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Cultura: desafios da apropriação do espaço público

Habitar o território é instituir-lhe valor e identidade. O espaço público é o lugar de encontro dos indivíduos uns com os outros, de encontro também com o exercício da cidadania, permitindo desenvolver e consolidar a vida em comunidade. Por isso, a devolução dos espaços públicos aos municípios afigura-se de enorme importância para a consciência do papel do cidadão na sociedade e para a valorização do que é comum.
É obrigação dos Estados e, por extensão, dos municípios, responder aos direitos culturais das populações assentando estratégias no seu carácter transversal. Nesse sentido, a construção de territórios de pertença que fortaleçam o coletivo, a formação de espaços sociais e a recuperação patrimonial que valorize a memória e a identidade devem constituir-se como um dos eixos transversais para as políticas de desenvolvimento da cidade e dos territórios. Na definição de estratégias (culturais) para as cidades é essencial pensar a dimensão social e cultural dos espaços públicos e as suas implicações na configuração do comum, não só pelo seu papel na agregação em torno da valorização do simbólico e da identidade, mas também como facilitador de meios que suscitam a discussão e debate.
A valorização do património histórico é essencial para o fornecimento de sentido identitário aos lugares e para o posicionamento individual e coletivo em relação ao passado, presente e futuro. Neste sentido, as praças públicas, em contraposição à crescente urbanização resultante de um contexto predatório de especulação imobiliária (e que por isso configuram um alargamento dos territórios do privado) expõem aquilo que é o palco na vida das cidades, articulando ao mesmo tempo história, memória, cultura e identidade. A praça, a rua, são portadoras de significado atribuído, não apenas pela vivência coletiva atual ou pelos processos de socialização ao longo da história, mas também pela sua condição de testemunhas de factos e de momentos de viragem na história das cidades, fundamental na sua auto-representação.
A construção deste simbolismo tem como ponto essencial a dimensão identitária dos espaços, que a arte pública pode conferir. Por representar o que é humano, e em consciência do seu espaço e do seu tempo, a arte configura valor simbólico e identitário às comunidades. Arte e espaço público têm na cidade função de agregação social. Cada objeto artístico gera diferentes padrões de concordância e discordância, estimulando a disputa em lados a favor ou contra, mapeando o espaço público1. Por isso, a arte é fundamental no desenvolvimento de um espaço de crítica para dimensionar a esfera pública no espaço e, consequentemente, na capacitação individual de participação na comunidade e, por isso, articulada com o exercício de cidadania.
A instrumentalização da cultura enquanto ferramenta de construção identitária reflete-se na execução de políticas ditas culturais de cariz fortemente verticalizado (top-down - dirigista) orientadas para a criação de valor económico-financeiro numa lógica de lucro ou, pelo menos, de auto-sustentação, essencialmente viradas para a conservação patrimonial e das memórias históricas, com pouca ou nenhuma participação cidadã.
Neste contexto, qualquer tentativa de apropriação das ações culturais deve favorecer uma função colaborativa e de envolvimento das comunidades (bottom-up - apropriativa). A obra de arte pública deve ter dupla função: a de fornecer significados e suscitar debates ativos mas também promover a intervenção social, o mais alargada possível. Logo, o favorecimento de projetos que envolvam cidadãos e comunidades, atribuindo-lhes poder de decisão na definição de estratégias de planeamento, proporcionam maior significado de pertença sobre os locais onde habitam e estimulam formas de pensar os territórios, as suas modalidades de vivência e transfiguração.
No espaço público, enquanto território político, a confrontação entre estas duas visões (a dirigista e a apropriativa) é inevitável porque a Cultura, e consequentemente a produção artística, questiona incessantemente a Norma e a Forma, nega a Uniformidade e a Estática e pratica conscientemente a Transgressão, subvertendo o Dogma, busca Lógicas alternativas e está comprometida com o Real. Ou, por outras palavras, a uma cultura cristalizada essencialmente virada para o passado histórico, contrapõem-se culturas de rotura e de experimentação no questionamento do papel de cada individuo na construção da sua própria identidade social, incluindo a sua efemeridade.
A Cultura necessita de defender o que é comum, e de quem a defenda. Nos desafios próximos contamos com a revolução cultural autárquica, não de livro vermelho em punho, mas em formas de apropriação do espaço libertário necessário para a construção de outros futuros.
Artigo de Patrícia Barreira, Historiadora de Arte e Curadora e membro da Comissão Política do Bloco de Esquerda, e de Miguel Oliveira, Sociólogo e membro do secretariado distrital de Lisboa do Bloco de Esquerda.
1 Bruno Latour, From Realpolitik to Dingpolitik or How to Make Things Public http://www.bruno-latour.fr/sites/default/files/downloads/96-MTP-DING.pdf
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