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A crise no Brasil, por Perry Anderson (parte 1)

Um texto de Perry Anderson que analisa a situação política no Brasil que levou ao desenrolar do processo de destituição de Dilma Rousseff. A segunda e terceira partes do artigo serão publicadas nos próximos dois dias.
Pessoas a celebrar a aprovação do processo de impeachment pela Câmara dos Deputados. Foto de António Lacerda, EPA/Lusa.

Os países dos BRICS estão em apuros. Por um tempo eles foram os motores do crescimento global enquanto o Ocidente estava envolto na pior crise financeira e recessão económica desde a Grande Depressão, mas agora tornaram-se a principal fonte de preocupação nos quartéis-gerais do FMI e do Banco Mundial. A China, acima de todos eles, por causa do seu peso na economia global: produção desacelerada e uma montanha de dívidas. A Rússia: sitiada, com a queda dos preços do petróleo e as sanções tirando seu quinhão. A Índia: segurando melhor as pontas, mas com preocupantes revisões estatísticas. A África do Sul: em queda livre. As tensões políticas emergem em cada um deles: Xi e Putin respondem às tensões com força bruta, enquanto Modi vai se afundando nas pesquisas e Zuma é lançado na lama junto do seu próprio partido. Todavia, em nenhum outro lugar as crises políticas e económicas se fundiram de forma tão explosiva quanto no Brasil, cujas ruas no último ano viram mais manifestantes do que o resto do mundo combinado.

Escolhida por Lula para a sucessão, Dilma Rousseff, a ex-guerrilheira que se tornou chefe de Estado, venceu a disputa presidencial em 2010 com a maioria esmagadora dos votos. Quatro anos depois foi reeleita, mas dessa vez com uma margem muito menor de votos, uma vantagem de 3% sobre o seu oponente, Aécio Neves, governador de Minas Gerais, num pleito marcado por uma polarização regional nunca antes vista, com um Sul-Sudeste industrializado voltando-se contra ela e com um Nordeste dando-lhe uma vantagem ainda maior do que em 2010, com 72%.

Escolhida por Lula para a sucessão, Dilma Rousseff, a ex-guerrilheira que se tornou chefe de Estado, venceu a disputa presidencial em 2010 com a maioria esmagadora dos votos. Quatro anos depois foi reeleita, mas dessa vez com uma margem muito menor

Mas, ainda assim, foi uma vitória definitiva, comparável à de Mitterrand sobre Giscard, e maior, para não dizer também mais limpa, do que a de Kennedy sobre Nixon. Em janeiro de 2015, Dilma – e neste ponto vamos abandonar os apelidos, como os brasileiros costumam fazer – começou sua segunda presidência.

Em três meses, grandes manifestações encheram as ruas das principais cidades do país, com cerca de pelo menos dois milhões de pessoas que exigiam a sua saída. No Congresso, o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) de Neves e seus aliados, encorajados pelo facto de as pesquisas mostrarem a queda vertiginosa na popularidade de Dilma, movimentaram-se para conseguir o seu impeachment.

No dia Primeiro de Maio, ela não conseguiu nem sequer dar o seu discurso tradicional transmitido pela televisão em todo o país. Anteriormente, quando o seu discurso no dia Internacional da Mulher foi transmitido, as pessoas começaram a bater panelas e fazer buzinões, numa forma de protesto que ficou conhecida como panelaço.

Da noite para o dia, o Partido dos Trabalhadores (PT), que desfrutara do mais longo e maior índice de aprovação do Brasil, tornou-se o partido mais impopular. Confidencialmente, Lula teria lamentado: “Vencemos a eleição. No dia seguinte, perdemo-la”. Muitos militantes questionaram-se se o partido iria sobreviver a tudo isso.

Da noite para o dia, o PT, que desfrutara do mais longo e maior índice de aprovação do Brasil, tornou-se o partido mais impopular. Confidencialmente, Lula teria lamentado: “Vencemos a eleição. No dia seguinte, perdemo-la”.

