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A discreta construção de um Estado policial

Os Estados Unidos vivem enredados há décadas num emaranhado de guerras que bem merecem o nome de 'guerras imperiais’. Como é possível, perguntarão alguns ingénuos, que uma república democrática, em que predomina a divisão de poderes, embarque em várias aventuras militares intermináveis e simultâneas? Por Alejandro Nadal.
Parem a Máquina da Guerra, Marcha pela Paz no Pentágono, 2007 – foto de Jonathon Colman/flickr

As declarações de guerra eram antigamente um ato de grande solenidade. Anunciavam-se no meio de um protocolo grave e de acordo com um cerimonial traçado para gerar sentimentos de patriotismo. Mas hoje tudo mudou. As guerras aparecem no ecrã da televisão e as pessoas já nem perguntam quando começou esta guerra?

A última vez que os Estados Unidos declararam formalmente a guerra contra uma potência inimiga foi em 1941 após o ataque japonês a Pearl Harbor. Os conflitos na Coreia, no Vietname, no Golfo Pérsico, no Afeganistão, no Iraque e agora contra o Estado islâmico, todos eles formalmente não são guerras.

Hoje as guerras são autorizadas através do orçamento. Por exemplo, o Congresso norte-americano acaba de aprovar um descomunal pacote orçamental para o Pentágono. Trata-se do orçamento para o ano fiscal de 2016 que supera os 572 mil milhões de dólares e, se está longe de ser o mais alto na história das forças armadas dos Estados Unidos, ele é um mau presságio para as guerras em curso e as que virão. Há além disso um presente de mais de 111 mil milhões de dólares para abastecimento e aquisições, além de 50 mil milhões de dólares para investigação e desenvolvimento experimental (um aumento de mais de 13 mil milhões de dólares em relação ao ano anterior).

Nesta chuva de dinheiro para o Departamento da Defesa incluem-se 58 mil milhões de dólares para um item com a sigla misteriosa de GWOT/OCO que significa a famosa guerra global contra o terrorismo e a linha de operações contingentes no estrangeiro. O presidente do poderoso Comité do orçamento da Câmara de Representantes, o senhor Hal Rogers, afirma que este orçamento proporciona os recursos e o treino para que as nossas tropas possam levar a cabo com êxito as suas operações e possam combater os nossos inimigos em todo o mundo.

A nova lei orçamental contém mais de duas mil páginas. É difícil navegar no seu interior e, certamente, quase impossível captar as subtilezas legais que vêm imersas neste volumoso texto. É já prática comum do poder executivo em muitos países enviar documentos muito volumosos para a aprovação do legislativo e assim esconder disposições que de outro modo seriam recusadas. Para fins de supervisão das atividades do poder executivo e das forças armadas, é indispensável examinar todo o texto, quase linha a linha. Muito poucos congressistas estão dispostos a realizar este trabalho.

Hal Rogers também assinalou que o pacote do Pentágono inclui recursos para combater a ameaça real do Estado Islâmico do Iraque e do Levante (EI). Significa isso que o poder legislativo está a dar uma autorização ao executivo para envolver as forças armadas norte-americanas numa guerra contra o Estado Islâmico? Isso significaria que o executivo teria de hoje em adiante os poderes para fazer a guerra contra a estranha entidade no norte do Iraque e na Síria.

Em princípio, o poder do presidente norte-americano para fazer uso da força militar está limitado pela constituição (o congresso é a única entidade que pode declarar uma guerra). Mas por causa dos abusos durante a administração Nixon (em especial as notícias sobre os bombardeamentos secretos no Camboja) o Congresso aprovou a chamada Resolução de poderes de guerra em 1973. De acordo com esta lei, não é possível inferir de uma simples dotação orçamental a autorização para o uso da força, a não ser que essa dotação seja acompanhada de uma autorização explícita para a entrada das forças armadas dos Estados Unidos nas hostilidades.

Mas as dotações orçamentais têm sido interpretadas em numerosas ocasiões como uma forma de consentir o uso da força ou, o que é igual, para fazer a guerra sem uma declaração formal por parte do Congresso. Um precedente muito importante encontra-se nas dotações orçamentais para desenvolver hostilidades no Kosovo no ano 2000. As dotações orçamentais foram interpretadas pelo conselho legal do procurador como luz verde para a guerra. Hoje ninguém em Washington está preocupado pela forma discreta com que se autorizam e prolongam as guerras intermináveis em que os Estados Unidos já estão envolvidos.

Este processo de deterioração em matéria de direito constitucional e de descomposição dos elementos essenciais da vida republicana nos Estados Unidos não é casual. É verdade que a deterioração começou antes da instauração do neoliberalismo, mas o processo intensificou-se de maneira notável com a expansão do setor financeiro e, é claro, com a crise global de 2008. Hoje a construção do estado policial prossegue o seu curso nos Estados Unidos.

Artigo de Alejandro Nadal, publicano no jornal mexicano La Jornada em 23 de dezembro de 2015. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

Sobre o/a autor(a)

Economista, professor em El Colegio do México.
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