Estou em Paris. Ontem à noite, passei por perto do local da matança na rua Beaumarchais. Jantei num lugar que fica a dez minutos de outro alvo dos ataques. Todos as pessoas que conheço estão bem, mas muitos que eu não conheço estão mortos, traumatizados ou em luto. É escandaloso e terrível. Hoje as ruas estiveram movimentadas de tarde, mas vazias à noite. A manhã acordou inerte. As discussões televisivas que ocorreram imediatamente após os eventos parecem deixar claro que o “estado de emergência”, ainda que temporário, na verdade cria precedente para uma intensificação do estado de segurança. As questões debatidas na televisão incluem a militarização da polícia (de que modo “completar” esse processo), o espaço da liberdade, e a luta contra o “islão”, este último entendido como uma entidade amorfa. Hollande, ao nomear isto como “guerra”, tentou parecer másculo, mas o que chamou atenção foi o aspecto imitativo de sua performance – tornou-se difícil, então, levar o seu discurso a sério. E no entanto, é esse agora o bufão que assume o papel de cabeça do exército.
Não há toque de recolher instalado, mas os serviços públicos foram reduzidos e as manifestações, proibidas – inclusivé os “rassemblements” (encontros) para lamentar os mortos foram considerados ilegais. Compareci num desses encontros na Place de la République, onde a polícia reiterou que todos se deviam dispersar, e poucos obedeceram. Nisso vi um breve momento de esperança.
A distinção entre estado e exército dissolve-se num estado de emergência. As pessoas querem ver a polícia, querem uma polícia militarizada para protegê-las. Um desejo perigoso, ainda que compreensível. Muitos são atraídos pelos aspectos benéficos dos poderes especiais concedidos ao soberano num estado de emergência, como as viagens gratuitas de táxi durante a noite de ontem para qualquer pessoa que precisasse de voltar para casa, e a abertura dos hospitais para todos os que foram atingidos. Não há toque de recolher instalado, mas os serviços públicos foram reduzidos e as manifestações, proibidas – inclusivé os “rassemblements” (encontros) para lamentar os mortos foram considerados ilegais. Compareci num desses encontros na Place de la République, onde a polícia reiterou que todos se deviam dispersar, e poucos obedeceram. Nisso vi um breve momento de esperança.
Os que comentam os eventos procurando distinguir as diferentes comunidades muçulmanas, com as suas diversidades de posição política, são acusados de procurarem “nuances”: o inimigo precisa ser total e uno para ser aniquilado, e as diferenças entre muçulmanos, jihadistas e o Estado Islâmico ficam mais difíceis de distinguir nos discursos públicos. Mesmo antes do ISIS assumir a responsabilidade pelos ataques, muitos já apontavam o dedo, com total certeza, ao Estado Islâmico. Pessoalmente, achei interessante que Hollande tenha proclamado três dias de luto oficial ao mesmo tempo que intensificou os controlos de segurança, o que criou mais uma forma de interpretar o título do livro de Gillian Rose, “Mourning becomes the law”(O luto torna-se lei). Estaríamos vivendo um momento de luto ou uma submissão a um poder de Estado cada vez mais militarizado, de suspensão da democracia? De que maneira esse modelo de Estado se instaura com maior facilidade quando é vendido em nome do luto? Serão três dias de luto público, mas o estado de emergência poder-se-á estender até 12 dias sem que seja necessária a sua aprovação na assembleia nacional. E ainda, a explicação do Estado é de que é preciso restringir liberdades a fim de defender a liberdade – um paradoxo que não perturba os doutos comentaristas da televisão. De fato, os atentados foram evidentemente direcionados a locais emblemáticos da circulação livre e quotidiana nem França: o café, a sala de espetáculos, o estádio de futebol. Na sala de espetáculos, aparentemente, um dos assassinos responsáveis pelas 89 mortes violentas acusou a França de ter falhado na intervenção na Síria (contra o regime de Assad), e o Ocidente, pela intervenção no Iraque (contra o regime baathista). Não se trata, portanto, de um posicionamento (se é que podemos chamá-lo assim) totalmente contrário à intervenção ocidental em si.
Uma liberdade é atacada pelo inimigo; a outra é restringida pelo Estado, que defende o discurso do “ataque à liberdade” pelo inimigo como um ataque à essência do que é a França, mas suspende a liberdade de reunião (o “direito à manifestação”) devido ao luto, e prepara uma militarização ainda maior da polícia.
Há, ainda, uma política dos nomes: ISIS, ISIL, Daesh. França recusa-se a dizer “état islamique” para não reconhecer sua existência enquanto Estado. Querem manter o termo “Daesh”, palavra árabe que não é acolhida pela língua francesa. Nesse meio tempo, foi essa a organização que assumiu a responsabilidade pelos ataques, afirmando que se tratava de uma retaliação pelo bombardeamento que matou muçulmanos em território do califado. A escolha de um concerto de rock como alvo de ataque – como cenário para os assassinatos, na verdade – recebeu a justificativa de que ali seria um local de “idolatria”, de um “festival de perversão”. Pergunto-me onde é que encontraram o termo “perversão” – parece que estiveram a ler uma bibliografia de outra área.
Os candidatos à presidência já chegaram às suas opiniões: Sarkozy agora está a propor campos de detenção, afirmando ser necessário prender qualquer um suspeito de ter ligações a jihadistas. E Le Pen advoga pela “expulsão”, ela que há pouco chamou de “bactérias” os novos imigrantes. É bem possível que a França consolide a sua guerra nacionalista contra os imigrantes a partir do fato de que um dos assassinos claramente entrou no país pela Grécia. A minha aposta é de que será importante acompanhar o discurso sobre a liberdade nos próximos dias e semanas, pois irá trazer implicações para o estado de segurança e o achatamento das versões da democracia que temos diante de nós. Uma liberdade é atacada pelo inimigo; a outra é restringida pelo Estado, que defende o discurso do “ataque à liberdade” pelo inimigo como um ataque à essência do que é a França, mas suspende a liberdade de reunião (o “direito à manifestação”) devido ao luto, e prepara uma militarização ainda maior da polícia.
A questão principal parece ser: qual a vertente da extrema direita que prevalecerá nas próximas eleições? E o que será a “direita tolerável” quando Marine le Pen for considerada de “centro”?
A questão principal parece ser: qual a vertente da extrema direita que prevalecerá nas próximas eleições? E o que será a “direita tolerável” quando Marine le Pen for considerada de “centro”? São tempos assustadores, tristes e preocupantes, mas há a esperança de ainda sermos capazes de pensar, falar e agir no meio de tudo isso. O processo de luto parece ter sido totalmente restringido dentro do território nacional. Praticamente não se fala dos quase 50 mortos em Beirute no dia anterior, tampouco dos 111 mortos na Palestina nessas últimas semanas apenas. A maioria das pessoas que eu conheço dizem que estão num “impasse”, incapazes de pensar a fundo sobre a situação. Uma das maneiras de pensar sobre ela talvez venha com a invenção de um conceito de luto transversal – de considerar como a métrica do lamento se dá, como e por que os assassinatos no café me comovem de modo mais intenso que os ataques ocorridos noutros locais. Parece que o medo e a raiva se poderão transformar num apoio feroz ao estado policial. Talvez seja por isso que prefiro aqueles que dizem estar num impasse: significa que levarão um certo tempo para pensar a situação. É difícil pensar no espanto. É preciso ter tempo, e ter companhia para atravessar esse tempo – há, talvez, espaço para que isso se dê num “rassemblement” não autorizado.
Artigo publicado em Cult em 13 de novembro de 2015. Tradução de Sofia Nestrovski.