Entrevista a Naomi Klein: Ao ataque contra Trump

17 de December 2017 - 13:27

Numa entrevista a propósito do seu mais recente livro, No Is Not Enough (Não Basta Dizer Não, em tradução livre), Naomi Klein explica como a marca “Donald Trump” é o último sonho capitalista e um perfeito exemplo de exploração da crise em benefício da elite.

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Naomi Klein: Ao ataque contra Trump
“O facto de um presidente [Trump] se transformar em marca e lançar-se ao mercado, confundindo essa marca com a política presidencial, isso é algo inédito”.

Há dez anos, no seu livro A Doutrina do Choque, demonstrou que o capitalismo do desastre se aproveita de grandes traumatismos para aplicar as reformas económicas ou sociais, apresentadas como terapias de choque. Com outro livro, This Changes Everything (Isto Muda Tudo, em tradução livre), analisa por que a crise climática é o mais recente, até agora, objeto deste género de exploração. O seu novo ensaio, No Is Not Enough (Não Basta Dizer Não, em tradução livre), aborda a estratégia de Donald Trump. O presidente dos EUA é produto da doutrina do choque ou é o próprio produtor de choques?

O seu método consiste em produzir comoção várias vezes por dia, através do twitter e de outros canais. Todo o mundo aguarda o novo choque, a última declaração provocadora. E isso ajuda o seu programa económico, o qual avança nos bastidores, de forma bastante discreta, graças a estas distrações. Ele está rodeado por executivos da Goldman Sachs e a sua política económica foi basicamente terceirizada, entregue a eles. Não há uma dissociação dos seus próprios interesses de empresário privado. O mesmo vale para o grupo de pressão dos combustíveis fósseis, muito arraigado no entorno presidencial; este grupo de pressão é controlado por Scott Pruitt, a quem Trump entregou a gestão da Agência Nacional de Proteção Ambiental (EPA). Ele acaba de abandonar o projeto de energia verde, a principal medida de Obama a respeito dos acordos de Paris sobre o clima. E isso funciona, porque toda a atenção da imprensa se concentra no circo de Trump.

Mas ele é igualmente um produto da doutrina do choque, desde os anos 70 do século passado. O seu primeiro grande golpe como promotor imobiliário, quando se desligou do amparo paterno, consistiu em adquirir um hotel em condições extraordinariamente vantajosas, praticamente isento de impostos, pois a cidade de Nova York estava a um passo da falência, quase como a Porto Rico de hoje, e entregue às mãos de gestores privados, mais do que às dos representantes democraticamente eleitos. É um perfeito exemplo de exploração da crise em benefício da elite.

Como definir a marca Trump?

A novidade de Trump é que ele representa um modelo empresarial que existe somente há duas décadas. Outros dirigentes já haviam usado estratégias de marca ao estilo empresarial, como Tony Blair, ao rebatizar o Partido Trabalhista britânico como “Novo Trabalhismo”, ou ao lançar o lema CoolBritannia. Mas o facto de um presidente se transformar em marca e lançar-se ao mercado, confundindo essa marca com a política presidencial, isso é algo inédito.

Noutros tempos, as empresas apresentavam-se como fabricantes de produtos ou provedoras de serviços, e eram esses produtos ou esses serviços que criavam uma identidade, para se distinguir da concorrência. Quando escrevi (o livro) No Logo, há 20 anos, descobri um novo género de empresas que vendiam não mais um produto ou serviço, mas sim uma identidade, um modo de vida. Para essa nova tribo comercial, a produção era o próprio marketing e a identidade da marca fundia-se na cultura, através da referência ao desporto ou à música, inclusive à revolução.

Trump promoveu a ideia de riqueza pela riqueza, a ideia de que todos buscamos ser vencedores num mundo de perdedores, uma luta para ser o predador ideal. E para ele, o significado supremo do poder é o poder de abusar das mulheres.

