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Dez terríveis argumentos de esquerda contra a resistência ucraniana

Sei que internacionalismo e solidariedade não se desfazem pela primeira vez. Mas não se pode abordar a sua reconstrução ignorando o que está por trás: ilusões idealistas, estruturas de desigualdade, correntes reacionárias que permitem que se ignore o imperialismo russo e a luta ucraniana pela autodeterminação. Por Oksana Dutchak.
Ilustração da Commons.
Ilustração da Commons.

As discussões com algumas pessoas da esquerda (na sua maioria) ocidental podem ser extremamente difíceis. Algumas das suas posições são desanimadoras de se ouvir. Outras parecem hipócritas ou cínicas. Há, na minha opinião, certas posições que estão longe dos princípios da esquerda. Estes pontos nem sempre são expressos diretamente, portanto, quero aprofundar brevemente algumas mensagens das ocultas subjacentes às posições defendidas por muitos na esquerda.

Aviso nº 1: Quero enfatizar que também há muitos militantes de esquerda que assumem a posição de solidariedade e terão zero a ver com estas reivindicações. No entanto, aqui não estou a escrever aqui sobre eles.

Aviso nº 2: É realmente importante como algumas destas mensagens são expressas, pois isso traça a linha entre, por um lado, os pontos de preocupação e discussão, e por outro, o pilar central da posição política pré-determinada e incondicional de cada um contra a resistência ucraniana. Este texto é sobre o segundo caso. Não vou discutir nuances aqui. Esta é uma opinião polémica, não um artigo analítico.

Aviso nº 3: Estou frustrada, irritada e, portanto, sou muitas vezes sarcástica aqui. E sim, tenho o direito de ser assim. E sim, uso este texto para canalizar minha frustração e raiva.

  1. “Se outro país atacasse o meu país, eu simplesmente fugiria”.

Bem, eu fiz o mesmo porque tenho dois filhos. A versão completa não explicitada deste argumento é : “Numa situação hipotética que é altamente improvável, mas que ainda assim projeto em vocês, não apoiarei nenhuma resistência coletiva à invasão e por causa desta projeção oponho-se à resistência ucraniana”. Esta reivindicação é expressa principalmente por pessoas de países sem nenhuma história moderna de sujeição nem sob a ameaça de dominação imperial. Mas não estamos numa guerra abstrata aqui ou em qualquer versão das suas projeções. Trata-se de uma invasão imperialista muito concreta, apoiada pela retórica da submissão total. Às vezes ela também atinge o nível da retórica genocida. Um marxista deveria ter uma vergonha alheia tripla ao ouvir que não vale a pena lutar numa guerra contra uma opressão imperialista. Claro que, se algo assim acontecer convosco, poderão escolher a opção de não resistir e eu nunca julgaria na medida em que não use a sua escolha individual para condenar a luta defensiva coletiva dos outros numa realidade total e estruturalmente diferente.

  1. “Eu nunca lutaria pelo meu governo”.

A versão completa não anunciada desta declaração: “1) os ucranianos estão a lutar pelo seu governo, 2) eu não tenho nenhuma razão para achar isso e não verifiquei esta informação com quaisquer ucranianos ou 3) eu não acho que a opinião dos ucranianos deva ser levada em conta de qualquer forma”. Bem, é bastante óbvio: esta guerra não tem nada a ver com o nosso governo de merda (como o são muitos outros). Verifiquem a porcaria das sondagens de que algumas pessoas de esquerda gostam tanto quando apoiam o seu ponto de vista e de que imediatamente se esquecem quando o desmentem. Se esta guerra alguma vez teve algo a ver com o governo ucraniano, o governo deixou de ser relevante quando a propaganda russa começou a falar sobre “a solução da questão ucraniana” e a “desnazificação” da população, em massa.

A segunda parte desta declaração não vocalizada está ligada a um total desapego à realidade material e ao desrespeito a ela – uma abordagem muito materialista, de facto... A terceira parte não tem, naturalmente, nada a ver com princípios de esquerda e é, infelizmente, como muitos outros pontos, uma manifestação óbvia de um “esquerdismo” centrado no Ocidente, paternalista ou arrogante.

