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Da 5 Bloods – Irmãos de Armas: Spike Lee entrega o ouro ao bandido

Em Da 5 Bloods tudo corresponde à explosão de energia dos movimentos sociais renascidos após a letargia forçada a que fomos submetidos durante os meses de confinamento devido à pandemia do covid 19. Artigo de Paulo Portugal.
Imagem do filme Da 5 Bloods – Irmãos de Armas.

Entrámos no turbilhão do novo filme de Spike Lee, como deve de ser, ou seja, pelo trailer. E há que dizê-lo, poucas vezes sentimos uma vontade tão forte de viver tudo aquilo que por ali passa. Pois em Da 5 Bloods tudo corresponde à explosão de energia dos movimentos sociais renascidos após a letargia forçada a que fomos submetidos durante os meses de confinamento devido à pandemia do covid 19. Agora, como há 50 anos atrás, portanto em plena guerra do Vietname, a mensagem parece não ter mudado – aliás, de repente, nada parece ter mudado. A repressão e os protestos estão na rua. São assim as imagens do passado que nos batem hoje à porta, como que a assinalar, we’re back!

Da 5 Bloods | Official Trailer | Netflix

De certa forma, Da 5 Bloods – Irmãos de Armas, que nos surge de forma algo surpreendente pelo ecrã de televisão da Netflix, não deixa de ser uma sequência lógica do tremendo BlacKkKlansman – O Infiltrado (que mereceu o Grande Prémio do Júri, há dois anos em Cannes, bem como o Óscar de Melhor Argumento Adaptado) marcada pelo andar do nosso presente. Como se até de uma forma algo paradoxal, o aqui e agora se esforçasse por andar um pouco mais adiante, tal é o inacreditável reviver da História que vivemos. De resto, a mensagem do cinema de protesto de Spike Lee é portentosa, logo sinalizada pelas imagens de arquivo de Muhammad Ali, em 1978, quando explicou porque se recusara em participar na guerra do Vietname (aqui recordado quando diz "a minha consciência não me deixa ir matar o meu irmão. E matá-lo para quê? Nenhum vietcong alguma vez me chamou ‘nigger!’". Ou então pelo oráculo da História a evocar o discurso de ativistas como Angela Davis, em 1969, ou Bobby Seale, um ano antes, em imagens editadas com tumultos universitários, cargas de polícia e retratos de estudantes mortos, ou, já no epílogo, o excerto político do discurso de Martin Luther King, exatamente um ano antes de ser morto. Até porque alinhavado pelas sempre truculentas declarações de Trump. No final não faltará sequer o tão atual ‘black lives matter!’ Mas já lá vamos.

O problema é que, ao contrário de BlackKklansman, em que Lee conseguiu rir de si próprio, aceitando o repto de comédia com temas bem sérios, esse efeito não cola como se desejaria em Da 5 Bloods. Por muito que nos custe. Até pelo facto de Bloods ser mesmo o filme certo na altura certa e de falar de tudo o que é importante. Pena é desbaratar uma ideia fantástica – que à falta de melhor alternativa designaremos por fool’s gold, ou seja, o ‘ouro dos tolos’ -, pelo deslumbramento de algo que parece ouro, mas na verdade não passa de pirita. Algo que é incorporado no guião de Spike Lee ao colocar os 5 Bloods, um grupo de ex-combatentes do Vietname (são eles Delroy Lindo, Jonathan Majors, no papel do filho, Clarke Peters, Norm Lewis e Isiah Whitlock) a regressar ao território, meio século depois, para procurar um baú cheio de barras de ouro e, assim, honrar a memória de um dos companheiros que não voltou (Chadwick Boseman, o ‘Black Panther’, no filme da Marvel).

Então o filme é isso, um regresso ao passado de um grupo de homens velhos e marcados, inevitavelmente fadados para reencontrar os seus próprios fantasmas, bem como alguns clichés da nossa memória coletiva. Naturalmente, está lá o efeito Apocalypse Now, onde não falta sequer o embalo da Cavalgada das Valquírias, mas também uma evocação de Rambo, numa espécie de regresso do presente ao passado, incorporado até por um lado mais burlesco em que os flashbacks em que o grupo revive os momentos de combate com o inimigo vietcong (em conversões de enquadramentos diferentes) incluem os atores nos dias de hoje. Mas há mais. Temos um (dispensável) encontro com um franciú (Jean Reno a esforçar-se por fazer o pior possível) com a missão de levar o ouro (dos tolos) por dinheiro vivo, e cujos milhões teriam um ideal de missão a serem entregues a organizações humanitárias e de defesa dos direitos humanos. O contingente francês inclui ainda a presença de Mélanie Thierry integrada num grupo de desmontagem de minas ativas no local.

Mesmo que no papel, a tal ideia de Spike Lee não se levar a sério dificilmente teria dificuldade em subsistir, a sua concretização torna-se algo displicente, não se escusando mesmo a algumas cenas demasiado truculentas, e que nos coibimos de reproduzir para não estragar o efeito. Porque é ao tal efeito do ‘ouro dos tolos’ a que regressamos, ainda que não compreendamos bem o alcance, pois ficamos a meio caminho: já algo distanciado de urgência do conteúdo social e empurrados para uma deriva em que não desejamos embarcar.

No fim, fica a dúvida, teria Da 5 Bloods integrado o programa da edição deste ano do festival de Cannes (caso a edição deste ano não tivesse sido cancelada)? Eventualmente, mesmo fora de competição, não só por ser acompanhado pela Netflix, mas também por o próprio Spike ser o Presidente do Júri indicado para a Seleção Oficial. Como se sabe, esse conjunto de cerca de 50 filmes acabou por se agrupar na marca Cannes 2020 para apresentar futuramente em diversas salas de cinema depois de cessar o desconfinamento.


Artigo publicado no portal de cinema Insider.pt

Sobre o/a autor(a)

Jornalista de cultura e cinema, autor do site insider.pt
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