A Nike foi uma empresa pioneira nesse sentido: não tinha sequer vontade de possuir as suas próprias fábricas. É o que chamei de “marcas vazias”. Essas empresas estavam em toda a parte e em nenhuma ao mesmo tempo, indiferentes à sua mão de obra, terceirizando sistematicamente a sua produção. A Nike vende a ideia de transcendência através do desporto, a Starbucks vende a ideia de uma comunidade, a Apple vende a ideia de revolução. Trump aplica esse processo: lançou-se no setor imobiliário graças à sua fortuna familiar, mas rapidamente parou de construir e de vender imóveis para vender o seu próprio nome e a sua imagem, associados a um modo de vida, a outros promotores que arcavam com todos os riscos concretos e financeiros ligados à construção imobiliária. Trump encarna a fusão entre o homem e a grande empresa, da mega marca de um só personagem, cuja mulher e filhos são as suas marcas derivadas.

Quais são os valores associados à marca Trump?

A imagem que Trump vende é a da impunidade graças ao dinheiro, uma liberdade e um poder inacessíveis às pessoas comuns. Este sonho capitalista é acompanhado do último signo de poder em nosso mundo: estar rodeado de mulheres. Ele gaba-se das suas amantes, deixa os rumores sobre os seus problemas conjugais e infidelidades para as revistas de escândalos. O seu discurso eleitoral foi: viva a mesma vida de fantasias que eu vivo. Chegou a criar uma universidade privada que prometia ensinar os métodos para se chegar ao seu mundo. Os seus casinos ofereciam a mesma promessa. Essa experiência resultou no seu realityshow The Celebrity Apprentice, onde exibia a sua fortuna, o seu poder e o seu luxo, os quais eram prometidos como prémio ao único vencedor do jogo. Trump promoveu a ideia de riqueza pela riqueza, a ideia de que todos buscamos ser vencedores num mundo de perdedores, uma luta para ser o predador ideal. E para ele, o significado supremo do poder é o poder de abusar das mulheres. Trump é guiado pelos seus desejos: passa por cima de tudo o que está no seu caminho, desonra, humilha quem quer e quando quer, é o rei dos predadores.

A ascensão de Trump acompanha o triunfo do neoliberalismo desde os anos 80 do século passado, no governo de Reagan. Nesse contexto de precarização e de alienação das classes ele conseguiu vender esse sonho de nos livrarmos de todas as regras, de viver na sua própria realidade, de negar até mesmo as limitações do mundo real ou da ciência. Por isso, o seu fascínio pela luta livre e outros shows falsificados. Utilizou essa mesma lógica na sua campanha eleitoral. Prometeu ao seu eleitorado de classe média inferior a mesma vingança que aos competidores do seu jogo televisivo: o poder de esmagar os perdedores, como os imigrantes, os negros, as mulheres.

Trump é uma síntese perfeita do que denuncia nos seus três livros?

Esses excessos histriónicos de Trump são a perfeita ilustração de um “capitalismo do desastre” ou da catástrofe.

Efetivamente. Em No Logo, eu descrevia a forma como as super-marcas invadem o espaço público: Trump representa o topo simbólico desta tendência ocupando o Sala Oval. A ideia da impunidade do poder sempre definiu a política externa norte-americana: o excepcionalismo norte-americano, o negar-se a prestar contas diante do Tribunal Penal Internacional e das demais instituições da ONU. Em relação ao A Doutrina do Choque, Trump explora crises para exacerbar as divisões económicas em benefício de uma elite minoritária e riquíssima. Adora desestabilizar as pessoas e distrair a sua atenção sobre o que verdadeiramente está em jogo por meio da trivialidade: é, ao mesmo tempo, a doutrina do choque e a doutrina do bluf! Os seus ultrajes são tão aditivos como a comida gordurosa… Enquanto isso, ninguém fala sobre a sua redução dos impostos às empresas, incluindo as imobiliárias, o que beneficiará diretamente a sua família e os multimilionários que compõem o seu gabinete, esses “mestre do desastre” que construíram os seus impérios a partir da expropriação dos mais pobres, aquando das crises financeiras, e uma das maiores envolvidas nisso é a Goldman Sachs, que se beneficiou depois dessas mesmas crises.

