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A deserção à Guerra Colonial: história, memória e política

A extensão, natureza e impacto do fenómeno da deserção no quadro da guerra colonial (1961-1974) permanece ainda pouco explorado. Existindo ainda lacunas historiográficas, será já de evidenciar o número relativamente significativo de desertores e refratários. Excerto do artigo de Miguel Cardina, publicado na Revista de História das Ideias.
O grupo de desertores na serra do Gerês no dia 23 de Agosto de 1970. Arquivo Fernando Cardeira.

A extensão, natureza e impacto do fenómeno da deserção no quadro da guerra colonial (1961-1974) permanece ainda pouco explorado. Um estudo que efetuei juntamente com Susana Martins aponta para a existência de cerca de 9.000 desertores (com lacunas pontuais em certos anos e setores militares), devendo a isso associar-se um número de refratários na ordem dos 10 a 20 mil jovens e de faltosos à inspeção que ronda os 200 mil jovens – ou seja, perto de 20% dos rapazes chamados à inspeção na então metrópole, de acordo com dados do próprio Exército (Cardina e Martins 2019; Resenha 1988: 258). Existindo ainda lacunas historiográficas, será já de evidenciar o número relativamente significativo de desertores e refratários – acima, por exemplo, do 1% que terá acontecido durante a guerra da Argélia (Quemeneur 2011) – que poderá ter várias explicações: a maior debilidade das estruturas militares e do Estado para vigiar a juventude mobilizada para a guerra; a existência de canais e de redes familiares e comunitárias instaladas na emigração europeia; a crescente ilegitimidade de uma guerra prolongada e distante (Cardina 2018; Cardina e Martins 2019).

Ao mesmo tempo, importa salientar que a categoria de desertor foi sendo revestida de apropriações discursivas vinculadas a distintos usos jurídicos, políticos ou memorialísticos. A leitura legal em vigor durante a guerra distinguia refratários (aqueles que faltavam à inspeção militar) de desertores (aqueles que abandonavam as Forças Armadas já na situação de militares). Todavia, não é incomum, nomeadamente no discurso memorial, a mescla entre as duas categorias jurídicas, lendo-as, de forma agregada, a partir da vontade política de recusar a guerra e das consequências pessoais que daí advieram. Por outro lado, sublinhe-se que estamos a falar de trajetos de desafetação sempre singulares e com diferenças de conjunto. Não é o mesmo desertar de Portugal ou de uma das três frentes de guerra. E, aqui, não é o mesmo ser um desertor vindo da metrópole ou um desertor negro, incorporado no quadro do crescente processo de «africanização» da guerra. Como não é obviamente irrelevante, no gesto tomado, o contexto, a patente, o quadro motivacional ou a disponibilidade financeira.

Neste artigo será examinada a deserção e os gestos de desobediência à guerra colonial feitos no âmbito das Forças Armadas Portuguesas entre 1961 e 1974. Pretende-se aqui, num primeiro momento, efetuar um mapeamento sobre a produção historiográfica, testemunhal e audiovisual produzida até ao momento sobre o tema no quadro mais vasto da memorialização da guerra. Examina-se, de seguida, o discurso testemunhal sobre o tema produzido antes e depois do 25 de abril, pondo em evidência os seus contextos de produção, a sua função e as suas particularidades. Argumenta-se, por fim, que a memória da deserção fornece um padrão mnemónico alternativo, com base na denúncia da violência e da injustiça da guerra.

Guerra à guerra: um estado da arte

A guerra colonial foi um denso e marcante acontecimento histórico, determinando o golpe que viria a derrubar a ditadura do Estado Novo. De forma aparentemente paradoxal, ela tem vindo a alimentar um pulsar memorial feito mais do interditos e silenciamentos do que de debates evocativos que cruzem as dimensões testemunhais com a reflexão sobre a natureza do conflito, os seus impactos e os seus legados. Por diferentes razões, em Portugal a guerra foi sendo envolvida em «políticas do silêncio» que foram sendo alvo de específica modelação ao longo das últimas quatro décadas (Cardina 2019). Sobretudo a partir da década de 1990, um conjunto de ações estatais (como o reconhecimento do Stress Pós-Traumático e a criação de uma rede de apoio) e de memorializações públicas e de grupo (como a inauguração do «Monumento aos Combatentes do Ultramar» e o aumento dos convívios de ex-militares) veio paulatinamente trazer maior visibilidade ao tema, que se tem vindo a acentuar nos últimos anos na historiografia, nas artes, na produção testemunhal em suporte escrito ou digital ou na recente profusão – ainda pouco visível e analisada – de monumentos e memorais um pouco por todo o país.

