You are here

Está aí alguém?

A bola, feita de jornais, com que nos entretínhamos, podia ir parar a outro compartimento, levando umas palavras escritas. Não era fácil. Eles evitavam que os espaços contíguos estivessem ocupados e havia que aproveitar a distracção do guarda e, nas costas dele, firmar bem o salto e a pontaria. Por Mário de Carvalho.

 

O esquerda.net tem publicado um testemunho por dia de resistentes antifascistas sobre o seu quotidiano na prisão e/ou na clandestinidade e as estratégias que encontraram para combater o isolamento.

Todos os testemunhos publicados até ao momento estão reunidos aqui:

Confinamento(s) em tempo de ditadura

Projeto organizado por Mariana Carneiro.


Está aí alguém?

Quando fui preso levaram-me de imediato para a sede da PIDE (então crismada de DGS – Direcção-Geral de Segurança), na Rua António Maria Cardoso. Começava uma longa sessão de seis dias de privação do sono. A primeira. Passado esse período recolhi a Caxias, reduto Norte, a uma pequena cela individual, com casa de banho, colchão de tropa e uma bancada amovível. Era clara, limpa e moderna, porventura ainda não estreada. Mas, por mais duas vezes, ali ouvi a cominação terrível, vinda do guarda prisional: «prepare-se para ir a Lisboa». Era o sinal de que um novo período de tortura ia começar. Finalmente, deixaram-me em paz, entregue às rotinas de Caxias. O meu processo estaria “pronto” para tribunal.

Apurei que não havia ninguém nas celas a meu lado. Nesse período a lotação da cadeia estava folgada. Não duraria muito…

Foram-me consentidos os livros de Direito que a minha família lá entregou e materiais de escrita. Noutros casos não teria sido assim. Mas acho que devo à persistência e insistência enérgica do meu pai e da minha mulher, imparáveis, batendo a todas as portas, esta regalia rara dos livros técnicos e da esferográfica.

Resolvi então ir fazendo requerimentos, no impresso que a cadeia fornecia para os «pedidos». Fui confrontando todos os procedimentos a que vinha sendo submetido, tortura do sono à cabeça, com as próprias normas do regime legal em vigor, designadamente o constante da «Reforma Prisional», exigindo sempre, a final, a reposição da legalidade. Era uma forma, um tudo-nada provocatória, de resistir.

Esses requerimentos, muito protocolares e fundamentados, não foram poucos e devem existir ainda por aí em qualquer lado, a não ser que tenham sido deliberadamente destruídos… Não dei por eles na Torre do Tombo. Encontrar-se-ão, porventura, em qualquer acervo de Caxias.

De resto, entretinha-me a escutar os ritmos da cadeia, o abrir e fechar de gradões e portas, a tal ou tal hora, procurando descortinar quem poderia eventualmente estar preso noutras celas daquele corredor. Do lado da janela gradeada, lá em baixo, fazendo os cem passos no espaldão, um guarda-republicano, rendido de tantas em tantas horas, também era uma entretenga.

Nas espaçadas visitas da família, em cubículos vidrados, com a assistência de um pide, era o cabo dos trabalhos passar uma informação: que determinada pessoa devia acautelar-se, por exemplo. Meias palavras, subentendidos, afinidades de espaço e tempo, conotações, tudo era usado, de viés, enquanto o pai, para lá do vidro que nos separava, procurava distrair o pide.

Inopinadamente, fui transferido para o rés-do-chão. E eis-me sozinho, no meio de vários beliches numa sala destinada a colectivos de mais de oito presos, com uma grande mesa ao centro.

Mas agora tinha companheiros na sala do lado. E logo os toques na parede começaram. De início, um toque de chamada, prolongado, fantasiado mesmo, e depois, a cada letra, o número de toques correspondente. Dois toques rápidos e secos eram o sinal de remate. Com a prática já nem precisávamos de enunciar as palavras completas. Adivinhávamos por antecipação. Até brincávamos. Acontece que na sala contígua estavam precisamente pessoas com quem havia trabalhado clandestinamente e de quem nunca antes soubera o nome. O guarda, de vez em quando abria a porta, com um pretexto qualquer. Disfarçava. Eu era um senhor doutor. Mais sabia ele… Mas, numa ida ao recreio um deles sonegou o coto de lápis com que eu atacava a parede. Arranjei outro.

Por cima do edifício, no recreio, formado de compartimentos ao ar livre sobre que circulava, atrás dum muro, um guarda vigilante, também se tentavam as aproximações. A bola, feita de jornais, com que nos entretínhamos, podia ir parar a outro compartimento, levando umas palavras escritas. Não era fácil. Eles evitavam que os espaços contíguos estivessem ocupados e havia que aproveitar a distracção do guarda e, nas costas dele, firmar bem o salto e a pontaria.

Mais tarde, já com outros companheiros na mesma sala, alguns mais experimentados, fiquei a saber que as formas de contacto poderiam ser mais sofisticadas e que as que eu até aí usava eram até bastante primitivas.

Mas mesmo passados todos estes anos, não me considero autorizado a desvendar aquilo de que, então, me apercebi.

Mário de Carvalho
27-04-2020

Comentários (1)