Como chegou a situação a este ponto? No último ano do governo Lula, quando a economia global ainda se estava a recuperar da primeira onda do crash financeiro de 2008, a economia brasileira cresceu 7,5%. Ao assumir o governo, Dilma instituiu uma política de controlo contra o superaquecimento da economia, o que deixou satisfeita a imprensa financista, naquilo que parecia ser uma política semelhante à que Lula teve durante o início de seu primeiro mandato. Mas logo que o crescimento experimentou uma queda vertiginosa e as finanças globais pareceram sombrias novamente, o governo mudou o seu rumo, criando um pacote de medidas que visavam dar prioridade aos investimentos em desenvolvimentos subsidiados.

As taxas de juros foram reduzidas, as dívidas trabalhistas foram abatidas, os custos da energia elétrica foram reduzidos, a moeda desvalorizou-se e foi imposto um limitado controle sobre o movimento do capital.[fn]André Singer escreveu a principal análise sobre este conjunto de medidas e o seu desenrolar no artigo "Cutucando onças com varas curtas" (Novos Estudos 102, jul. de 2015), um ensaio que pode ser lido como um epílogo ao seu estudo sobre a trajetória do PT, "Os sentidos do Lulismo: reforma gradual e pacto conservador" (2012), que investiga a mudança do seu eleitorado após 2005, quando ele perdera o apoio das classes médias e passou a ganhar a confiança dos pobres, que antigamente, com medo de desordem, votavam contra o partido. Numa combinação de sobriedade crítica e lealdade ao PT, Singer é talvez seu mais preparado intelectual – e talvez se possa argumentar que seja o mais impressionante pensador social da sua geração na América Latina. Secretário de comunicação de Lula durante o primeiro mandato, desde que ele se tornou professor universitário acabou por ser mentalmente descartado pelo PT, que não demonstrou nenhum interesse no seu trabalho.[/fn] No embalo de todo este estímulo, durante a primeira metade do seu mandato, Dilma desfrutou de um índice de aprovação de 75%.

Mas, em vez de decolar, a economia desacelerou de um crescimento medíocre de 2,72% em 2011 para apenas 1% em 2012. Além disso, com uma inflação que já ultrapassava os 6%, em abril de 2013 o Banco Central aumentou os juros de forma abrupta, minando assim a base da “nova matriz económica” de Guido Mantega, o ministro das Finanças.

A economia desacelerou de um crescimento medíocre de 2,72% em 2011 para apenas 1% em 2012. Além disso, com uma inflação que já ultrapassava os 6%, em abril de 2013 o Banco Central aumentou os juros de forma abrupta, minando a base da “nova matriz económica” do ministro das Finanças

Dois meses depois, o país foi acometido por uma onda de protestos de massas cuja origem estava nas passagens de autocarro em São Paulo e no Rio, mas que rapidamente aumentaram a sua dimensão tornando-se expressões generalizadas de descontentamento com os serviços públicos e, estimulados pela mídia, também de hostilidade contra um Estado incompetente. Rapidamente a aprovação do governo caiu para metade.

Em resposta, ele bateu em retirada, dando início a reduções de caução nos gastos públicos e permitindo que os juros aumentassem novamente. O crescimento caiu ainda mais – seria praticamente zero em 2014 – mas o desemprego e os salários permaneceram estáveis. No fim do seu primeiro mandato, Dilma liderou uma desafiadora campanha para reeleição ao assegurar os seus eleitores que continuaria dando prioridade as melhorias nas condições de vida dos trabalhadores, assim como atacando o seu oponente do PSDB por planear reverter os benefícios sociais feitos pelo PT, cortando benefícios e atingindo assim os mais pobres. Apesar do contínuo ataque ideológico sofrido contra ela pela imprensa, Dilma conseguiu chegar à vitória.

