Como é que isto se faz?
Depois de se ler o 1º conto, tem-se medo de avançar para o segundo. As páginas respiram crueldade. E, no entanto, não há excessos nesta escrita. É o género humano que ali está sem máscaras, homens e mulheres vindos de mundos vários. É a vida, íntima e pública, a vida que se vai abrindo. Sem doçuras. Sem piedades. Num desassombro de luz crua que não cega. Às vezes fere e outras arrepia.
Como é que isto se faz?
Ema, João Pedro, Ofélia, Moçambiques de outras reencarnações e Portugais actuais e passados saltam-nos das páginas em carne viva. Vestidos manchados de mênstruo, abelhas assassinas cúmplices, caranguejos esmagados num prenúncio de psicopatia, acompanham estas personagens, estes pedaços de existências variadas que aqui são narrados sem artifícios a mascarar o que quer que seja.
Como é que isto se faz?
Essa é a pergunta.
" Faça de conta que não falou comigo", diz a filha de Gilberta ao saber da morte do pai. Não quer atrasar um jantar. Memórias vão comparecendo no velório. De novo Moçambique, independências, fins de ciclo e de colónias, de formas de viver.
A crise do imobiliário não afecta Inês. Angolanos e Russos compram casas de milhões. Novas elites económicas nascidas do dinheiro fácil. Quase sempre criminoso. Trabalha, trabalha e trabalha. Só depois percebe para onde vai o dinheiro.
Zé Maria está doente. Clandestinamente doente. A pandemia emprestará alguma legalidade ao secretismo em que foi encerrando os dias. A mulher, Adriana, do outro lado do mundo, também tem esqueletos no armário. Muitos. A morte de ambos, em continentes diferentes, é igual à vida. Também ela em espaços diversos.
Como é que isto se faz?
Como é que se consegue ter este olhar caleidoscópico sobre a realidade, este olhar que nunca é explícito, mas tão certeiro, tão profundamente devastador, que nos vai retratando seres humanos, sociedades, longínquos ways of life, regimes, perdas irreversíveis, traumas ocultos que à primeira oportunidade se revelam e rebelam...
Como é que isto se faz?
Essa é a pergunta. Sem recurso a cambalhotas de palavras, metáforas, assim com esta limpeza, esta assepsia de prosa clara.
Como é que isto se faz? Essa é a pergunta.