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Do fim do “juancarlismo” ao debate constituinte

As tentativas falhadas de desvincular Filipe VI da figura do seu pai não evitaram que a sombra da corrupção emerja sobre um reinado sem relato próprio. É fundamental erguer um movimento democrático que possa organizar um referendo popular que devolva a palavra à cidadania. Por Teresa Rodríguez e Miguel Urbán.
Franco, Juan Carlos de Borbón e Filipe Borbón. Montagem do Viento Sur.
Franco, Juan Carlos de Borbón e Filipe Borbón. Montagem do Viento Sur.

Na primeira-segunda feira de agosto surpreendia-nos a notícia da fuga do rei emérito Juan Carlos I, que se juntava à tradição familiar de ir-se embora do país encurralado por escândalos de corrupção.

Assim, Juan Carlos torna-se parte de uma corrente de três gerações seguidas de Borbóns fora de Espanha, desta vez provavelmente na República Dominicana, um país sem acordo de extradição com a Suíça, que investiga uma parte dos seus esquemas. Uma fuga combinada com a Casa Real e o Governo, numa tentativa, como explica a própria carta que se tornou pública, de “prestar o melhor serviço aos espanhóis, às suas instituições e a ti como Rei”. Não apenas estamos perante um rei em fuga, mas também, na mesma jogada, se tenta mais uma vez, sem muito êxito até agora, afastar do foco mediático o rei emérito, matando publicamente a figura do pai para tentar exonerar o filho e salvar de passagem a instituição.

Ainda que o preço seja já enorme, ao reconhecer implicitamente os delitos presumidos pelos quais Juan Carlos é acusado, acabando de certa maneira com o “juancarlismo” como operação de marketing justificadora da monarquia. Inaugurando a pior crise da instituição desde que Franco decidiu restaurá-la como parte e continuação do seu legado.

Não podemos esquecer que a restauração da monarquia sob a figura de Juan Carlos I de Borbón foi obra e graça da ditadura como continuadora do seu legado histórico, tal como o próprio monarca reconheceu na sua tomada posse nas Cortes franquistas. Um ato de sucessão em diferido no qual o rei não apenas agradeceu a Franco o seu legado, mas no qual também jurou guardar lealdade aos princípios do Movimento Nacional. Há não muito tempo, numa entrevista escrita, Fernando Suárez, ex-ministro do Trabalho de Franco, afirmava um truísmo histórico, não por isso menos escondido ou maquilhado pelo relatos oficiais da Transição: “Franco foi o propulsor da monarquia. E se se deslegitima o franquismo e se converte Franco numa figura comparável à desses grandes ditadores sanguinários da humanidade, dá-se uma conotação à Coroa que a coloca em risco”.

O “juancarlismo” foi uma construção de marketing político, que procurou mitigar a falta de legitimidade democrática e popular da monarquia. Uma instituição que nem então nem desde então se submeteu a alguma consulta ou referendo popular, como reconheceu o próprio Adolfo Suárez num descuido, uma monarquia que, face ao risco de perder, não se submeteu a nenhuma consulta popular, apesar das pressões internacionais para realizá-la de forma a garantir a sua legitimidade.

Inclusivamente na Constituição teve de se incluir aquilo da questão “histórica” do artigo 57.1i para (tentar) argumentar a sua vigência no ordenamento jurídico pós-franquista. Ainda que a melhor demonstração da falta de uma sustentação firme da legitimidade da monarquia seja o permanente extremo cuidado do “establishment” pela figura e imagem do monarca.

Pois bem, ainda que a monarquia não se tenha submetido a nenhum referendo popular, viu-se envolvida numa grande operação de branqueamento democrático que a dotou da legitimidade que carecia e que, em boa medida, contribuiu para envernizar essa rutura simbólica com o seu passado franquista. Falamos, claro, do fracassado de golpe de Estado do 23Fii que, independentemente das diferentes interpretações que se fizeram a seu respeito, teve sem dúvida um papel fundamental para legitimar a figura do monarca como garante do processo democrático. O 23F contribuiu para a direita mudar o rumo durante a Transição e, sobretudo, para impor no relato oficial sobre esta o protagonismo das elites (com o “monarca salvaguarda da jovem democracia” à cabeça) face ao protagonismo popular antifranquista da rua. Tinha nascido o “juancarlismo”.