Antes mesmo de seu segundo mandato começar formalmente, Dilma mudou o seu rumo. Ela rapidamente passou a defender que um pouco de austeridade era necessária. O arquiteto da nova matriz económica foi então dispensado do ministério das Finanças e quem assumiu foi alguém orientado pela escola de Chicago, o diretor da gestão de ativos do segundo maior banco privado do Brasil, assumindo um mandato que deveria reduzir inflação e restaurar confiança.

Os imperativos tornaram-se o corte nos gastos sociais, reduzir o crédito dos bancos públicos, leiloar propriedades do Estado e aumentar taxas para trazer o orçamento de volta a uma situação de superávit primário. Rapidamente o Banco Central aumentou sua taxa de juros para 14,25%. E já que a economia se encontrava estagnada, o efeito desse pacote pró-cíclico foi de mergulhar o país numa recessão generalizada – queda nos investimentos, salários a diminuir e o desemprego a duplicar. Enquanto o PIB contraía, as receitas fiscais diminuíam, piorando ainda mais o quadro de déficit e dívida pública. Nenhum índice de aprovação do governo poderia ter aguentado a rapidez de tal deterioração económica.

Os imperativos tornaram-se o corte nos gastos sociais, reduzir o crédito dos bancos públicos, leiloar propriedades do Estado e aumentar taxas para trazer o orçamento de volta a uma situação de superávit primário. Enquanto o PIB contraía, as receitas fiscais diminuíam, piorando ainda mais o quadro de déficit e dívida pública. Nenhum índice de aprovação do governo poderia ter aguentado a rapidez de tal deterioração económica.

Mas a crise de popularidade de Dilma não foi resultado apenas de um resultado previsível sobre o impacto da recessão nas condições de vida do povo. Ela foi também, por mais doloroso que seja admiti-lo, o preço a ser pago por Dilma ter abdicado das promessas pelas quais foi eleita. De forma generalizada, a reação dos seus eleitores foi de que a sua vitória poderia ser qualificada como ‘estelionato’, ou seja: ela enganou seus apoiadores ao cumprir o programa dos seus adversários de campanha. E isso não gerou apenas desilusão, mas também raiva.

Ainda que ocultas, as raízes desse fracasso vingaram justamente no solo do próprio modelo petista (isto é, do Partido dos Trabalhadores, PT) de crescimento. Inicialmente se poderia dizer que o seu sucesso dependia de dois tipos de nutrientes: um superciclo de aumento nos preços das mercadorias e um boom do consumo interno. Entre 2005 e 2011, os ganhos comerciais do Brasil aumentaram para mais de um terço, pois a demanda por matéria-prima da China e de outras partes do mundo aumentou o valor das suas principais exportações, assim como o volume de retorno fiscal para gastos sociais.

No final do segundo mandato de Lula, a fatia correspondente à exportação de bens primários entre as exportações brasileiras subiu de 28 para 41%, no que o espaço dos bens manufaturados caiu de 55 para 44%; no final do primeiro mandato de Dilma, as matérias-primas eram responsáveis por mais de metade do valor das exportações. Mas de 2011 em diante, os preços das principais mercadorias comercializadas pelo país entraram em colapso: o minério de ferro caiu de 180 dólares para 55 dólares a tonelada, a soja caiu de aproximadamente 40 dólares a saca para 18 dólares, o petróleo cru baixou de 140 dólares para 50 dólares o barril. E reagindo ao fim da bonança do comércio exterior, o consumo interno também entrou em declínio.

Durante o seu governo, a principal estratégia do PT foi expandir a procura interna ao aumentar o poder de compra das classes populares. E isso foi possível não apenas com o aumento do salário mínimo e com transferências de renda para os pobres – a ‘Bolsa Família’ – mas também por uma massiva injeção de crédito nos consumidores. Durante a década de 2005 a 2015, o total de débitos controlados pelo setor privado aumentou de 43% para 93% do PIB, com empréstimos aos consumidores atingindo o dobro do nível dos países vizinhos.

Durante o governo de Lula, a principal estratégia do PT foi expandir a procura interna ao aumentar o poder de compra das classes populares. Quando Dilma foi reeleita juntamente com a exaustão do boom das mercadorias, o período das vacas gordas também já não era mais viável. Os dois principais motores do crescimento tinham estagnado.