Todavia, essas evocações tenderam, de forma dominante, a centrar-se na figura do combatente – pendularmente representada ora como «herói» ora como «vítima» – e a rasurar as dimensões violentas do conflito e a sua integração no tempo longo colonial, como tem vindo a ser sublinhado (Power 2011; Peralta 2014; Martins 2015; Loff 2015; Antunes 2015; Cardina e Martins 2018). Mais recentemente – num período em que a série A Guerra (2007-2012), de Joaquim Furtado, concitara uma significativa audiência televisiva – assiste-se a uma diversificação de olhares sobre a guerra e de análise de outras figuras a ela associadas, para além dos combatentes provenientes da então metrópole. Sem pretensões de exaustividade, é o caso da reflexão em torno da pós-memória e dos filhos de ex-combatentes (Ribeiro e Ribeiro 2013; Vecchi 2013; Khan 2016), da africanização do conflito e dos soldados negros na tropa portuguesa (Rodrigues 2012; Gomes 2013; Oliveira 2017), do papel das mulheres e do impacto da guerra nas suas vidas (Ribeiro e Ribeiro 2004; Ribeiro 2007; Pessoa 2011; Branco 2015), dos deficientes das forças armadas (Martins 2016) ou dos filhos deixados pelos combatentes em África (Gomes 2018).

Neste quadro, a história e a memória dos processos de recusa à guerra tem suscitado igualmente alguma atenção académica e mediática. Referências ao tema da deserção surgiram mencionadas em livros e artigos relativos ao debate nas oposições sobre a sua justeza ou ilegitimidade (Bebiano 2002 e 2006; Madeira 2004; Cardoso 2009; Cardina 2010 e 2011; Pereira 2013; Pimentel 2014a; Pereira 2015; Strippoli 2016; Cordeiro 2017) ou com enfoque mais explícito nas dinâmicas migratórias, nas redes internacionais de apoio e na experiência de exílio (por ex., Pereira 2013 e 2014; Martins 2018). No terreno da memorialística, e para além das vivências trazidas a lume a partir das redes sociais, registe-se igualmente um conjunto de livros sobre o exílio que afloram a temática da desobediência e recusa da guerra (por ex., Costa 2005; Freire 2007; Sabino et al. 2009; Barreto et al. 2011; Baptista 2014; Raposo 2019).

No domínio dos testemunhos publicados, refiram-se ainda as memórias de líderes dos movimentos de libertação que, por terem sido desertores ou refratários, detalharam por escrito a sua passagem pelas Forças Armadas Portuguesas e as circunstâncias da fuga (por ex., Martins 2001; Carreira 2005; Veloso 2007; Graça 2012). De salientar são também as referências à «fuga dos 100» – ou seja, à saída do país, durante o Verão de 1961, de várias dezenas de jovens africanos colocados na eminência de irem combater os movimentos de libertação que apoiavam ou com os quais tinham já relações. Esse emblemático acontecimento tem sido referido em documentários sobre a época – como o angolano Independência, produzido por Paulo Lara e Jorge Cohen e realizado por Mário Bastos – e deu o mote a um documentário de Diana Andringa: Operação Angola – Fugir para Lutar (ATD 2015; Andringa 2015).

