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A democracia incrivelmente em retração do Irão

Pela primeira vez, o resultado da eleição presidencial foi pré-determinado e isso refletiu-se na mais baixa taxa de eleitores da história da República Islâmica do Irão. Raisi, um juiz religioso conservador que integrou o Comité da Morte, responsável pelas sentenças de morte a opositores, venceu facilmente. Por Dostmohammad Punjabi.
Ebrahim Raisi. Foto de Mohammad Hossein Taaghi/Tasmin News/Wikimedia Commons.
Ebrahim Raisi. Foto de Mohammad Hossein Taaghi/Tasmin News/Wikimedia Commons.

Nota da edição: as eleições presidenciais iranianas aconteceram a 18 de junho. Este texto foi publicado originalmente três dias antes mas as previsões nele contidas neste concretizaram-se totalmente: Raisi venceu com 72,28% dos votos e a percentagem de eleitores desceu 24,55%, tendo-se ficado pelos 48,78%, a mais baixa da história da República Islâmica do Irão.


Há uma anedota entre os iranianos de que o sistema político iraniano deve ser bem mais avançado do que o dos Estados Unidos: meses antes da eleição norte-americana, milhões tinham dúvidas sobre quem seria o vencedor, mas meses antes da eleição iraniana, todos estavam certos sobre quem seria o vencedor.
O Irão iniciou um processo eleitoral no qual o voto é pré-determinado e no qual a participação eleitoral atingirá provavelmente um baixo nível recorde. O líder Supremo Ali Khamenei parece ter escolhido a dedo Ebrahim Raisi, da linha-dura e que chefia o sistema judicial, para suceder a Hassan Rouhani na presidência.

Isto nunca tinha acontecido no Irão, e desde 1997 – quando Mohammad Khatami, um candidato reformista, conquistou a presidência – as eleições têm sido especialmente imprevisíveis e dramáticas. Khatami continuou a desafiar as adversidades ao ganhar outro mandato em 2001 contra candidatos conservadores. Quatro anos depois, um desconhecido apoiado por Khamenei chamado Mahmoud Ahmadinejad subverteu os arranjos anteriores. Apesar de ser ostensivamente um extremista de direita, secretamente cultivava sentimentos anti-establishment. Enquanto isso, um movimento popular democrático chamado Movimento Verde, nascido na eleição de 2009, abalou o sistema por mais de um ano.

Em 2013 e 2017, outro candidato reformista, Hassan Rouhani, concorreu com uma plataforma política a favor da adesão à ordem global, da desescalada e da reversão de restrições sociais e religiosas. Ele derrotou facilmente os candidatos da linha dura que se organizaram contra ele, incluindo Raisi.

Em todas essas ocasiões, uma mobilização popular e espontânea emergiu de baixo. O regime tolerou isso como o preço a ser pago pela manutenção da sua legitimidade e uma mostra da sua soberania popular.

Essas eleições passadas não foram completamente democráticas. As mulheres não podem se candidatar e os candidatos devem ser avaliados por um processo no qual somente os provenientes da elite religiosa, em última instância, têm permissão para concorrer. Ainda assim, as eleições fornecem oportunidades para os dissidentes dentro do regime darem voz às suas opiniões e, até mesmo, serem eleitos.

A participação em massa no processo eleitoral tem sido a pedra basilar da República Islâmica desde o início. Em 1979, o eleitorado votou para abolir a monarquia. Este é um legado do fundador da república, Ruhollah Khomeini, que foi inflexível em afirmar que desviar-se deste modelo seria trair a sua visão. O líder supremo atual, Khamenei, até agora, seguiu a mesma fórmula. As eleições conferem tanto legitimidade quanto um dinamismo interno ao sistema, o que terá conseguido prolongar o poder do clero contra probabilidades formidáveis.

Sondagens de opinião informais indicam que é esperado que a taxa de participação, que, normalmente, anda à volta de 70% do eleitorado, caia abaixo dos 35%, chegando talvez aos 20%.

Se for permitido que a eleição aconteça nestas circunstâncias – sempre há a possibilidade de Khamenei reverter o processo por decreto – um pilar do sistema clerical, nomeadamente o seu elemento republicano, ficará permanentemente debilitado. Quando os eleitores se desentendem com um establishment político, não voltam a ser facilmente atraídos de volta às urnas. Este tipo de fissura, como enfatizou repetidamente o fundador da república, poderia pôr em perigo o regime islâmico à longo prazo.

Quem é Raisi?