Quando Dilma foi reeleita, em 2014, os pagamentos de juros no crédito mobiliário estavam a absorver mais de 1/5 da renda média disponível dos brasileiros. Juntamente com a exaustão do boom das mercadorias, o período das vacas gordas também já não era mais viável. Os dois principais motores do crescimento tinham estagnado.

Em 2011, o alvo da nova matriz económica de Mantega foi estimular a economia a partir de um aumento nos investimentos. Mas os meios para fazê-lo tinham diminuído. Desde 2006, os bancos estatais passaram a aumentar gradualmente a sua quantidade de empréstimos, indo de um terço para metade de todo crédito – o portfólio do banco de desenvolvimento do governo, o BNDES, chegou a aumentar sete vezes seu valor desde 2007.

Ao oferecer taxas preferenciais de juros para as grandes companhias num valor muito mais alto do que os outros subsídios para as famílias pobres, a ‘Bolsa Empresarial’ passou a custar ao tesouro nacional o dobro do que custava a ‘Bolsa Família’. Favorável ao agronegócio e às construtoras, essa expansão direta dos financiamentos públicos foi um anátema pelo qual a classe média urbana passou a aderir a um movimento cada vez mais violento anti-PT, com a mídia nacional – amplificada pela imprensa ligada à finança de Nova York e Londres – lançando vitupérios sobre os perigos da intervenção do Estado nas finanças.

Assim, ao mudar de direção, Mantega esperava impulsionar os investimentos do setor privado com concessões tributárias e juros mais baixos, mas isso teve impacto na redução dos investimentos nas estruturas públicas do país, assim como pela desvalorização do Real que ajudou nas exportações manufatureiras. Mas todos esses agrados à indústria brasileira foram em vão.

Estruturalmente, as finanças são uma força muito maior no país. A capitalização combinada dos dois maiores bancos privados do Brasil, Itaú e Bradesco, é hoje duas vezes maior do que da Petrobrás e da Vale, as duas principais empresas extrativas do país, e com finanças muito mais saudáveis. As fortunas desses e de outros bancos foram concebidas de acordo com o maior sistema de juros de longo prazo do mundo – um horror para os investidores, mas um verdadeiro maná para os rentistas – e com um abissal spread bancário, com os mutuários a pagar de cinco a vinte vezes mais pelos seus empréstimos. Além disso, somando-se a este quadro, há também o sexto maior bloco de fundos de pensão do mundo, sem falar no maior banco de investimento da América Latina, uma verdadeira constelação de fundos de cobertura e de private equity.

Na esperança de que isso trouxesse o setor industrial para o seu lado, o governo confrontou os bancos ao forçá-los a aceitarem a recuarem o patamar sem precedentes de 2% dos juros no final de 2012. 

Na esperança de que isso trouxesse o setor industrial para o seu lado, o governo confrontou os bancos ao forçá-los a aceitarem a recuarem o patamar sem precedentes de 2% dos juros no final de 2012. Em São Paulo, a Federação das Indústrias (FIESP) brevemente expressou satisfação perante a medida, para logo depois pendurar bandeiras de apoio aos manifestantes anti-estatistas de Junho de 2013. Os industriais ficaram felizes ao colher os frutos de altos rendimentos durante o período de crescimento elevado do governo Lula, no qual virtualmente cada grupo social viu a sua posição melhorar.

Mas quando isso terminou durante o governo Dilma e as greves recomeçaram, não tiveram qualquer compaixão por quem os favorecera anteriormente. E não apenas as grandes empresas, assim como suas parceiras do Norte global, se encontravam cada vez mais em holdings financeiros que eram afetados negativamente por conta das políticas rentistas – e por essa razão, não poderiam virar as costas totalmente aos bancos e fundos de investimento –, mas o próprio grupo social a que pertenciam a maior parte dos empresários era formado por uma alta classe média que se tornara mais numerosa, vocal e politizada do que os antigos grupos de empresários, manifestando assim maior capacidade de comunicação e coesão ideológica perante a sociedade em geral.