Na verdade, poucas haviam sido as memórias centradas, de modo explícito, na temática da deserção. Um caso relativamente singular é testemunho de Mário Moutinho de Pádua, médico e militante do PCP, que desertara do norte de Angola e que viria depois, a partir de Conacri, a colaborar ativamente com o PAIGC. Em 1963 saíra no Brasil o livro Guerra em Angola. Diário de um Médico de Campanha e, quase quarenta anos depois, Mário Pádua volta ao tema para escrever No Percurso de Guerras Coloniais, 1961-1969 (Pádua 1963; 2011).

Outros dois livros merecem referência. O primeiro – Desertor ou Patriota, de David Costa (2004) – é o testemunho pessoal de um desertor que não o pretendeu ser. Antigo soldado na Guiné em 1967, o narrador conta a sua rocambolesca história, iniciada depois de se ter perdido no mato e fingir a sua deserção ao encontrar-se com a guerrilha do PAIGC. O gesto levaria a que fosse conduzido pela guerrilha até ao Senegal, acabando depois por escapar e conseguir regressar a Bissau na sequência de várias peripécias. Esperando poder esclarecer a sua situação, será preso, alvo de várias sevícias e julgado por deserção. Condenado a seis anos, três meses e um dia, acabará por cumprir dois anos de cadeia na Guiné, regressando a Portugal em 1971. Ainda hoje, como menciona, é considerado desertor, mas sabe-se «inocente dessa acusação» (Costa 2004: 157). Trata-se, pois, de uma história sofrida que, décadas depois, o antigo soldado pretende ainda esconjurar: entre o rótulo de “desertor” e o de “patriota” existe uma distância incomensurável e a evidência de um equívoco com o qual se encontra ainda existencialmente desavindo.

De diferente teor é O Pé na Paisagem, de Filipe Leandro Martins (1981). Tirando alguma produção poética, é dos raros romances sobre a experiência da deserção, da passagem a salto pela fronteira luso-espanhola e do exílio. Conta a história da deserção do narrador e de um colega, com amplas referências à vida quotidiana na tropa, ao discurso ideológico da época e às interrogações entre ir para a guerra ou desertar e encaminharse para o exílio. Apesar do registo em prosa ficcional, recolhe inspiração biográfica no percurso do autor. Falecido em 2014, Filipe Leandro Martins desertara de Santa Margarida em outubro de 1968, aproveitando as férias que antecederam o embarque, e viria a instalar-se na Bélgica onde, como militante do PCP, participa até 1974 na dinamização de estruturas destinadas ao acolhimento de desertores e refratários.

Apesar de já ter sido justamente mencionada como uma questão polémica (Pimentel 2014b) e um tópico marginal na memória pública portuguesa (Bebiano 2016), o certo é que, como atrás ficara sugerido, um novo interesse se tem operado nos últimos anos. A este respeito, exigem menção especial os dois volumes de testemunhos de desertores, refratários e anticolonialistas – Exílios (2016) e Exílios 2 (2017) – organizados no quadro da Associação de Exilados Políticos Portugueses (AEP 61-74). Com efeito, a criação da AEP61-74, em novembro de 2015, acentua uma fase de maior visibilidade das memórias do exílio e da deserção, com a edição dos referidos livros, alimentando um conjunto variado de debates e apresentações em Portugal e no estrangeiro, bem como reportagens nos meios de comunicação social e a realização de encontros académicos e discussões públicas sobre o tema, de que é exemplo o colóquio O (as)salto da memória: história, narrativas e silenciamentos da deserção e do exílio[i]. A associação tem em curso um projeto multifacetado de memorialização do exílio e da recusa da guerra[ii] e tem participado em iniciativas e jornadas públicas mais gerais, como é o caso da sua integração como bloco autónomo nas manifestações do 25 de Abril, em Lisboa.

No campo audiovisual, o realizador luso-francês José Vieira realizara já, em 2005, duas curtas-metragens centradas no tema da deserção: Canto do Desertor e Uma ida só. Em 2012 foi a vez de Rui Simões lançar o documentário Guerra ou Paz. O realizador produz aqui um retrato do fenómeno da deserção – ele mesmo fora refratário – mas também uma inequívoca utilização estratégica da memória. Aos relatos dos antigos desertores e refratários sobrepõe a carta aberta da jornalista Myriam Zaluar a Pedro Passos Coelho, então Primeiro-Ministro português durante a intervenção da troika e a aplicação de medidas de austeridade, criticando duramente o que havia sido um convite aos jovens portugueses para “saírem da sua zona de conforto” e emigrarem. A saída forçada de jovens do país devido à guerra era aqui lida em paralelo com a emigração forçada de jovens para fazer face ao desemprego, transformando a deserção numa memória operativa para o combate político do presente.

