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Entrevista a Rui Simões: “Sou um homem de múltiplos exílios”

Considera-se um refugiado da guerra colonial e militante de causas que dignificam as pessoas. O cinema entrou na sua vida por mero acaso mas acabou por lhe dar um sentido ajudando-o a desbravar caminhos até então desconhecidos. Por Pedro Ferreira.

Avesso a todas as formas de poder embrenhou-se no Maio de 68 e após o 25 de Abril regressou a Portugal para estar presente na festa da liberdade sem, no entanto, deixar de tentar compreender as contradições de uma revolução que nunca mais deixou de o fascinar.

Abandonou Portugal em 1966 apenas para não ser obrigado a ir para a guerra colonial?

Foi por essa razão que no Verão desse ano decidi sair de Portugal. Costumo dizer que sou um exilado de guerra e não tanto um exilado político.

Mas a guerra teve uma forte componente política e foi até um dos factores que levaram à queda do regime.

Mas a minha saída prende-se sobretudo com o facto de não querer ir para a guerra.

Era um jovem pouco politizado?

Obviamente que não concordava com a política colonial nem com a opressão do regime. Sentia essas realidades e por isso quis-me ir embora. Mas não estava envolvido em nenhum movimento de contestação ao regime.

É estranho vindo de um cineasta português que tem uma obra com um cunho político muito vincado.

Mas nessa altura não tinha atrás de mim um historial de lutas políticas, de militância antifascista.

Porquê?

Talvez porque esta estava muito centrada nos meios académicos e intelectuais e eu não fazia parte deles.

Começou a trabalhar muito cedo.

Na sequência de um conflito familiar mais concretamente com o meu pai, quis tornar-me independente, ter o meu próprio dinheiro e assim aos 13 anos entrei no mundo do trabalho.

A fazer o quê?

O que um miúdo da minha idade podia fazer. Trabalhei no comércio, em cafés, restaurantes...

Ainda longe do cinema.

Gostava de cinema como espectador. Nunca imaginei que muito mais tarde iria para uma escola estudar realização.

Foi um encontro fortuito?

Completamente. Eu estava a viver em Bruxelas e uma amiga minha disse-me que queria ir fazer um exame a uma escola de cinema. E eu disse que podia ir com ela.

Não havia aí já um desejo ainda que escondido?

Não. Aliás foi a minha atitude totalmente desprendida durante o tempo que estive na escola que levou à minha entrada na mesma.

Convenhamos que essa situação é muito cinematográfica.

Diria totalmente cinematográfica. Na altura quando o professor perguntou se havia mais alguém para na sala eu levantei o dedo mas sem qualquer intenção de ir fazer teste.

E levantou o dedo porquê?

Para ele saber que ainda havia gente na sala. Depois o professor veio falar comigo e perante a minha recusa convenceu-me a ir mesmo porque essa atitude de desprendimento tinha tudo a ver com o cinema.

Não foi encenada?

De maneira nenhuma. Aliás devo dizer que nunca tinha pensado em nada de especial para a minha vida profissional.

Não tinha algo que gostasse de vir a fazer?

Estava na música, nos Sheiks e fui eu que preparei tudo para fugirmos à guerra. Por isso antes de chegar a Paris e depois a Bruxelas estive em Madrid.

Passada essa fase de indefinição começa a ganhar forma o Rui Simões, realizador?

Começo a estudar cinema e este acaba por definir o meu percurso profissional que se estendeu até aos dias de hoje.

E aí que surge também a política.

O meu envolvimento político começa com o Maio de 68. Entrei para a Internacional Situacionista e era uma espécie de “internet viva” porque fazia a ligação entre grupos autónomos para haver um canal de comunicação que desse a conhecer as experiências de luta que iam acontecendo, algo que era muito importante já que a informação não circulava nos média.

Entretanto, é expulso da escola de cinema?

Fomo todos porque fizemos um filme em simulávamos um sequestro aos professores para exigir a cogestão da escola.

Um ato revolucionário.