A furiosa hostilidade desse estrato para com o PT foi inevitavelmente seguida também pelos industriais. Tanto os banqueiros do andar de cima como os profissionais do andar de baixo, estavam comprometidos a derrubar um regime que agora viam como ameaça aos seus interesses comuns, o que significou que os empresários tinham cada vez menos autonomia.

Contra essa frente, que tipo de apoio o PT poderia esperar? Os sindicatos, eram apenas uma sombra do seu antigo passado. Os pobres continuaram a ser beneficiários passivos do governo petista, que nunca se dispôs a educá-los ou a organizá-los, quanto muito mobilizá-los em torno de uma força coletiva. Movimentos sociais foram mantidos distantes do governo. Os intelectuais acabaram por ser marginalizados.

Contra essa frente, que tipo de apoio o PT poderia esperar? Os sindicatos, ainda que mais ativos no governo Dilma, eram apenas uma sombra do seu antigo passado. Os pobres continuaram a ser beneficiários passivos do governo petista, que nunca se dispôs a educá-los ou a organizá-los, quanto muito mobilizá-los em torno de uma força coletiva. Movimentos sociais – dos sem-terra e dos sem-teto – foram mantidos distantes do governo. Os intelectuais acabaram por ser marginalizados.

Mas não houve apenas uma ausência de potencialização política das energias vindas dos subalternos. Também não existiu uma verdadeira política de redistribuição de riqueza ou de renda: a infame estrutura tributária regressiva herdade de Fernando Henrique Cardoso para Lula, que penalizava os pobres e deixava os ricos intocados, foi mantida.

Houve, de fato, alguma distribuição que acabou por melhorar consideravelmente as condições de vida dos mais miseráveis, mas isso foi feito de forma individualizada. Com o “Bolsa Família” como recompensa para mães de filhos em idade escolar, isso era um resultado esperado. Aumentos no salário mínimo significaram também um aumento no número de trabalhadores com contratos de trabalho, o que lhes garantiria acesso aos direitos formais do emprego; mas não houve aumento, e pode ter havido até mesmo uma queda, na sindicalização. Acima de tudo, com a chegada do “crédito consignado” – os empréstimos bancários com juros altos deduzidos diretamente dos salários – o consumo privado cresceu sem amarras e às custas dos gastos com serviços públicos, cujas melhorias teriam sido uma forma mais cara de estimular a economia.

A compra de bens eletrónicos, bens de consumo e veículos foram estimuladas (a compra de automóveis recebeu incentivos fiscais), enquanto a distribuição de água, pavimentação, ônibus eficientes, saneamento básico aceitável, escolas decentes e hospitais públicos foram negligenciados. Os bens coletivos não tinham prioridade nem ideológica, nem prática. Logo, junto com a tão necessária melhoria nas condições de vida doméstica, o consumismo na sua forma mais deteriorada espalhou-se nas camadas populares através de uma hierarquia social em que a classe média se deslumbrava, ainda que por padrões internacionais, com revistas e centros comerciais.

O quão prejudicial isso foi para o PT pode ser observado através da questão da habitação, onde necessidades individuais e coletivas mais visivelmente se intersetam. Nela, a bolha de consumo transformou-se cada vez mais numa dramática bolha imobiliária, na qual vastas fortunas foram feitas por empreiteiros e empresas de construção enquanto o preço dos imóveis disparou para a maioria das pessoas que viviam nas grandes cidades e cerca de um décimo da população não tinham acesso a casas adequadas.

Entre 2005 a 2014, o crédito para a especulação imobiliária e construção civil aumentou vinte vezes; em São Paulo e no Rio de Janeiro os preços por metro quadrado quadruplicaram. Apenas no ano de 2010, os alugueres em São Paulo aumentaram 146%. E nesse mesmo período, havia cerca de 6 milhões de apartamentos desocupados, com sete milhões de famílias sem teto. 

