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Em 1936, Manuela de Azevedo defendia o direito à eutanásia, “a morte libertadora”

A primeira mulher a ter carteira profissional de jornalista tinha 24 anos e vivia em Viseu quando escreveu o artigo “Matar por piedade”. A peça enviada para o jornal República, datada de 25 de março de 1936, foi barrada pelos Serviços de Censura da ditadura. Por Mariana Carneiro.
Manuela de Azevedo.
Manuela de Azevedo. Foto do Museu Nacional da Imprensa.

“Escrevi um artigo a favor da eutanásia e enviei-o para o jornal República dentro do meu livro Claridade. Chamei-lhe ‘Matar por piedade’ e, claro, foi imediatamente riscado pela censura”, recordava Manuela de Azevedo em 2013, numa entrevista ao Diário de Notícias (DN).

Em 2018, um ano após a sua morte, o Museu Nacional da Imprensa divulgou este texto inédito. À época, escrevia o diretor do Museu, Luís Humberto Marcos: “o artigo continua a ser atual, o que mostra bem o pioneirismo do pensamento da jornalista que foi a primeira mulher a ter carteira profissional”.

“O artigo - ‘Matar por piedade’ - é muito curioso pela forma como a argumentação se vai desenvolvendo, em registo epistolar. Na base, está o modelo de 'diálogo socrático'. Ela responde a uma suposta carta de um tal 'Libertus' que exprime posições antagónicas às suas. Esse 'alter' vai ajudar a construir a dimensão cognitiva da convergência argumentativa”, explica o responsável do Museu Nacional da Imprensa.

No artigo, datado de 25 de março de 1936, Manuela de Azevedo é perentória: “Jamais apoiaria uma lei que mandasse matar por piedade, mas sim que protegesse a atitude do médico, levado, por circunstâncias especiais, a tais extremos – baseados no relatório pormenorizado da doença”.

“E, da mesma forma que reclamo estatutos que regulamentem a actividade do médico, criando-lhe responsabilidades menos elásticas que as morais: da mesma forma que reclamo um tribunal que condene o médico que faz da sua profissão apenas a realização de receitas, sem interesse pela vida do doente, mas só pelo lucro a auferir, da mesma forma reclamo que, em nome da piedade, seja concedida a morte libertadora em vez de balões de oxigénio e óleo canforado que prolonguem o martírio da vida”, acrescenta.

O Museu Nacional da Imprensa disponibiliza o texto integral do artigo “Matar por Piedade”.

Imagem do Museu Nacional da Imprensa.

O interesse pela escrita vem de tenra idade

Manuela de Azevedo nasceu a 31 de agosto de 1911, em Lisboa, numa família laica e republicana. A sua adolescência foi passada na Beira Alta. Depois de concluir os estudos na Escola Primária Superior de Mangualde foi estudar para o Liceu Alves Martins, em Viseu, onde deu aulas de Português e Francês num colégio privado daquela cidade.

O seu interesse pela escrita vem de tenra idade: “Fiz os primeiros versos com 11 anos, dediquei-os à minha irmã, Maria Alexandra, que tinha 3. Foram publicados num suplemento infantil d"O Século. Ainda na escola primária, num teste, surgiu a primeira revelação. Disse o professor ao meu pai que ao meu texto só lhe faltava ‘o coaxar das rãs’, tão realista era. A expressão pegou. Sempre que comentava um trabalho meu lá lembrava o meu pai o ‘coaxar das rãs’. Todo este interesse começa muito cedo”, referia Manuela de Azevedo na entrevista ao DN.

Em 1935 edita o seu primeiro livro de poemas, “Claridade”, com prefácio de Aquilino Ribeiro.

Imagem do Museu Nacional da Imprensa.

“Matar por piedade” não foi o seu único artigo a ser alvo da Censura antes mesmo de ingressar na carreira de jornalismo: “Uns tempos depois, mando um novo artigo, agora sobre a crise da Sociedade das Nações. Veja bem, uma miúda, em Viseu, a escrever sobre política internacional. Mas o artigo algum miolo tinha porque a censura voltou a cortar”, relatava.

“Fui uma jornalista igual aos outros”

Em 1938, ao serviço do jornal República, tornou-se a primeira jornalista profissional em Portugal: “Como o jornal continuasse a pedir-me artigos, vi-me obrigada dizer-lhes que precisava de ganhar dinheiro e, por isso, não podia perder tempo a escrever para a censura. ‘Se precisa de ganhar dinheiro, as portas do jornal estão abertas’, respondeu o diretor. Aceitei o convite, deixei o ensino e parti para Lisboa, com a minha mãe e a minha irmã”, explicava ao DN.

Esperava-a “uma secção criada de propósito” para si chamada Tribuna da Mulher. “Recusei imediatamente. Era só o que faltava, nem tribunas de homens nem de mulheres, ali havia jornalistas e quem tivesse unhas tocava guitarra. E eles lá cederam. Mas também encontrei ossos tão duros quanto eu", contava.

De 1942 a 1945 foi chefe de redação da revista Vida Mundial. Posteriormente, mudou-se para o Diário de Lisboa, onde se manteve até se tornar grande repórter do DN.

Manuela de Azevedo assinou uma série de reportagens sobre os bairros degradados de Lisboa, denunciando as miseráveis condições de vida das pessoas que ali viviam, e os campos de arroz do vale do Sado, entre muitas outras.

Do seu vasto rol de entrevistados fazem parte, nomeadamente: Calouste Gulbenkian, o escritor Ernest Hemingway, Evita Perón, o bailarino russo Nureyev, o ex-rei Humberto de Itália, quando exilado em Portugal, Humberto Delgado, Henrique Galvão e Kubitschek.

Imagem do Museu Nacional da Imprensa.

“Eu fui uma jornalista igual às outras. Ou melhor, aos outros, porque fui a primeira. Fui uma jornalista igual aos outros. Gosto desta frase (…) O jornalismo pôs-me em contacto com a vida e eu vivi muito os acontecimentos que por mim passaram e pelos quais eu passei", afirmava ao DN.

Já em 2016, aquando da homenagem promovida pelo Sindicato de Jornalistas e o Museu Nacional da Imprensa por ocasião do seu 105º aniversário, Manuela de Azevedo, citada pelo Jornal de Notícias, frisava: “o jornalismo não é só aquele que diz que morreram tantas pessoas num desastre. O jornalismo é o defensor da objetividade, de focos, de problemas sociais".

Ao longo da sua vida publicou uma vasta obra enquanto romancista, ensaísta, poetisa e contista. Escreveu também peças de teatro, uma das quais foi censurada pelo regime de Salazar.

Amiga chegada de Maria Lamas, Manuela de Azevedo explicava ao DN que sabiam que eram “ambas de esquerda”. Mas não falavam de política. “E quando digo que não falávamos de política refiro-me a conversas sobre partidos ou ideologias. Mas falávamos da miséria em que o povo vivia, das dificuldades de toda a ordem, da falta de liberdade de expressão. Não é preciso ser comunista para rejeitar uma ditadura. Eu nunca participei numa reunião política, não era militante, mas nem por isso deixei de combater o regime”, afirmava.

Manuela Azevedo morreu em fevereiro de 2017, no Hospital de São José, em Lisboa. Tinha 105 anos.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
Termos relacionados Esquerda com Memória, Sociedade
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