Provavelmente as variações mais impressionantes desta posição são “análises” da guerra com inúmeros erros factuais de pessoas que não sabem quase nada sobre a região e dos manifestos “contra a guerra” sem uma única assinatura ucraniana. Ser uma “superestrela” académica de esquerda é uma garantia de que muitas pessoas ainda levarão o seu texto a sério, apesar da realidade material desesperadamente lamentável e dos corpos humanos enterrados sob os seus escombros.

  1. O nosso governo apoia a Ucrânia e eu nunca poderei tomar o lado do meu governo”.

A mensagem completa e não vocalizada desta afirmação é: “De facto, apoio o meu governo em muitos casos, mas desta forma justifico a minha posição contra o apoio à resistência ucraniana e/ou apoio-me numa política de identidades em vez de princípios materialistas para tornar minha vida conformista e simples”. É claro que estas pessoas apoiam os seus governos em algumas ocasiões e criticam e se opõem a ele noutras. A realidade é complicada. Às vezes até mesmo governos de merda fazem a coisa certa, especialmente sob a pressão da luta popular progressista. Seria como opor-se aos migrantes e refugiados que o governo decidiu “deixar entrar” só porque essa era a posição do governo. (Eu sei, eu sei que alguns fazem isso sob os slogans de que “eles vão tirar o emprego dos nossos trabalhadores”). Uma oposição de princípio ilusória ao próprio governo é simplesmente usada, mais uma vez, como uma justificativa da oposição à resistência ucraniana. Apoiar seriamente esta afirmação significa confiar em políticas de identidade baseadas na universalização cega, em vez de uma análise da realidade material enfrentada pela Ucrânia.

  1. Os trabalhadores ucranianos e russos, em vez de lutarem uns contra os outros, deveriam voltar as suas armas contra os seus próprios governos”.

A mensagem não declarada aqui é: “Prefiro não fazer nada nesta situação onde não há ameaça direta ou indireta à minha vida, estou-me a opor à resistência ucraniana e quero encontrar uma bela justificação de esquerda”. Sim, devíamos fingir ser pedras e ficarmos à espera de uma revolução proletária global. Bem, temo que em algum momento tais pessoas afirmem que não há necessidade de travar nenhuma luta social até a revolução global (eu sei, eu sei que alguns quase o fazem). Esta posição, contudo, é (muitas vezes) a de um indivíduo privilegiado que esconde o egoísmo ideológico por trás de uma retórica agradável. É também um produto do declínio da mobilização da esquerda ao longo dos anos e das muitas reviravoltas reacionárias do sistema global. Uma merda muito boa e universal, se alguém quiser tomar um banho de merda, eu recomendo este argumento.

  1. “Quem beneficia com esta guerra?”

A mensagem escondida é: “Sei que algumas partes da classe capitalista de elite se beneficiam com quase tudo neste mundo porque é assim que o sistema funciona, mas ainda assim uso esta pergunta (que não é realmente uma pergunta) para expressar a minha oposição à luta ucraniana pela autodeterminação”. Opor-se a tal luta porque as elites ocidentais beneficiam dela é como opor-se à luta numa indústria porque um concorrente capitalista beneficia dela.

Outra variante desta afirmação é parte da discussão sobre as armas da Nato (embora, é claro, eu saiba que a discussão é mais complicada). Desculpe, mas vivemos num mundo sem um estado progressista do tamanho necessário para dar apoio material a uma luta desta envergadura e beneficiar de sua vitória. A menos que você considere outras potências imperiais como a China como progressistas.

Este balde de merda também é bom porque é profundo e pode conter muitas variações. A maior parte da discussão sobre as “esferas de influência” cai também nele de uma forma ou de outra. Levar esta posição a sério significa tomar o lado do status quo reacionário em que vivemos há décadas. Muitas vezes também acompanha a negação, desvalorização ou mesmo favoritismo do imperialismo russo (ou qualquer outro não ocidental). Às vezes também esconde outros pensamentos como o de que se deve apoiar qualquer regime canibal contra o imperialismo ocidental. Por parte de algumas pessoas da esquerda do Sul global, pode esconder a ânsia de vingança – esta ânsia, embora seja muito mais compreensível do que a política conformista de identidade dos observadores ocidentais, contém um desagradável desrespeito ao povo ucraniano, sobre cujas costas a vingança contra o imperialismo ocidental deve ser feita.