Entre 2005 a 2014, o crédito para a especulação imobiliária e construção civil aumentou vinte vezes; em São Paulo e no Rio de Janeiro os preços por metro quadrado quadruplicaram. Apenas no ano de 2010, os alugueres em São Paulo aumentaram 146%. E nesse mesmo período, havia cerca de 6 milhões de apartamentos desocupados, com sete milhões de famílias sem teto. E ao invés de aumentar a oferta de casas populares, o governo financiou construtoras privadas para construírem condomínios mediante um belíssimo lucro em áreas periféricas, cobrando alugueres mais caros do que aqueles que os mais pobres poderiam pagar, ao mesmo tempo que apoiava as autoridades locais e os despejos feitos em ocupações.

Perante tudo isso, os movimentos sociais ganharam fôlego com os sem-teto e agora são uma das principais forças do Brasil: esses movimentos não estão dentro, mas sim contra o PT.

Sem contar com uma força-tarefa popular capaz de lidar com a pressão das elites do país, Dilma sem dúvida torceu para que, após a sua apertada reeleição, ao bater em retirada economicamente, com uma política inicial de apertar os cintos semelhante à que Lula fez nos seus primeiros anos no poder, pudesse então reproduzir o mesmo tipo de viragem no rumo. Mas as condições externas impediram qualquer comparação possível. A dança das mercadorias já se foi e uma recuperação, seja lá quando vier, parece não ter sustentação.

Pode se argumentar, observando esse contexto, que a extensão das atuais dificuldades não deve ser exagerada. O país está a passar por uma severa recessão, com o PIB a cair 3,7% no último ano e provavelmente a mesma coisa acontecerá este ano. Por outro lado, o desemprego ainda está longe de atingir os níveis da França, quanto mais de Espanha. A inflação é ainda mais baixa do que nos anos de Fernando Henrique Cardoso (FHC) e o país possui mais reservas.

O deficit público é metade do deficit da Itália, ainda que com os juros brasileiros o custo de o reduzir seja bem maior. O deficit fiscal ainda está abaixo da média dos Estados Unidos. Tudo isso tende a piorar. Todavia, a atual profundidade do abismo económico não encontra respaldo no volume do clamor ideológico que existe sobre ele: a oposição militante e a fixação neoliberal possuem interesses em aumentar o grau de martírio do país. Mas isso, por sua vez, não reduz a escala da crise na qual o PT está agora envolto, que não é apenas económica, é também política.

A atual profundidade do abismo económico não encontra respaldo no volume do clamor ideológico que existe sobre ele: a oposição militante e a fixação neoliberal possuem interesses em aumentar o grau de martírio do país. Mas isso, por sua vez, não reduz a escala da crise na qual o PT está agora envolto, que não é apenas económica, é também política.

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Pode-se dizer que as origens desse dilema residem na estrutura da Constituição Brasileira. Em praticamente quase todos os países da América Latina, presidências inspiradas no modelo dos Estados Unidos coexistem com parlamentos em moldes europeus: ou seja, Executivos superpoderosos de um lado e, do outro, Legislativos eleitos por um sistema proporcional de representação – e não no modelo distorcido de past-the-post, tal qual nos sistemas anglo-saxões.

O resultado típico desse modelo, ainda que não seja invariável, é uma presidência com enormes poderes administrativos cuja fraqueza reside no fato de nenhum partido conseguir ter uma maioria parlamentar com poder significativo. Todavia, em nenhum lugar o poder Executivo se separou tanto do Legislativo como no Brasil. Isso é porque, acima de tudo, o país possui o mais frágil sistema partidário do continente.

