omitir que o que está em causa é “a vida de seres humanos, mulheres, homens e crianças, pessoas como nós, com os mesmos sentimentos, os mesmos planos, os mesmos sonhos” e que “só nasceram no lugar errado”.

Em Itália, uma forma permanente e muito perigosa de campanha eleitoral está em andamento, e os danos sociais e culturais que ela representa são incalculáveis.

“Em Itália, uma forma permanente e muito perigosa de campanha eleitoral está em andamento, e os danos sociais e culturais que ela representa são incalculáveis. É como uma guerra. Os pobres contra os pobres. Os excluídos contra os excluídos. O último contra o último. Eu apelido isso de 'terrorismo dos media': distorcer a realidade para assustar as pessoas e ganhar os seus votos, sem pensar na bomba social que tal possa desencadear”, escreve Bartolo.

Não existe nenhuma “invasão” de refugiados

O médico frisa que “essa retórica não tem nada a ver com a realidade”: “O ano mais desafiador para as chegadas às nossas costas foi em 2016, quando pouco mais de 180 mil pessoas desembarcaram. Recuso-me a acreditar que 180.000 pessoas são uma invasão, muito menos uma invasão de época: 180.000 migrantes num país de 60 milhões - vá lá, não sejamos ridículos”.

Pietro Bartolo recorda quando, a 3 de outubro de 2013, 368 pessoas, muitas das quais crianças - a poucas centenas de metros da salvação -, perderam a vida.

“Naquela época, conversei com muitos políticos em muitas comissões que vieram à ilha para conversar com seus habitantes e aqueles que fizeram o melhor para salvar vidas e recuperar corpos. No entanto, assim que deixaram a ilha, os políticos apagaram-na da memória”, aponta Bartolo.

“Proteger as pessoas e não as fronteiras”

O médico avança, no entanto, “que não podemos colocar toda a culpa na Itália, na Grécia ou na pequena Malta”.

“O fenómeno da migração (por favor, não se refira a problema) diz respeito a toda a Europa. Todos têm o dever e a responsabilidade de ajudar, acolher e dar assistência a essas pessoas - sem exceção. As costas da Itália, Malta e Espanha são as costas da Europa. A UE foi fundada para criar um continente unido, baseado em valores de civilidade, coexistência e, acima de tudo, respeito pela vida humana”, escreve.

Para Bartolo, “ que está a acontecer agora na Líbia e no Mediterrâneo é um massacre de inocentes”.

Os direitos humanos são negados pelos mesmos países europeus que exploraram, roubaram e escravizaram esses povos e colonizaram as suas terras.

“Os direitos humanos são negados pelos mesmos países europeus que exploraram, roubaram e escravizaram esses povos e colonizaram as suas terras. A Itália é um país em processo de envelhecimento, num continente que está a envelhecer. Os italianos agora têm menos filhos e nossa sociedade começou a declinar inexoravelmente. Por isso, sugiro que 'aproveitemos' - mais uma vez - essas pessoas: mas na direção oposta. Deixem-nos trazer a sua cultura, as suas tradições, os seus filhos, o seu legado. Vamos misturar-nos com eles, com respeito mútuo e bom senso. Eles far-nos-ão crescer, tornar-se-ão mais fortes, melhores”, adianta o médico.

Pietro Bartolo deixa um apelo “aos europeus em todos os lugares, de leste a oeste - e em particular àqueles que hoje se recusam categoricamente a receber outros e querem fronteiras fechadas: não se deixe enganar pelas mentiras de políticos”.

“Pensem com a vossa própria cabeça - e especialmente com o coração - porque somos todos cidadãos do mundo e todos temos o direito de viver uma vida digna. O lema de Lampedusa está escrito num grande mural encontrado no cais da ilha Favaloro. Estas palavras aparecem: 'Proteger as pessoas e não as fronteiras'".


*Pietro Bartolo, médico italiano, é coautor, com Lidia Tilotta, de Lampedusa: Porta de entrada para a Europa