Raisi é um juiz clerical de nível intermédio com 61 anos, que está, agora, em posição de chegar ao mais alto escalão do establishment teocrático na República Islâmica. Nas escolas religiosas, primeiro na cidade de Mashahd e depois na cidade sagrada de Qum, tornou-se um seguidor devoto de um clérigo chamado Noorollahian que, depois, se tornou assistente do guardião do Iman Reza Shrine, um dos centros nevrálgicos do regime clerical. Aos 23 anos, casou com a filha do futuro líder da oração de sexta-feira da cidade de Mashahd, um clérigo da linha dura chamado Ahmad Alamolhoda. Tanto o seu professor quanto o seu sogro tiveram papéis importantes na sua ascensão meteórica no firmamento jurídico-clerical. Graças a essas conexões, assim como ao seu talento para a manipulação política, subiu os escalões do sistema jurídico com incrível velocidade. Começando como promotor assistente e inspetor dos tribunais revolucionários nas províncias, logo se tornou um importante promotor numa cidade 30 milhas a oeste da capital. Aos 25 anos, Raisi encontrou o seu caminho para Teerão, onde assumiu um posto como assistente do general promotor chefe dos Tribunais Revolucionários, Ali Razini. Dois anos depois, em 1988, foi convidado para participar no chamado Comité da Morte para proferir pena de morte para milhares de prisioneiros políticos que se recusaram a renunciar às suas crenças políticas e ideológicas. Isto foi nos últimos meses da Guerra Irão-Iraque, nos quais a sensação de medo e paranoia impregnou o regime inteiro.

Depois de se juntar ao Comité da Morte, fez uma viagem tranquila até aos cargos mais altos como inspetor geral do Judiciário, promotor chefe do Tribunal Especial do Clero e, nos últimos três anos, juiz principal do Judiciário.

Mas até agora, as pessoas achavam que o Comité da Morte era formado por apenas três juízes. Poucas pessoas sabiam que Raisi era, na realidade, o quarto jurista, que presidia aos procedimentos. Este desenvolvimento surpreendente foi revelado em agosto de 2016 devido aos esforços da família de um clérigo dissidente morto, chamado Ayatollah Hossein Ali Montazeri.

Em agosto de 2016, a família de Montazeri divulgou uma mensagem gravada de um encontro no qual o clérigo morto advertiu os membros do Comité sobre os seus delitos sangrentos. Ele disse: “a história irá condenar-nos por isto e os nomes dos responsáveis serão escritos na história como criminosos”. Raisi habitualmente evita falar sobre as acusações, preferindo culpar Khomeini pelas ordens e minimizar o seu próprio papel.

A escolha de Raisi como o líder do Irão – numa época em que há rumores persistentes sobre a deterioração da saúde do líder supremo – é uma escolha enigmática. Pela positiva, o seu historial de luta incansável pelos interesses do establishment clerical faz com seja bem visto por uma variedade de fações e grupos que se reúnem sob o guarda-chuva das forças Principistas ou Conservadoras. Uma série de retrocessos – incluindo a perda das eleições para os odiados reformistas, a traição de Ahmadinejad, o assassinato de Qasem Soleimani, o colapso económico e o acordo nuclear desagregador – desmoralizaram essas fações da linha dura nos últimos anos e este vêm procurando uma figura carismática unificadora como Raisi para restaurar a confiança na sua ideologia.

Além disso, nos últimos anos, Raisi e a sua equipa fabricaram uma imagem dele enquanto batalhador incorruptível pelos mais fracos. A televisão estatal frequentemente transmite imagens das suas visitas a tribunais, fábricas fechadas e terrenos de camponeses pobres, onde é visto a discursar contra a má conduta do governo. Em toda essa cobertura, ele tenta parecer despretensioso e incomodado pela injustiça. Às vezes, é visto dando novas sentenças contra julgamentos passados no próprio local. Na sua página de internet, afirma que demitiu centenas de juízes e promotores públicos corruptos na sua capacidade de chefe do Judiciário.

Ainda assim, o facto de ter ganho a presidência de uma forma não competitiva e desigual, certamente manchará a sua reputação junto do eleitorado durante anos.

Mir-Hossein Mousavi, líder do Movimento Verde, que está em prisão domiciliária há mais de 10 anos, expressou a sua solidariedade com as pessoas que estão a boicotar a eleição. Chamando a eleição de “encenada”, condenou “a total eliminação e destruição do republicanismo”.

Até mesmo os dois maiores grupos reformistas-clericais – a Sociedade Clériga Militante e a Sociedade dos Investigadores e Professores de Teologia – que sempre encorajaram as pessoas a votar no passado, independentemente das condições antidemocráticas, não apoiaram candidatos. Os Professores de Teologia chamaram a eleição de “superficial”. Numa declaração divulgada pelo grupo em 26 de maio, alertaram que o Conselho dos Guardiães e “alguns elementos de fora” estão “empenhados em criar uma ordem de uma só fação”.