Acima de tudo, a expressão de um desejo de mudança relacionado com o ar dos tempos que se viviam em alguns sítios da Europa. A revolução depois da festa, como costumo dizer.

E depois da expulsão?

Fui para outra escola

E Portugal estava cada vez mais longe no seu imaginário?

Foi sempre o meu país e o exílio nunca é fácil. Tinha um passaporte da ONU e família em Portugal e alguns até estavam presos em Caxias mas para lhe ser sincero não acreditava na mudança do regime.

E havia alguma razão para tanto ceticismo?

Aquilo que se passava em Portugal não indiciava pelo menos para mim qualquer mudança. Nem a doença e morte de Salazar alteraram a situação. Ainda foi preciso esperar mais alguns anos.

Mas o regime já dava sinais de grande fragilidade.

Eu não me apercebi disso. E penso que a maior parte da população também não tinha essa ideia.

Mas aconteceu.

Eu estava a olhar para uma velha televisão a preto e branco e senti-me confuso. No início e à distância era difícil perceber com rigor o que realmente se estava a passar.

Regressa a Portugal em Maio desse ano.

Era impossível resistir à vontade de voltar. Se a isso somarmos o facto de estar longe da família e de a minha situação em Bruxelas não ser lá muito feliz, estão encontradas as razões.

Mas quando chega à fronteira ainda tem problemas.

Disseram-me que eu tinha de cumprir o serviço militar. Eu disse logo que nunca o faria e que voltava a ir-me embora.

Como é que se resolveu a situação?

Fui ao departamento de recrutamento em Lisboa e lá começo aos gritos a dizer que vou fugir outra vez. Depois apareceu um médico que me disse que a situação ia ser resolvida.

E foi?

Ainda teve algumas trapalhadas. Os refratários e desertores tiveram de se unir, fomos recebidos pelo Vítor Alves porque nada era óbvio e eu quis vir para cá em condições de liberdade total. Não aceitava situações dúbias.

Entretanto, surge o seu filme “Deus, Pátria, Autoridade”.

Fiz esse filme com o objetivo de explicar a muita gente o que tinha sido o fascismo.

As pessoas não sabiam?

A maior parte não. Sem arrogância posso até ir mais longe e afirmar que quase ninguém entendia nada.

E os opositores, as organizações antifascistas e os partidos viviam também nessa ignorância?

Falo do povo e não dos meios políticos e intelectuais. Mas esses eram uma minoria com alguma dificuldade em comunicar de uma forma clara com os operários, os burgueses e até a classe média.

Está a falar da ressaca depois da festa inicial?

Esse filme - que vai buscar o título à ideologia em que assentou o Estado Novo e foi sempre muito cara aos regimes fascistas – tem entrevistas de rua em que as pessoas só dizem disparates porque estão totalmente desinformadas sobre a nova realidade do país.

Como é que caracteriza “Deus, Pátria, Autoridade”?

Sucintamente posso dizer que fiz esse filme também para mim porque quando saí do país era um ignorante e só lá fora recebi informação que me permitiu entender determinadas realidades. Como em Portugal não se passou nada durante o meu exílio as pessoas continuaram nesse vazio que as impossibilitava de perceber o que estava a acontecer.

 Mas muitas tinham consigo o sofrimento, a pobreza e a violência de se verem obrigadas ao silêncio sob pena de sofrerem represálias.

As pessoas estavam à espera que lhes dissessem como é que funcionava todo este jogo, desde a descolonização ao fascismo e por isso lá estão as imagens de Salazar, Cerejeira, Marcelo Caetano e Silva Pais. Havia uma avidez de informação e esta era fraca e muito dispersa.

Considera que o filme atingiu os objetivos?

Penso que sim. Foi um sucesso e mais importante do que isso julgo que só o cinema consegue reunir em hora e meia ou duas essa informação porque é preciso não esquecer que o filme cobre um período que vai do 5 de Outubro de 1910 ao 25 de Abril de 1974.

Anos mais tarde realiza o “Bom Povo Português”  onde narra o período entre o 25 de Abril e o 25 de novembro.

