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Cuba: um grito, por Leonardo Padura

O escritor cubano escreve sobre o que aconteceu em Cuba desde 11 de julho de 2021, considerando que “é também o resultado do desespero de uma sociedade que atravessa não só uma longa crise económica e uma crise sanitária pontual, mas também uma crise de confiança e uma perda de expectativas”.
O que aconteceu em Cuba desde 11 de julho de 2021 “é também o resultado do desespero de uma sociedade que atravessa não só uma longa crise económica e uma crise sanitária pontual, mas também uma crise de confiança e uma perda de expectativas” - Foto publicada por Dean Luis Reyes/Facebook
O que aconteceu em Cuba desde 11 de julho de 2021 “é também o resultado do desespero de uma sociedade que atravessa não só uma longa crise económica e uma crise sanitária pontual, mas também uma crise de confiança e uma perda de expectativas” - Foto publicada por Dean Luis Reyes/Facebook

Parece muito possível que tudo o que aconteceu em Cuba, desde domingo 11 de julho, tenha sido incentivado por um número maior ou menor de pessoas contrárias ao sistema, algumas delas até pagas, com o intuito de desestabilizar o país e provocar uma situação de caos e insegurança. Também é verdade que mais tarde, como costuma acontecer nestes eventos, ocorreram atos oportunistas e lamentáveis de vandalismo. Mas penso que nenhuma das evidências tira um pingo de razão ao grito que ouvimos. Um grito que é também o resultado do desespero de uma sociedade que atravessa não só uma longa crise económica e uma crise sanitária pontual, mas também uma crise de confiança e uma perda de expectativas.

as autoridades cubanas não deviam responder com os habituais slogans, repetidos há anos, nem com as respostas que essas autoridades desejam ouvir

A este protesto desesperado, as autoridades cubanas não deviam responder com os habituais slogans, repetidos há anos, nem com as respostas que essas autoridades desejam ouvir. Nem mesmo com explicações, por mais convincentes e necessárias que sejam. O que se impõe são as soluções que muitos cidadãos esperam ou exigem, uns manifestando-se na rua, outros opinando nas redes sociais e expressando a sua deceção ou discordância, muitos contando os poucos e desvalorizados pesos que têm nos seus empobrecidos bolsos e muitos, muitos mais, fazendo filas em resignado silêncio ao longo de várias horas ao sol ou à chuva, com pandemia incluída, filas nos mercados para comprar comida, filas nas farmácias para comprar medicamentos, filas para chegar ao pão nosso de cada dia e para tudo o que se possa imaginar e que possa ser necessário.

Penso que ninguém com um mínimo de sentimento de pertença, com sentido de soberania, com responsabilidade cívica pode querer (ou mesmo acreditar) que a solução para estes problemas venha de qualquer tipo de intervenção estrangeira, muito menos de natureza militar, como alguns chegaram a pedir, e que, também é verdade, representa uma ameaça que não deixa de ser um cenário possível.

Creio além disso que qualquer cubano dentro ou fora da ilha sabe que o bloqueio ou embargo comercial e financeiro dos Estados Unidos, como queiram chamá-lo, é real e se internacionalizou e se intensificou nos últimos anos e que é um fardo demasiado pesado para a economia cubana (como seria para qualquer outra economia). Quem mora fora da ilha e hoje quer ajudar os seus familiares que estão no meio de uma situação crítica, puderam constatar que é real e quão real é ao verem-se praticamente impossibilitados de enviar uma remessa para os seus familiares, só para citar uma situação que afeta muitas pessoas. É uma política antiga que, embora às vezes alguns esqueçam, praticamente todo mundo condenou por muitos anos em sucessivas assembleias das Nações Unidas.

E não creio que alguém possa negar que também foi desencadeada uma campanha mediática na qual, mesmo das formas mais grosseiras, foram divulgadas falsas informações que, ao fim e ao cabo, só servem para diminuir a credibilidade de seus gestores.

nego-me a acreditar que no meu país, por esta altura, possa haver tanta gente, nascida e educada entre nós, que se venda ou entregue à delinquência. Porque se assim fosse, esse seria o resultado da sociedade que os criou

Mas acredito, juntamente com tudo o que foi dito acima, que os cubanos precisam de recuperar a esperança e ter uma imagem possível do seu futuro. Se se perde a esperança, perde-se o sentido de qualquer projeto social humanista. E a esperança não se recupera pela força. Resgata-se e alimenta-se com soluções, mudanças e com os diálogos sociais, que, por não chegarem, causaram, entre tantos outros efeitos devastadores, os anseios migratórios de tantos cubanos e agora provocaram o grito de desespero de pessoas entre as quais certamente houve gente paga e delinquentes oportunistas. Mas nego-me a acreditar que no meu país, por esta altura, possa haver tanta gente, nascida e educada entre nós, que se venda ou entregue à delinquência. Porque se assim fosse, esse seria o resultado da sociedade que os criou.

A maneira espontânea, sem estar presa a nenhuma liderança, sem receber nada em troca ou roubar nada pelo caminho, com que uma quantidade notável de pessoas se manifestou nas ruas e nas redes, deve ser um alerta e penso que é um amostra alarmante das distâncias que se abriram entre as principais esferas políticas dirigentes e a rua (e isso até foi reconhecido pelos dirigentes cubanos). E só assim se explica que tenha acontecido o que aconteceu, sobretudo num país onde quase tudo se sabe quando se quer saber, como todos também sabemos.

Muito menos se pode usar como argumento convincente a resposta violenta

Para convencer e acalmar os desesperados, o método não pode ser as soluções da força e da obscuridade, como impor o apagão digital que cortou as comunicações de muitos durante dias, mas que não impediu as ligações de quem quer dizer alguma coisa, a favor ou contra. Muito menos se pode usar como argumento convincente a resposta violenta, especialmente contra pessoas não violentas. E já se sabe que a violência pode não ser apenas física.

Muitas coisas parecem estar em jogo hoje. Talvez até saber se depois da tempestade vem a bonança. Talvez os extremistas e fundamentalistas não consigam impor as suas soluções extremistas e fundamentalistas, e não se enraíze o perigoso estado de ódio que tem crescido nos últimos anos.

Mas, em qualquer caso, é necessário que cheguem soluções, respostas que não sejam apenas de natureza material, mas também de natureza política, e assim uma Cuba inclusiva e melhor possa responder às razões deste grito de desespero e perda da esperança que muitos dos nossos compatriotas, silenciosamente, mas com força, vinham dando desde antes de 11 de julho. Aqueles lamentos que não foram ouvidos e de cujas chuvas surgiram estas lamas.

Como cubano que vive em Cuba e trabalha e acredita em Cuba, assumo que tenho o direito de pensar e exprimir a minha opinião sobre o país em que vivo, trabalho e onde acredito. Sei que em momentos como este e ao tentar exprimir uma opinião, costuma acontecer que se diga "Você é sempre reacionário para alguém e vermelho para alguém", como disse Claudio Sánchez Albornoz. Eu também assumo esse risco, como homem que pretende ser livre, que espera ser cada vez mais livre.

Em Mantilla, 15 de julho de 2021.

Artigo do escritor cubano Leonardo Padura, publicado em La Joven Cuba. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

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