Ao mesmo tempo, o historial chocante de violação dos direitos humanos de Raisi – especialmente o seu papel no assassinato de centenas de prisioneiros políticos no verão de 1988 – é um grande risco para ele e seus apoiantes. Não é inconcebível que o Tribunal Internacional de Direitos Humanos de Haia inicie um processo contra ele, interposto por advogados das famílias das vítimas, e o considere culpado.

O fim de uma era?

Há muitos indicadores de que os decisores tinham optado por uma linha de ação que desafiava a norma, semanas antes do anúncio da lista dos candidatos aprovados. A 4 de maio, um porta-voz do Conselho dos Guardiães, a entidade encarregada de vetar candidatos, anunciou que tinha mudado as regras de seleção, apesar de que seria necessário uma emenda constitucional para que tal mudança pudesse ser feita. Alguns dias depois, outro porta-voz declarou, “as pessoas têm sempre a expetativa de ver uma grande taxa de participação eleitoral. No entanto, uma participação baixa não configura um problema para a credibilidade e legitimação das eleições do ponto de vista estritamente legal e estatutário”.

Finalmente, a 26 de maio, quando o Conselho dos Guardiães divulgou sua lista final de candidatos para a eleição de 2021, um nome, com exceção do atual vice-presidente e outros candidatos reformistas, estava ausente: Ali Larijani, porta-voz parlamentar durante três mandatos, ex-secretário do Conselho Supremo Nacional e conselheiro especial do líder supremo. Acreditava-se que Larijani era o único candidato que poderia ter derrotado Raisi (três dos seis juristas no Conselho dos Guardiães tinham sido escolhidos por Raisi).

Não será surpresa que poucas pessoas irão aparecer para votar a 18 de junho. Mesmo aqueles que acreditam que uma liderança monolítica tem uma melhor possibilidade de tirar o país do atoleiro económico e assim apoiam Raisi, podem não votar; a sua vitória já está pré-determinada.

O bloco eleitoral que tem vindo a evitar que o país se torne uma teocracia por completo – uma coligação de estudantes, jovens, secularistas e eleitores de classe média, que se juntam brevemente durante as eleições – está, agora, a boicotar a eleição. Estes viram as suas esperanças frustradas com a presidência reformista de Hassan Rouhani, cujo segundo mandato assistiu a uma depressão económica que devastou as condições de vida de dezenas de milhões de pessoas que eram os principais apoiantes dos reformistas. O dano foi tão grande que até mesmo se as sanções massivas impostas por Donald Trump fossem anuladas hoje, levaria anos para muitas pessoas reconstruirem as suas vidas.

Além disso, duas enormes ondas de protestos realizados pelos desempregados e trabalhadores pobres foram reprimidas de um modo exageradamente violento, alienando ainda mais os eleitores dos reformistas.

Com a perda da fé nos reformistas e a ausência de candidatos viáveis para desafiar o candidato oficial do establishment, foi um momento oportuno para acabar com o elemento republicano do regime. Esta ação teria incitado grandes ondas de protestos há apenas três ou quatro anos, mas foi recebida com um bocejo coletivo. De acordo com uma sondagem feita por Mehdi Nasiri, ex-ativista e publicitário da linha dura, 70% das pessoas inquiridas disseram que não participariam de qualquer tipo de eleição porque não viam razão para tal.

O caminho pela frente

Sem quaisquer grandes desenvolvimentos, a tendência está aqui para ficar. De acordo com alguns especialistas, entre eles um sociólogo iraniano proeminente chamado Taghi Azad Armaki da Universidade de Teerão, a maioria dos iranianos quer reformas, e, com isso, mesmo uma administração de linha dura que ocupa todos os três ramos do governo será forçada a moderar o seu radicalismo. “Eu acredito que os Conservadores terão que seguir o caminho reformista”, disse Armaki ao canal IRNA. “No entanto, se a eleição não se tornar polarizada, torna-se monolítica e, com isso, transforma ato de criticar num ato de oposição.” Como a maioria dos iranianos, Armaki não vê a eleição como criando perigos imediatos para o regime, mas diz que vai desgastar o sistema.

Outro académico da Universidade de Azad, que optou pelo anonimato, previu um futuro mais sombrio para o Irão. Disse-me que antecipa uma militarização mais profunda, um aumento da repressão e mais confrontos com outros países: “Se Raisi ganhar, o que parece o mais provável agora, antevejo um período curto de contenção e paz relativa seguido por uma séria deterioração das condições internas e externas com consequências imprevisíveis para toda a gente”.


Dostmohammad Punjabi é jornalista.

Publicado originalmente no The Nation a 15 de junho. Traduzido por Isabela Palhares para o Carta Maior. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.

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