A fuga do rei emérito deixa ferido de morte o “juancarlismo”. Como o próprio Juan Carlos reconhece, os menores de quarenta anos apenas o recordaremos com o comissionista, evasor, corrupto e mulherengo. Um reflexo fiel dos Borbóns ao longo da nossa história. Mas a morte do “juancarlismo” pode conduzir ou não à sepultura da própria instituição monárquica. As tentativas falhadas de desvincular Filipe VI da figura do seu pai não evitaram que a sombra da corrupção emerja sobre um reinado sem relato próprio para além daquele do “juancarlismo”. Apesar de tentativas como a do discurso de três de outubro, posterior à declaração unilateral de independência da Catalunha em 2017 que, mais do que reforçar a sua figura, aumentou o desapego de uma parte da sociedade, não apenas da catalã, relativamente à instituição monárquica.

Um momento tão excecional como este, que ao que parece ainda só agora começou, não se pode enfrentar a partir da normalidade parlamentar e social. Faz falta uma resposta que esteja à altura do desafio político com o qual nos enfrentamos, que é não apenas a crise da monarquia.

A morte do “juancarlismo” representa um autêntico processo de deslegitimação e decomposição dos pilares centrais do regime espanhol de 78: monarquia, sistema judicial, quadro “nacional”-territorial e crise de representação, sob o pano de fundo de uma crise sócio-ambiental agravada pela crise sanitária que continuamos a sofrer.

Mas, apesar das suas debilidades evidentes, a monarquia não cairá sozinha. Ainda tem o apoio maioritário do bloco de poder económico, político e mediático do regime de 78, que entende a continuidade da instituição real como elemento essencial da sua própria sobrevivência. Para além disso, a debilidade da monarquia não supõe a força do republicanismo. Não podemos continua a ser meros espectadores da decadência borbónica, devemos tomar partido para que a indiferença face ao lixo real não se apodere das maiorias sociais.

É fundamental erguer um movimento democrático pelo direito a decidir que possa organizar um referendo popular que devolva a palavra à cidadania, ultrapassando e rompendo com os estreitos limites parlamentares. Porque o debate constituinte a promover a partir dos vários povos do Estado Espanhol é já inadiável.

Face a quem contempla aterrado, a partir de cima, a crise socio-política como uma época de decadência, as e os de baixo deveríamos contemplar a cena, também em todo o seu dramatismo, como um momento improrrogável para a recriação democrática. A redefinição das lógicas de representação e a aposta pela subversão de todas as regras do sistema social que nos conduziram a tamanho desastre. Não há tempo a perder: a urgência política, social e ecológica reclama saltos em frente necessários.


Miguel Urbán é eurodeputado e membro dos Anticapitalistas. Tereza Ródriguez é deputada no Parlamento da Andaluzia e membro dos Anticapitalistas.

Texto publicado a seis de agosto no El Diário. Republicado no Viento Sur. Tradução de Carlos Carujo para o Esquerda.net.


Notas:

iO ponto 1 do artigo 57 da Constituição Espanhola é o que estabelece que a “Coroa” é hereditária aos sucessores de Juan Carlos I de Borbón “legítimo herdeiro da dinastia histórica” e que a sua sucessão seguirá “a ordem regular da primogenitura e representação, sendo preferida sempre a linha anterior às posteriores; na mesma linha o grau mais próximo ao mais remoto; no mesmo grau, o varão à mulher e, no mesmo sexo, a pessoa com mais idade à pessoa com menos.” Nota do tradutor.

iiReferência à tentativa de golpe de Estado de 23 de fevereiro de 1981 cujos episódios mais famosos são o sequestro do Parlamento durante a votação de tomada de posse do primeiro-ministro Leopoldo Calvo-Sotelo, efetuada por elementos da Guardia Civil sob o comando de Antonio Tejero, e a ocupação militar de Valência. Nota do tradutor.

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