No Brasil, a representação proporcional toma forma de um sistema de lista aberta na qual os eleitores podem escolher qualquer candidato dentro de um enorme número de indivíduos que nominalmente estão dentro da mesma disputa, em legislaturas que geralmente recebem cerca de pouco mais de dois milhões de votos. As consequências dessa configuração são duais. Na maioria dos casos, os eleitores escolhem um político que conhecem – ou acham que conhecem – ao invés de escolherem um partido do qual pouco ou nada sabem, enquanto os políticos, por sua vez, precisam de obter uma grande quantia de dinheiro para financiar as suas campanhas e garantir que os eleitores se identifiquem com eles.

A grande maioria dos partidos, cujos números aumentam a cada eleição (atualmente há 28 partidos com representação no Congresso), não possuem qualquer coerência política, quanto mais disciplina política. O seu propósito é simplesmente assegurar favores dos chefes do Executivo diretamente para os seus bolsos e, claro, dar algum retorno para assegurar a reeleição dos seus correligionários, oferecendo aos governos votos favoráveis nas diferentes câmaras.

Quando o Brasil emergiu após duas décadas de Ditadura Militar em meados dos anos 1980, esse sistema foi criado por uma classe política que se moldara sobre ela. Objetivamente, a sua função era (e ainda é) neutralizar a possibilidade de que a democracia levasse à formação de algum tipo de vontade popular que ameaçasse a grandeza da desigualdade brasileira, ao anestesiar as preferências eleitorais num miasma de disputas subpolíticas por vantagens venais.

Quando o Brasil emergiu após duas décadas de Ditadura Militar o sistema eleitoral foi criado por uma classe política que se moldara sobre a ditadura. Objetivamente, a função do sistema escolhido era (e ainda é) neutralizar a possibilidade de que a democracia levasse à formação de algum tipo de vontade popular que ameaçasse a grandeza da desigualdade brasileira, ao anestesiar as preferências eleitorais num miasma de disputas subpolíticas por vantagens venais.

Cabe ressaltar que o que acentua os problemas desse sistema é também sua massiva desproporção geográfica. Todos os sistemas federais exigem algum tipo de equalização dos pesos de cada região, geralmente envolvendo uma sobre representação das áreas menores e rurais numa câmara mais alta, às custas das áreas maiores e mais urbanizadas, tal como o Senado dos EUA. Contudo, poucos países chegam perto do grau de distorção criado pelos engenheiros do sistema brasileiro, no qual a proporção dessa sobre representação entre os pequenos e maiores Estados atinge uma proporção de 88 para 1 (nos EUA ela fica em torno de 65 para 1).

E o problema não é apenas que as três mais pobres e atrasadas regiões controlem 3/4 dos assentos do Senado e contem com cerca de 2/5 da população (assombradas, na maior parte, pelos mais tradicionais ‘caciques’ que dominam as clientelas mais submissas). Mas de forma única, eles também comandam a Câmara dos Deputados. Ou seja, ao invés de corrigir esse problema conservador do sistema, a democratização aumentou-o, criando inclusive novos estados com população pequena, desequilibrando ainda mais o cenário.

Nesse cenário, ao contrário de outros países da América Latina que emergiram do domínio dos militares nos anos 1980, nenhum partido político significativo do período anterior à ditadura sobreviveu.

Na verdade, o palco foi inicialmente ocupado por duas forças derivadas das invenções dos generais: o partido da oposição permitida, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), e o seu partido aliado, a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) – ridicularizados por serem vistos como os partidos do ‘sim’ e do ‘sim senhor’. O primeiro posteriormente renomeou-se como Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e boa parte do segundo transformou- se no Partido da Frente Liberal (PFL).

Com a saída dos militares, o primeiro governo estável de fato só aconteceu com a presidência de Fernando Henrique Cardoso, em 1994, nascida de um pacto de uma dissidência do PMDB que ajudara a criar, nominalmente social-democrata, mas na realidade social-liberal (o PSDB), cujo eleitorado se concentrava nas regiões Sul e Sudeste. Ao lado do PSDB estava o nominalmente liberal, mas na realidade conservador PFL, cuja base se encontrava nas regiões Norte e Nordeste. Esse foi um pacto entre os oponentes moderados e os tradicionais ornamentos da Ditadura e conseguiu construir uma grande maioria no Congresso, agindo ao serviço daquele que se tornaria o principal programa neoliberal do país, afinado com o Consenso de Washington. Enquanto candidato presidencial, Cardoso – tomado pelo grande capital como uma garantia contra radicalizações – recebeu enormes quantias de dinheiro: os ricos sabem reconhecer os seus amigos.