Esses excessos histriónicos de Trump são a perfeita ilustração de um “capitalismo do desastre” ou da catástrofe. Um escândalo igual ao da indústria petrolífera, que mantém uma crise crónica da qual tira proveito: a Exxon promove a desinformação sobre a crise climática, visando aproveitar o descongelamento dos pólos para efetuar novas prospecções. Derrubaram todas as regulamentações de controlo energético e ecológico. A modificação do nosso sistema de produção energética e de transporte significa a eliminação dos impostos que a direita não quer mais.

Fala em três D´s: destruição, desregulação, desconstrução…

Ao escrever A Doutrina do Choque, eu deveria ter insistido no facto de que o neoliberalismo explora a xenofobia e torna hostis os imigrantes. É verdade que Trump, Marine Le Pen e os partidários do “brexit” são o resultado disso. Não se pode compreender o auge do neoliberalismo sem destacar o quanto ele exacerba as fraturas raciais para dividir os trabalhadores. Desde Reagan, mas também com Clinton, os imigrantes e as minorias étnicas nunca deixaram de ser o alvo de acusações, por supostamente abusarem dos apoios sociais, de viverem às custas da sociedade.

Reagan dizia que “o Estado não é a solução para os nossos problemas: o Estado é o problema”. Trump é o seu herdeiro ou o produto de uma nova cultura empresarial que tem um fetiche por esses personagens causadores de ruturas, os inovadores que fazem fortuna ignorando as leis de forma flagrante?

Trump é as duas coisas ao mesmo tempo. A herança de Reagan consiste em considerar os diretores executivos como a força vital dos Estados Unidos, em apagar as fronteiras entre o mundo dos negócios e o mundo político. Reagan não inventou este processo, mas acelerou-o. Trump agregou-lhe a ação anti-Estado, e inclusive anti-sociedade civil, uma verdadeira diabolização dos poderes públicos, explorando o desgosto, às vezes legítimo, do eleitorado cansado da corrupção na esfera política.

Por outra parte, ele compartilha, com esses “quebradores de paradigmas”, o culto da inovação brutal, com o desprezo por toda e qualquer regra, e uma indiferença total a qualquer objeção ou acusação. A sua filosofia prega que quando se chega a um certo grau de riqueza é possível eludir qualquer pergunta invocando a suposta “forma ilegal” a partir da qual se chegou a ela. É a mesma impunidade reivindicada pela Google, Facebook e Uber.

O fenómeno Trump é a encarnação desse cliché de que os milionários são os únicos capazes de resolver os nossos problemas?

Eu queria principalmente dissipar um mito, que despeja toda a responsabilidade nos republicanos, como se houvesse duas correntes que correram caminhos muito diferentes. Os democratas também contribuíram bastante para este sistema. Embora Trump saiba explorar de modo mais eficiente o racismo, a misoginia e a homofobia, nunca teria alcançado o poder sem a ajuda dos meios de comunicação (incluindo os considerados um pouco mais progressistas) dedicados à informação-espectáculo, com sua forma de tratar a campanha eleitoral como um reality-show. Trump entrou em cena, mas não construiu originalmente essa cena. Ele é, simplesmente, o melhor ator para este género de políticos tradicionais. O espetáculo sensacionalista é o seu universo.

Este mito do milionário filantropo, que sugere que os problemas políticos mais preocupantes (os do meio ambiente ou da educação, por exemplo) podem ser resolvidos graças às esmolas desses oligarcas, mais ricos que muitos Estados, existe também entre os progressistas dos Estados Unidos. A Fundação Clinton é um bom exemplo disso. Em vez de defender instituições transparentes e democráticas, apela à benevolência desses multimilionários e oferece-lhes a resolução desses problemas, mesmo que eles não tenham nenhuma experiência nesses âmbitos. A sua fortuna substitui a necessidade de conhecer e saber como lidar com a área em questão. São estes supostos progressistas, como os Clinton, Bill Gates, Richard Branson ou Michael Bloomberg, os que prepararam o terreno para Trump.

