You are here

Covid-19 e imigração: À espera pelo direito a viver

A pandemia veio agravar a situação dos imigrantes, a quem o Estado português nega direitos. Não são números, são pessoas. E para escrever sobre as suas vidas, os seus sonhos, as dificuldades que enfrentam, nada melhor do que olhá-las nos olhos. E ouvi-las. Texto e fotos de Mariana Carneiro.

Durante cerca de duas semanas, passei várias horas na Solidariedade Imigrante (Solim), uma associação pela defesa dos direitos dos imigrantes em Portugal com mais de 41.200 associados de 98 nacionalidades.

Durante toda a crise pandémica, a Solim manteve a porta aberta. De segunda a sexta, das 9h às 19h, e aos sábados, entre as 8h e as 12h, as e os imigrantes encontram ali um atendimento de proximidade, com contacto direto. São imigrantes a atender imigrantes. Ouve-se português, crioulo da Guiné-Bissau, inglês, francês, nepalês… As pessoas percebem-se porque querem perceber-se. Porque querem fazer parte da resposta, e não do problema.

Na primeira vaga da pandemia encontrávamos filas que ocupavam todo o quarteirão. Na segunda e terceira vagas, o número de atendimentos no segundo andar do número 8 da Rua da Madalena diminuiu, mas não de forma muito significativa. Ao sábado há quem venha para a porta da Associação de madrugada.

O Om, do Nepal, e o Vladimir, da Guiné-Bissau, fazem parte da equipa de oito pessoas que trabalham na Solidariedade Imigrante.

Aqui não encontramos advogados, até porque estão em causa processos administrativos, e não judiciais. É preciso “um outro olhar sobre a imigração. Deixar de encarar os imigrantes como potenciais criminosos e incapazes de alcançarem e lutarem pelos seus direitos”, explica Timóteo Macedo, fundador e presidente da Associação Solidariedade Imigrante.

Na Solim recusam a caridade e o assistencialismo, que “muitas vezes assumem formas sofisticadas de racismo”. A Associação também combate a auto-exclusão e potencia o envolvimento do imigrante na resolução dos seus problemas, contribuindo para o seu empoderamento.

O Vladimir explica a um imigrante guineense como consultar o portal do SEF e aceder a informações sobre a sua Manifestação de Interesse.

"As leis mudam e as ilegalidades aumentam"

Nos últimos anos, foram dados passos importantes em termos legislativos. Para que tal fosse possível, foi fundamental a luta das e dos imigrantes e das organizações que reivindicam os seus direitos, como é o caso da Solim.

Exemplo disso são as alterações ao “regime jurídico de entrada, permanência e afastamento de estrangeiros do território nacional” que retiraram o caráter excecional ao procedimento de atribuição de autorização de residência a imigrantes para exercício independente ou subordinado de atividade profissional. E, dessa forma, diminuíram a margem de discricionariedade e de arbitrariedade por parte do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras - SEF. Ou, posteriormente, as alterações que estabeleceram uma presunção de entrada legal na concessão de autorização de residência para o exercício de atividade profissional.

Se é certo que a legislação tem vindo a ser aperfeiçoada, esta “continua a ser muito discricionária e excecional em várias matérias”, assinala Timóteo Macedo. E, não raramente, é aplicada com frieza, não havendo sensibilidade face à situação concreta das e dos imigrantes.

A interpretação da lei por parte do SEF também não é constante, nomeadamente quando se registam alterações na sua direção, o que resulta, em algumas situações, em “retrocessos nos direitos conquistados”, alerta o dirigente associativo.

Acresce que a lei não está a ser cumprida. E quem não a cumpre é o próprio Estado português. No que concerne aos prazos de decisão e notificação, a lei estipula que o pedido de concessão de autorização de residência deve ser decidido no prazo de 90 dias. Já o pedido de renovação de autorização de residência deve ser decidido no prazo de 60 dias. O diploma legal prevê, inclusive, que, na falta de decisão no prazo previsto, o pedido é deferido e é emitido de imediato o título de residência.

A realidade é bem diferente. O tempo de espera e as burocracias infindáveis são transversais. “As leis mudam e as ilegalidades aumentam. Não há resposta no tempo legal”, lamenta o fundador e presidente da Solim. A pandemia só veio agravar um problema que já existia e que tem vindo a ser denunciado pelas organizações de defesa dos direitos dos imigrantes.