O custo relativo das suas campanhas, num país mais pobre, foi maior até mesmo que os gastos das campanhas de Clinton no mesmo período. Concorrendo contra ele estava Lula, diante de uma montanha de dinheiro que financiava a campanha de Cardoso. Mas assim que assumiu o cargo, FHC geralmente não precisou de dinheiro para comprar o apoio do Congresso – embora exista pelo menos uma notável exceção nessa afirmativa – pois a sua coligação com os clãs das oligarquias do Nordeste, ainda que sujeitas às suas disputas regionais, não era meramente oportunista, mas sim baseada numa parceria natural para objetivos comuns.

O acordo foi estável e, nos anos recentes, foi muito elogiado por admiradores de Cardoso no Brasil e nos países anglófonos, considerado um modelo de “presidencialismo de coligação”, tomado inclusive como um exemplo esperançoso para o resto do mundo, em lugares onde os modelos de governo europeu ou americano raramente conseguem vingar.

O próprio FHC, que por um bom tempo sustentou que a reforma do sistema partidário era uma prioridade para o Brasil e prometeu entregá-la, mudou de ideia mal chegou ao Palácio do Planalto, afirmando que a maior prioridade era rever a Constituição para que ele próprio pudesse ser reeleito num segundo mandato.

Ainda assim, os cofres das campanhas de FHC estavam ‘limpos’ no sentido dos financiamentos americanos, onde os Super PACs compram votos, e sua coligação era ideologicamente sólida, já que uma vez eleito, nem os seus objetivos e tampouco os dos seus aliados poderiam ser atingidos por outros meios.

Tanto o seu vice-presidente, Marco Maciel, assim como seu mais poderoso aliado no Congresso, António Carlos Magalhães, eram verdadeiros eixos da política repressiva no Nordeste – ambos instalados pela Ditadura como governadores, o primeiro em Pernambuco e o segundo na Bahia, algo feito mal apoiaram o derrubamento do regime democrático em 1964 – e sem nenhuma intenção de alterar esses métodos tradicionais. ACM, como gostava de ser chamado, afirmava com orgulho: ‘Eu ganho eleições com um saco de dinheiro na mão e um chicote na outra’. O seu filho, Luís Eduardo, era o político favorito de Cardoso no Congresso, o delfim apontado para o suceder e assim seria se não tivesse morrido precocemente.

O próprio FHC, que por um bom tempo sustentou que a reforma do sistema partidário era uma prioridade para o Brasil e prometeu entregá-la, mudou de ideia mal chegou ao Palácio do Planalto, afirmando que a maior prioridade era rever a Constituição para que ele próprio pudesse ser reeleito num segundo mandato. Abandonando qualquer tentativa de racionalizar ou democratizar a ordem política, ele presidiu – e para isso, sim, foi necessário – a uma campanha direta de subornos a deputados para comprar uma super-maioria no Congresso, requerida para passar a emenda da reeleição.

Artigo publicado integralmente no Blog da Boitempo a 21 de abril de 2016 e publicado originalmente na edição de Abril da London Review of Books. Tradução de Fernando Pureza.

Perry Anderson é um historiador inglês nascido em 1938. Professor da UCLA, Estados Unidos, foi editor da New Left Review, a principal revista de esquerda do mundo anglófono. Ensaista político, Anderson é conhecido pelo seu trabalho em história intelectual, e filia-se à tradição do Marxismo Ocidental do pós-1956. É autor, entre outros, de "Espectro, Afinidades seletivas" e mais recentemente "A política externa norte-americana e seus teóricos", além de ser colaborador da revista semestral da Boitempo, a Margem Esquerda.

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