  1. “E a extrema direita do lado ucraniano?

A afirmação oculta aqui é: “Eu uso o problema da extrema-direita como uma folha de figueira para esconder a minha oposição à resistência ucraniana”. Sim, existem grupos de extrema direita na Ucrânia – como em muitos outros países – e sim, eles têm armas agora porque, surpresa, estamos em guerra. Mas aqueles que fazem esta afirmação na sua maioria não se importam com a extrema-direita do lado do exército russo ou com o assustador caminho da extrema direita geral da política russa com as respetivas implicações nos seus “assuntos” internos e externos (como, sim, a série de guerras). Não se importam que alguns cientistas políticos de esquerda da Rússia agora chamem o seu regime de pós-fascista. Não sabem quão grande é a participação da extrema direita na resistência ucraniana, não se importam com a participação de outros grupos ideológicos e a escala geral da resistência, não sabem como o significante vazio do “nazi” é usado pela propaganda russa para desumanizar quem quer que eles queiram. É apenas uma folha de figueira que, graças à propaganda russa e alguns outros fatores, se tornou um colosso.

  1. “A Rússia e a Ucrânia devem negociar. Versão melhorada: aqui estão as nossas propostas para um acordo de paz”.

Esta afirmação tem muitas variações ocultas, dependendo das propostas de um acordo de paz que estas pessoas expressam. A mensagem não declarada pode ser: “1) a Ucrânia deve capitular ou 2) estamos desligados da realidade e pensamos que as nossas propostas relativamente razoáveis de um acordo de paz são realistas agora”. A primeira opção é a mesma boa velha “paz por quaisquer meios”: as propostas pressupõem basicamente que a Ucrânia deve desistir dos territórios recém capturados e seguir quase todas as exigências políticas absurdas da Rússia, renunciando à independência do país e à autodeterminação do povo. Uma posição muito de esquerda, de facto.

Na segunda opção, o acordo de paz proposto está próximo do que estava na mesa de negociações na primavera, quando a invasão em escala total acabava de começar. Um dos principais pontos do acordo de paz proposto é que o exército russo deve se retirar dos territórios recém capturados – para a fronteira no dia 23 de fevereiro. Este ponto torna inútil toda a proposta neste momento e os proponentes não conseguem dar uma resposta razoável às perguntas sobre por que o regime Putin deveria fazer isto nesta fase, quem pode e como se pode “persuadi-lo” a fazer isso.

Há também a versão mais feia da mensagem não declarada: “estamos sãos, sabemos que as nossas propostas relativamente razoáveis são irrealistas neste momento, mas ainda assim as expressamos para mostrar que aqueles estúpidos ucranianos não querem negociar”.

  1. “O Ocidente deveria deixar de apoiar a Ucrânia porque isto pode-se transformar numa guerra nuclear”.

A mensagem oculta: “qualquer país nuclear pode fazer o que quiser porque nós temos medo”. Eu também tenho medo da guerra nuclear. Mas manter esta posição é apoiar o status quo reacionário e facilitar a política imperialista. E o que está em falta nesta discussão são as consequências desastrosas do ataque da Rússia para o movimento mundial pelo desarmamento nuclear. Agora, dificilmente posso imaginar por que qualquer país desistiria do seu arsenal nuclear voluntariamente tendo medo de seguir o “destino” da Ucrânia (procure no Google “Budapest Memorandum”). E não é o Ocidente o culpado nisto.

  1. “Nós nem sequer falaremos convosco porque é a favor das armas”.

