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De oprimidos/as a opressores/as

Aprendemos a pelejar com ideias e dinâmicas que se procuram superiorizar por meio de uma gramática única, que cita sempre os mesmos, recorre às mesmas problemáticas e às mesmas conclusões e erradica quem não se interessa pelo mesmo manual de inflexão, mascarado de reflexão. Por Soraia Simões.
Foto de Soraia Simões

Há dias num encontro sobre práticas musicais, culturais e política alguém me disse que se há coisa que a passagem dos anos nos pode trazer é o aprender a lidar um pouco melhor com um conjunto de ontologias, gramáticas ou narrativas próprias e propositadamente intrincadas com as quais nunca, ou raramente, concordámos.

Aprendemos por conta e risco, por exemplo, a pelejar, por muito idiota que ele seja ou nos pareça ser, um conjunto de ideias e de dinâmicas que se procuraram superiorizar por meio de uma gramática única, que cita sempre os mesmos, recorre sempre às mesmas problemáticas e às mesmas conclusões e que erradica quem não se interessa pelo mesmo manual de inflexão, mascarado de reflexão, do seu caminho. A maioria oriundas da educação e formação mais convencionais onde os corpos que sofrem, se as mesmas se posicionarem à esquerda, são permanentemente evocados mas vivem únicamente, quase exclusivamente, na cabeça, nos corpos teóricos de quem, salvo (demasiadas) pontuais excepções, passa a falar pelos outros, aqueles corpos que efectivamente sofrem ou sofreram.

Agora imaginem esta situação:

uma vez, numa avaliação de fim de curso uma aluna, artista, corpo oprimido, bastante experiente resolve realizar um trabalho sobre o universo que melhor conhece, o seu. A ''velha'' professora dá-lhe boa nota, mas apressa-se a explicar o porquê de não lhe ter atribuído uma nota ainda melhor, quando comparada com as que distribui graciosamente pelos outros, os que professam as suas tentativas de comprometimento tardio com ''causas actuais'', pouco experientes: «você tem isto muito bem escrito, aprendi muito consigo, há coisas aqui, várias coisas, que não sabia, no entanto não encontrei a disciplina que lecciono, e a profundidade dos autores de que falámos nas aulas, no seu trabalho».

Agora imaginem que aquela professora, a uma distância inacreditável do tema em causa, nalguns dos pontos a roçar a ignorância sobre o mesmo, dizia:

- “você sabe mais disto do que eu, você recorreu a um leque de autores diferentes daqueles que falámos nas aulas fruto da sua experiência, mas isso é uma mais valia, você foi original na abordagem”.

Ou, simplesmente:

- «finalmente alguém que, depois de ler o que eu vos sugeri ao longo deste ano, consegue ter um pensamento crítico e exercer o contraditório sobre essas referências». Afinal, devia ser para isso que serve a educação, a academia: somar mentes diversas, acolher outros contributos, novas leituras e abordagens.

O texto sobejamente usado nas ciências sociais (eu inclusivé) de Gayatri Chakravorty Spivak (1988) no qual ela questionava a conversa entre Foucault e Deluze em Os Intelectuais e O Poder [1] e no qual expressava uma «indignidade do intelectual de falar pelos outros», na medida em que «aqueles que agiam poderiam falar por si mesmos» poderiam ter sido um pouco mais decisivos para esta ''velha'' professora tão ''progressista'' e tardiamente afecta às causas dos oprimidos urbanos. Quanto mais não fosse pensar que a dialéctica descrita pela autora («representation as speaking for» e «representation as re-presentation»), seria, é, poderá ser um caminho para tão «preocupada missão» da educação ao se querer aproximar do que é, ou foi «periférico» , «marginal», das artes aos corpos que sofrem, sofreram, sofrerão. Essencialmente porque nessa perspectiva se atribui relevância à intersecção de narrativas, a académica e a do legado da experiência explanada na partilha de outras (novas, renovadas) narrativas.

Mas, o problema da situação é ela ser mais do que imaginada, ter realmente acontecido e a ter presenciado. É ela me fazer compreender ao fim de alguns anos o demorado e duro que foi ''aprender'' a lidar, sem lhes virar costas, com o superiorizar das gramáticas dominantes, mesmo as que se acham (leia-se subinhado e em destaque se acham) progressistas e, até, de esquerda ao longo da nossa educação. Aquela professora representou naquele momento aquilo que o educador e filósofo Paulo Freire na célebre Pedagogia Oprimida revelou ser uma espécie de estratégia para o oprimido, ter de lidar com o opressor, para se tornar um dia o opressor: «quando a educação não é libertadora o oprimido quer-se tornar o opressor».

 

[1] Spivak, Gayatri Chakravorty (1988) Can the Subaltern Speak?.

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