Mas, por outro lado, as campanhas de Bernie Sanders (nos Estados Unidos) e Jeremy Corbyn (no Reino Unido) demonstram que é possível ter um impacto político real, se o conteúdo do programa trouxer soluções concretas às necessidades das pessoas, em termos de saúde, habitaçao, educação, transportes, etc. Nesse sentido, Corbyn é o “anti-marca” por excelência. É a sua espectacular ausência de credibilidade (eleitoral) a que lhe garante a confiança e o fervor dos jovens, e o que, paradoxalmente, lhe entrega essa aura de estrela de rock. Os exemplos de Sanders e Corbyn confirmam que ainda se pode fazer política sem se aderir a este perigoso modelo da marca política que no fundo é oca, e que é adotado tanto pela esquerda, quanto pela direita. Por Trudeau (primeiro-ministro canadense) e por Macron (presidente francês), entre outros dedicados aos slogans vazios.

Para si, Trump foi capaz de manter um clima de crise graças, essencialmente, à sua retórica cheia de excessos. A que catástrofe ou série de catástrofes estamos sujeitos, como consequência dessa lógica? Choques bélicos, choques económicos, choques climáticos?

Todos esses riscos me inquietam. As primeiras comoções produzidas durante a presidência de Trump estão ligadas ao clima: os incêndios florestais da Califórnia costumam durar, às vezes, todo o verão, mas nunca chegaram a prosseguir até ao outono, e continuam piorando. E logo vieram os furacões. Imensos territórios, como toda a ilha de Porto Rico, precisam de se reconstruir. A entrega de verbas públicas para essas obras constitui uma aposta crucial. A reconstrução de Houston foi entregue a um antigo presidente da Shell… A doutrina do choque aplicada em Porto Rico está destinada a permitir a privatização da eletricidade e da rede viária, invocando a dívida pública local. Mas, constata-se uma resistência, tanto sobre o terreno, quanto por parte dos porto-riquenhos residentes nos Estados Unidos. Esta crise ilustra a articulação entre o perigo climático, a herança do neoliberalismo e a do colonialismo, pois Porto Rico continua a ser uma colónia desprovida de direitos, sobretudo eleitorais. A gestão da crise foi entregue a uma equipa privada, não eleita. Eu pertenço a um grupo que milita por uma reconstrução justa de Porto Rico, pela anulação da dívida e uma participação democrática nas decisões. Por uma dinâmica na qual a população é quem contribui para a criação de empregos, sobretudo por meio de uma política agrária, uma menor dependência das energias fósseis, a fim de se favorecer a auto-suficiência energética.

E estou aterrorizada com as tensões com a Coreia do Norte. É claro que Trump, nesse caso, está a surfar uma crise pré-existente, mas dispõe unilateralmente do poder de desencadear uma guerra nuclear. Creio que está fascinado com dimensão espectacular da guerra. Resistirá à tentação de explorar o arsenal militar norte-americano para fazer o “show dos shows” de violência apocalíptica?

Finalmente, a presença de membros da Goldman Sachs, ao seu redor, faz-me temer por uma nova crise financeira e a forma que esta gente poderia vir a explorá-la.

Defende uma mobilização transversal, já que Barack Obama decepcionou os que tinham esperanças nas mudanças vindas de cima. Sugere alguma forma de resistência a Trump que possa ser eficaz?

No livro No Is Not Enough, eu digo que se nos contentarmos com apenas resistir, voltaremos simplesmente ao ponto em que estávamos com Obama: um período de precariedade económica e social, de expulsão massiva de imigrantes, de forte violência policial contra a população negra, de agravamento da crise climática. A nossa missão agora é mais difícil e mais ambiciosa: associar à resistência as propostas concretas para mudar as coisas. Trump foi eleito e isso não se deve somente aos votos que obteve, mas também à desmobilização e ao abstencionismo. Foi Hillary Clinton que perdeu as eleições, pois boa parte da sua base eleitoral não se reconheceu no programa proposto pelos democratas.