Foi um período muito efervescente, ideologicamente muito duro mas vital para perceber a História recente de Portugal.

E depois dele o Rui Simões quase desaparece do mundo do cinema português.

Regresso uma vez mais ao exílio e estou 22 anos sem ter um financiamento para fazer um filme.

Foi proscrito?

Pergunte ao senhores que mandam e à Igreja. Fui fortemente penalizado, claro que fui, não tenho dúvidas disso.

Alvo de censura já em democracia. Não acha estranho?

Não até porque ainda hoje sou vítima desse pensamento paroquial e mesquinho que caracteriza o poder e sobretudo aqueles que gravitam à sua volta.

Não acha que é perigoso o fosso que existe entre eleitos e eleitores? Isso não abre caminho aos populismos que todos sabemos onde vão desembocar?

Eu não tenho um discurso antipoder, não gosto é do poder. Mas gostava de saber porque é que os meus filmes nunca são financiados.

Não lhe dizem nada?

O poder tem o poder de nada dizer. Assim, quando não sou confrontado com o silêncio dizem que eu não tenho experiência de ficção.

Os temas que escolhe para os seus filmes são incomodativos?

Expor as feridas de uma sociedade nunca é agradável.

Nem as democracias resistem à lógica clientelar?

As clientelas existem sempre e se eu andasse de braço dado com o poder tinha seguramente outro tratamento.

Mas o poder não tende a desvalorizar a cultura?

Se pudesse vivia sem ela.

Mas não a pode dispensar?

Não é conveniente porque de vez em quando é preciso dar um ar da sua graça.

Um show off mediático?

Na maior parte das vezes diria que sim. Até para disfarçar uma certa ignorância que pulula nos gabinetes onde se tomam as decisões.

Está a dizer-me que há muito brilho nos salões do poder que ofusca a capacidade de olhar para a realidade?

A volúpia dos lustres e das passadeiras toldam o olhar daqueles que deviam estar mais atentos à realidade.

E não vê diferenças entre a esquerda a direita?

Claro que sim. A direita só olha para o mundo da finança. É aí que estão os seus interesses. A esquerda tem outro tipo de responsabilidades em relação às pessoas. Mas há sempre o risco do abastardamento.

Como é que analisa os défices culturais que persistem no país?

As verbas destinadas para a cultura são irrisórias e a escola não estimula os jovens.

O ensino tem as “costas largas”.

Tenho muito respeito pelos agentes do ensino, nomeadamente pelos professores mas os programas escolares estão desatualizados. Não concebo, por exemplo, que não existam cadeiras relacionadas com os audiovisuais. Se eles já são o presente, como é que estaremos no futuro se esta situação não for corrigida? Além disso é preciso que as escolas eduquem os alunos para estes irem ao teatro, à dança, ao cinema.

Para não ser “riscado do mapa” como disse numa entrevista tem imensos projetos com os países de expressão oficial portuguesa.

Tenho trabalhado com gente de muita qualidade ligada ao cinema em Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde. Surgiu agora a oportunidade de trabalhar com uma realizadora indiana. A minha relação com o Brasil já é mais antiga e consistente.

Estou no fundo a revistar o antigo império português depois do seu desaparecimento. É algo que me interessa sobremaneira e se me perguntar porquê a única resposta que lhe posso dar é que se calhar isso fica a dever-se ao facto de não ter feito a guerra colonial.

Simultaneamente, permite-me refletir sobre a minha condição de cidadão português.

E por cá?

Tenho há anos um projeto para um filme sobre o Marquês de Pombal e gostaria também de trabalhar sobre a história de Annie Silva Pais que viveu em Cuba e era filha do último diretor da PIDE. A partir dessa história criar uma ficção e estabelecer um paralelismo entre o fim do comunismo e o fim do fascismo.

Acha que vai conseguir financiamento?

A única coisa que sei é que tenho de continuar a trabalhar todos os dias para viver. Esta entrevista acaba de me dar uma ideia: se calhar ainda vou fazer um filme sobre os múltiplos exílios a que tenho sido sujeito.

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