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Documentos expõem fraude dos “vistos gold” em Malta

Os documentos obtidos pela fundação Daphne Caruana Galizia, batizada em homenagem à jornalista maltesa assassinada em 2017 quando cobria escândalos de corrupção na ilha, revelam como os candidatos ao passaporte europeu fintam as regras que supostamente os obrigariam a viver em Malta. Na prática, estes milionários vindos da Rússia, Arábia Saudita ou China conseguiram acesso a circular sem restrições na União Europeia a troco de um investimento de pouco mais de 1 milhão de euros que lhes permite serem considerados residentes em Malta, apesar de se comprometerem apenas a passarem três semanas por ano naquele território.
A reportagem divulgada pelo Guardian esta quinta-feira pesquisou os documentos resultantes de uma fuga de informação da Henley & Partners, a empresa dirigida por um suíço, pioneira nesta indústria do “planeamento de cidadania” que move mais de dois mil milhões de dólares anualmente. A empresa terá tido um papel determinante no desenho legislativo do esquema de vistos gold em Malta, mas estreou-se em 2006 a convite do governo caribenho de St Kitts and Nevis. Christian Kälin, presidente da Henley & Partners, é ali conhecido como “o rei dos passaportes”, dizia o Guardian na reportagem publicada em 2018 sobre este esquema.
No caso de Malta, os emails trocados entre os funcionários da empresa de gestão de fortunas (e passaportes) e os potenciais clientes não deixam grande margem para dúvidas de que a residência oferecida em troca do investimento não passa de um embuste. Os clientes são aconselhados a preencher as candidaturas ao visto dizendo que planeiam passar no mínimo 14 dias por ano em Malta e isso basta para provar a “ligação genuína” ao país exigida na lei.
Para atestar essa “ligação genuína”, há milionários que compram ou alugam apartamentos e os deixam vazios todo o ano, outros que adquirem iates registados no território. Doações a instituições locais também ajudam a provar essa ligação ao território.
Malta está sob a mira da União Europeia por causa do seu esquema de vistos gold, apontado como um facilitador da entrada em território europeu de figuras ligadas ao branqueamento de capitais e a crimes financeiros nos países de origem. O governo maltês tem respondido que o país é responsável pela emissão dos seus passaportes e que faz controlos de segurança a todos os candidatos.
No braço de ferro entre Bruxelas e La Valetta, ficou assente numa declaração conjunta em 2016 que os compradores da cidadania maltesa teriam de provar a residência no território num período mínimo de um ano imediatamente antes da emissão do visto. O problema, diz o Guardian, é que a lei maltesa não define o que é “residência” e o entendimento seguido é que tal não implica a presença física no território por parte dos candidatos.
Apartamento com vista para o mar? "Quero lá saber, é o que for mais barato!"
Nos 250 formulários de candidatura consultados pelo jornal, o tempo médio de compromisso para a estadia em Malta foi de 16 dias e muitos desses formulários nem sequer mencionavam o período em que o candidato pretendia estar de facto no território. Os emails internos da Henley & Partners mostram como os responsáveis diziam que “na verdade, nenhuma candidatura será recusada com base neste formulário” Ou seja, caso não se pudesse comprometer com uma visita prolongada, o candidato poderia optar por abrir contas bancárias ou inscrever-se em clubes locais para provar a sua ligação à sociedade maltesa.
Entre os emails consultados, não faltam situações caricatas, como a de um candidato vindo da China que arrendou um apartamento com dois quartos por 1.500 euros mensais ao requerer vistos para 12 pessoas, incluindo seis crianças. Há também o caso de um empresário sul-africano indignado por o senhorio do apartamento angariado pela Henley & Partners lhe querer cobrar uma taxa de manutenção do imóvel. “Não será usado, ninguém lá irá durante um ano. Se vocês o inspecionaram e está tudo bem, o que é que pode acontecer de mal? O proprietário tê-lo-á de volta tal como o entregou”, queixava-se este cliente. Outro ainda respondeu ao questionário sobre o tipo de habitação desejada com uma mensagem muito direta: “Quero lá saber, é o que for mais barato e cumpra com os requisitos do programa”.
A própria Henley & Partners reconhece que alguns dos seus clientes “escolhem passar o tempo mínimo requerido no país” e argumenta que as regras de “ligação genuína” ao território são definidas pelo governo local e não por Bruxelas. “Ajudámos o governo maltês a criar uma plataforma soberana económica e financeira inovadora e com assinalável sucesso, captando centenas de milhões de euros” para o país.
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