No livro No Is Not Enough, eu digo que se nos contentarmos com apenas resistir, voltaremos simplesmente ao ponto em que estávamos com Obama.

O que me traz esperança é a constatação de um número cada vez maior de gente capaz de dizer que não e que sim, lutando para preservar o serviço público de saúde. Vemos que surge uma onda a favor da cobertura médica universal, tanto na escala federal quanto nos estados, e dezassete senadores, até alguns outrora neoliberais, que agora querem aderir à proposta de Bernie Sanders, estão a ser pressionados pelo seu eleitorado. Do mesmo modo, os jovens imigrantes não só resistem às medidas de expulsão de Trump, como também criticam o sistema de proteção de menores imigrantes estabelecido por Obama, argumentando que este promoveu o distanciamento entre os menores e os seus pais, que continuam ameaçados de expulsão. Defendem o mesmo direito para filhos e pais.

A mobilização dos indígenas e ecologistas do movimento da reserva Standing Rock contra o capitalismo ecocida e o supremacismo branco é outro exemplo a seguir. Vemos também centenas de municípios que, inspirados no prefeito de Pittsburgh, se negam a retirar dos acordos de Paris sobre o clima e tomam iniciativas ecológicas a escala local. O problema é que todos esses assuntos continuam muito separados: o meio ambiente, a justiça racial, a justiça social… Em vez de haver uma convergência de lutas, o que se constata é uma espécie de privatização (um panorama meio neoliberal) do ativismo político.

Há uma série de problemas que levam a isso, como a debilidade dos sindicatos, que se contentam em defender os seus afiliados a partir de conceitos corporativos, em vez de proporcionarem uma infraestrutura para reagrupar as lutas e a contestação. É preciso criar um espaço sem barreiras, onde os representantes das diversas causas possam planear o depois de Trump e fazê-lo com base numa visão global, holística e na definição dos valores de uma sociedade fundada na solidariedade, na ajuda mútua, no viver juntos e na preocupação pelo planeta.

É coautora do The Leap Manifesto, documento que propunha um programa sem partido e que defendia uma política económica que abolisse o uso de combustíveis fosseis. Porquê?

Estávamos em plena campanha eleitoral no Canadá e constatámos que os programas dos grandes partidos estavam dissociados dos grandes problemas: desigualdades económicas, crise climática, direitos dos povos indígenas… O seu foco sobre a crise climática era o mesmo do da surdez para com os alertas dos cientistas e o do apoio ao lobby das energias fósseis. O nosso grupo reunia sindicalistas, representantes de movimentos ecologistas como a Greenpeace, além de militantes de base que atuavam a favor do direito à habitação e dos direitos dos imigrantes. Demos prioridade a uma discussão positiva, que fosse além da contestação e fosse capaz de propor soluções, uma visão nova. Uma das armas do neoliberalismo é a guerra cultural contra a opinião, tentando impor a ideia de que não existe alternativa, que chegámos ao final da história.

Conseguimos criar esse debate e alguns partidos acolheram as nossas propostas, apesar da perplexidade dos media por este ser um programa sem partido. Precisamos de mudar o paradigma: substituir uma ideologia fundada na especulação financeira e no consumo massivo, que considera as pessoas e o planeta como recursos inesgotáveis e descartáveis, por uma cultura que proteja e respeite cada pessoa e cada lugar. Para isso, é preciso chegar a um 100 por cento de energias renováveis, durante os próximos 30 anos. E nesse intervalo, temos de construir também um sistema económico mais justo, uma gestão democrática e equitativa da energia, em vez de deixá-la nas mãos das grandes empresas. Os fundos públicos devem ser entregues aos povos indígenas e aos imigrantes, para que estes possam controlar o seu acesso à energia, ou para que não estejam mais expostos à contaminação.