Ainda no terreno audiovisual, em 2017, Luís Godinho realizou – com argumento de Luís Godinho e do artista plástico António Couvinha – um curto documentário de 15 mn. intitulado O Salto, centrado nas vivências de um conjunto de jovens crescidos em Évora e que, a partir do final da década de 1960, decidem escapar para França e para a Holanda como forma de evitar a ida para África. Assinale-se também, em 2018, a saída do documentário O Trilho do Poço Velho, no contexto de uma série de atividades que a AEP61-74 levara a cabo a propósito dos Trilhos do Salto, trabalhando a memória das passagens clandestinas na fronteira luso-espanhola.

Por seu turno, Ana Aranha realizou recentemente, para a Antena 1, o programa Memórias do Exílio, com depoimentos de estudantes, artistas, militantes e desertores, e posteriormente publicado em livro (Aranha e Ademar 2018). Em 2017, Ricardo Correia escreveu e encenou a peça de teatro documental O meu país é o que o mar não quer, publicada entretanto em livro, colocando em palco experiências de exílio e deserção (Correia 2019). Por fim, importa ainda referir a atividade da associação Mémoire Vive – que procura realçar memórias alternativas e subalternas da presença portuguesa em França – e que dinamizou em Paris, em abril e maio de 2019, uma exposição e um conjunto de debates dedicado à recusa da guerra colonial.

Denunciar a guerra e o colonialismo

Esta recente profusão de trabalhos e de atividades não significa que o tema da deserção tenha deixado de ser o que Enzo Traverso designa como uma «memória fraca» (2012: 71-87), ainda observada, em múltiplas circunstâncias, como um gesto inadequado, e a sua recordação como uma espécie de desonroso desafio à memória da guerra e dos seus combatentes. A este aspeto se regressará adiante. Por agora importa anotar como, na verdade, a evocação do tema fora contemporânea da própria guerra, procurando interferir na discussão sobre a legitimidade do combate colonial levado a cabo em África, funcionando igualmente como um elemento de socialização política e de dissenso ideológico no seio das oposições.

Exerto do artigo de Miguel Cardina "A deserção à guerra colonial: história, memória e política", publicado na Revista de História das Ideias, 38, 181-204.

Aceda ao PDF do artigo completo aqui.

[PDF foi substituído a 02.07.2020 com a versão atualizada do artigo de Miguel Cardina]


[i] O evento decorreu em Lisboa, a 27 de outubro de 2016, numa organização conjunta do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, do Centro de Documentação 25 de Abril da Universidade de Coimbra, da Associação de Exilados Políticos Portugueses, do Centro em Rede de Investigação em Antropologia e do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa. Participaram Irene Pimentel, Sónia Vespeira de Almeida, Sónia Ferreira, Victor Pereira, Rui Bebiano, Miguel Cardina, Susana Martins, Fernando Cardoso e Cristina Santinho. Nessa ocasião, o Centro de Documentação 25 de Abril lançou uma exposição virtual sobre o tema. Num outro sentido, refira-se também a tertúlia «Um livro, uma revista, uma canção contra a Guerra Colonial». Sobre esta última atividade, cf. Melo 2015.

[ii] Trata-se do projeto Ecos – Arquivar o Exílio, Contrariar o Silêncio. Memórias, Objectos e Narrativas de Tempos Incertos, numa parceria com o Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Association Mémoire Vive / Memória Viva, Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) – tutela URMIS, Universidade Nova de Lisboa, Universidade de Copenhaga e Casa da Esquina – Associação Cultural.

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Sobre o/a autor(a)

Historiador, doutorado em História, investigador do CES/UC.
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