A mensagem oculta: “não nos importamos com a realidade material desta guerra e é pena ou nem por isso que tenham tido o azar de serem atacados por um país imperialista não ocidental, só não façam intervenções desconfortáveis que coloquem em causa o nosso imaginado internacionalismo monolítico unipolar e centrado no Ocidente”. Esta é, naturalmente, uma encruzilhada das muitas afirmações anteriores, mas decidi colocá-la separadamente porque esta é uma brilhante manifestação que nós, ucranianos de esquerda, ouvimos às vezes e que nos faz questionar sobre solidariedade, internacionalismo, atenção às estruturas de desigualdade de poder, anti-imperialismo e todas essas coisas importantes, mandadas para o lixo em plena luz do dia diante dos nossos olhos.

  1. “Boa resistência russa versus má/inconveniente/não existente resistência ucraniana”.

E por último, mas não menos importante – na verdade, esta é a que mais me faz reagir. Esta merda desencadeia em mim algumas emoções irracionais das quais me envergonho. Não há nenhuma mensagem escondida aqui. Um dos exemplos extremos é quando num comício da esquerda fala um ativista russo anti-guerra e todos ouvem, mas quando é uma pessoa de esquerda ucraniana com basicamente as mesmas mensagens, algumas pessoas saem de propósito da sala e vaiam. Os militantes de esquerda ucranianos podem ser questionados como se não tivessem o direito de participar de uma discussão sobre esta guerra se nenhum opositor à guerra russo estiver presente – ainda que daí a apenas alguns dias participem de uma outra discussão com representantes russos anti-guerra. Como ousam os militantes de esquerda ucranianos falar sobre a invasão russa sem os militantes russos, certo?

Estes são apenas exemplos extremos, mas há um mar de variações moderadas: apoiar e admirar a resistência russa anti-guerra e ficar insensível face à ucraniana. Espalhar algumas mensagens do movimento russo anti-guerra e ignorar as mensagens da esquerda ucraniana. Fingir que a resistência ucraniana não existe. Escrever sobre os valentes e fortes opositores russos à guerra e, ao mesmo tempo, descrever os ucranianos apenas como perdas civis, refugiados, pobres vítimas.

A resistência russa anti-guerra muitas vezes faz reivindicações semelhantes e apoia a esquerda ucraniana em relação à guerra: eles exigem armas para a resistência ucraniana, querem que a Rússia perca! Intrigantemente, esta semelhança não importa, certo? No entanto, a explicação é simples. A resistência russa contra a guerra é confortável, corresponde a muitas reivindicações e mensagens ocultas. São contra o seu governo. Não têm armas nas suas mãos. No final, são corajosos e merecem ser ouvidos, ao contrário das pobres/teimosas/nacionalistas/militaristas – por outras palavras, inconvenientes – pessoas da esquerda ucraniana que se recusam a ser vítimas confortáveis. Sabem por que surgiu esta diferença entre a resistência esquerda ucraniana e a resistência anti-guerra russa? Porque não é a Rússia que está sob ataque imperialista e não é a oposição russa que está a travar uma guerra defensiva pela autodeterminação.

Sei que faltam algumas reivindicações e mensagens ocultas. Algumas delas são obviamente demasiado disparatadas para discutir, como “mas os EUA fizeram muito pior”, “a Rússia socialista”, “o regime nazi de Kiev”, “14.000 civis mortos pelo governo ucraniano”, “não seja tão emotivo”, “não há nada de bom para defender na Ucrânia” (sim, esta é verdadeira!). Há também alguns pontos que são muito dolorosos para que eu os possa discutir agora.

Sei que o internacionalismo e a solidariedade prática não se estão a desfazer pela primeira vez. Mas não se pode sequer abordar (novamente) a sua reconstrução, ignorando o que está por trás destas mensagens ocultas: ilusões idealistas, estruturas de desigualdade do poder político, correntes reacionárias e todas as outras merdas que permitem que tantos olhem para o lado face ao imperialismo russo e à luta ucraniana pela autodeterminação.


Oksana Dutchak é socióloga em Kiev, doutorada em Ciências Sociais, vice-diretora do Centro de Investigação Social e do Trabalho. As suas investigações incidem sobre protestos laborais, desigualdade de género, marxismo e feminismo marxista.

Texto originalmente publicado na revista Commons. Traduzido para português pela revista Movimento. Editado pelo Esquerda.net para português de Portugal.

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