É o que nós entendemos como linhas básicas. Temos de estabelecer uma política de cuidado e reparação, de reconstrução. Há muitas atividades não contaminantes que ainda não são reconhecidas como ecológicas: a puericultura, as ajudas aos idosos e até mesmo algumas atividades de criação artística. Reconhecê-las como tais é importante, para que estas tenham melhor remuneração e não sejam antes uma presa do sistema de exploração. Precisamos de um modelo económico capaz de financiar tudo isso, tendo como princípio o evitar de todas as desigualdades ecológicas. Pois, se hoje os trabalhadores se mostram hostis à ecologia, é porque os seus benefícios são entregues somente aos ricos, que nem sequer a financiam. O nosso manifesto tem inspirado outras iniciativas semelhantes noutros lugares, outros movimentos locais dentro do Canadá e também nos Estados Unidos, onde estes debates são acompanhados com grande interesse.

Pode falar-nos dos avanços do People´s Summit, a Conferência dos Povos de Chicago que teve lugar em junho passado, na qual participou?

Esta cimeira foi organizada pelo sindicato nacional das enfermeiras dos Estados Unidos da América. Trata-se do maior sindicato do país, mais de 150 mil das suas afiliadas são mulheres negras e há também muitas imigrantes. Estabelecemos formas de colaboração frutíferas com movimentos como o Black Lives Matter, Fight For $15 (que exige o aumento do salário mínimo) e dezenas de outras organizações. As enfermeiras são uma classe especial, porque se expressam em favor delas mesmas e também pelos direitos dos seus doentes, muitos deles carecendo do direito de acesso a cuidados médicos, e também ligam a saúde à preservação do meio-ambiente. Portanto, lutam ao mesmo tempo a favor do novo modelo de saúde de Obama, contra o lobby das empresas de saúde privadas, contra a proliferação dos oleodutos e minas de carvão, contra a expulsão das enfermeiras porto-riquenhas, e sempre com uma energia incrível. Afirmam o valor de toda a vida. Um movimento gerido por um grupo assim, e não pelos sindicatos das indústrias tradicionais, traz uma nova dinâmica muito positiva.

Portanto, está otimista?

Na verdade, não! Mas nego-me a desistir por causa desse pessimismo. O que está em jogo agora é importante demais e não podemos ceder ao derrotismo. Em vez de ficarmos a falar somente para nós mesmos, devemos utilizar todas as nossas vozes, as pessoas que possuem alguma tribuna e a possibilidade material, social e cultural para se expressar têm o dever de fazê-lo, para podermos redesenhar o mapa político.

Deposito muitas esperanças nas novas gerações, nesses jovens partidários de Sanders e de Corbyn, que já não acreditam no conto de fadas neoliberal.

Deposito muitas esperanças nas novas gerações, nesses jovens partidários de Sanders e de Corbyn, que já não acreditam no conto de fadas neoliberal. A sua imaginação é maior do que a nossa e a sua cólera mais forte. Impressiona-me muito o seu compromisso, a vontade de transplantar o seu ativismo do terreno da sociedade civil para a arena política, no seio dos partidos e do processo eleitoral.

É um momento crucial de mobilização: todo o mundo a fazer barricadas! Precisamos de uma contra- estratégia de choque. Reencontrar o fervor utópico que costumava animar os grandes movimentos sociais. Atuar partindo da base para melhorar radicalmente a vida das pessoas. Derrotar a cólera para seguir adiante coletivamente. Negar-se a entrar no jogo do antagonismo e do ódio que tentam impor contra nós, propondo antes, como alternativa, uma visão afirmativa e positiva.


* Naomi Klein é uma jornalista, escritora e activista canadiana, autora de inúmeros livros e artigos.


Esta entrevista foi publicada originalmente em L´Obs, nº 2764, 26 de outubro-1 de Novembro de 2017 e traduzida pelo site uruguaio Bitacora. Publicamos aqui a tradução para português, do Carta Maior, revista pelo Esquerda.net.