A espera é uma tortura

A maior parte dos atendimentos na Solim a que assisti dizem respeito a pedidos de autorização de residência para exercício de atividade profissional subordinada. Ao invés dos 90 dias previstos na lei, regra geral, as e os imigrantes que entregam uma Manifestação de Interesse ao abrigo do Artigo 88.º aguardam entre nove meses a um ano por uma simples resposta do SEF.

Depois têm de esperar uma média de três meses para que abram as marcações, que, atualmente, estão todas fechadas. Quando abrem vagas para marcação, o sistema entope rapidamente. As vagas são irrisórias face ao número de pedidos. E vingam as máfias que ocupam a maioria dos (escassos) lugares. Quem não conseguir uma marcação quando as vagas abrirem, o mais certo é só ter nova oportunidade em 2022.

Ninguém sabe quando irão abrir as marcações, o mês, o dia, a hora… A espera é uma tortura. As e os imigrantes nunca sabem com o que contar, como será o dia de amanhã. Precisam de apoio psicológico, mas não o têm. Na Solim há casos kafkianos de espera, como a de um sócio guineense que espera há 10 anos pela legalização.

Se a espera é transversal, a estigmatização também o é. E se o Estado não é penalizado por não cumprir a lei, as e os imigrantes são-no. “Não têm acesso ao Serviço Nacional de Saúde, são submetidos a exploração escrava e a toda uma série de arbitrariedades a nível laboral”, aponta Timóteo Macedo.

Na sequência do estado de calamidade devido à covid-19, foram publicados dois despachos que preveem a regularização temporária dos imigrantes com processos pendentes no SEF. Mas a Provedora de Justiça, citada pelo Diário de Notícias, já informou que têm sido denunciados problemas a nível do acesso ao número do utente do Serviço Nacional de Saúde ou da troca das cartas de condução no Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), entre outros.

As vítimas da ilegalidade do Estado português

O Ousman Ceesay tem 27 anos e nasceu na Gâmbia. Foi atendido na Solim pelo Om, do Nepal, a quem explicou que, quando chegou a Portugal, em fevereiro de 2019, começou logo a procurar trabalho. Em setembro do mesmo ano assinou o primeiro contrato, com a empresa Samba Seidi – Construções, a ganhar 667 euros brutos por mês. Ainda em setembro, entregou a Manifestação de Interesse no SEF.

Entretanto, assinou um segundo contrato, desta vez com a Do Work – Construção. O seu horário pode variar durante o período das 8h às 20h. Desconta para a Segurança Social, contribui para as contas públicas há cerca de ano e meio. E também há cerca de um ano e meio espera e desespera para ver a sua situação regularizada.

Está “há demasiado tempo à espera”. “Porquê? Eu cumpro tudo o que pediram. Dizem-nos que se trabalharmos e descontarmos 12 meses podemos ter residência e depois.... É um desespero. É preciso fazer alguma coisa”, diz-me.

Ousman Ceesay, Gâmbia, 27 anos.

Num sábado chuvoso, encontrei o Aliou Sall nas escadas da Solim à espera de ser atendido. Disponibilizou-se de imediato para falar comigo. Em 2008, o senegalês de 40 anos esteve em Portugal à procura de trabalho. As coisas não correram bem. Voltou em 2018. É servente da construção civil. Tem contrato e paga impostos. Mora numa casa com vários imigrantes.

Um sábado chuvoso pela manhã. Imigrantes esperam pelo atendimento na Solidariedade Imigrante.

Em 2019 teve marcação no SEF para atribuição do visto de residência, à época ao abrigo do artigo 123º. Pagou 250 euros. Disseram-lhe que voltariam a contactá-lo. Nunca mais teve notícias do SEF. Já enviou vários emails. Ninguém lhe responde. A Solim irá contactar o SEF para tentar averiguar o que se passa com este processo.

Entretanto, em dezembro de 2020, o Aliou apresentou a sua Manifestação de Interesse, agora ao abrigo do artigo 88º. Ficará a aguardar, sem data marcada, uma resposta do SEF para ambos os processos.

Apesar de pagar os seus impostos, e de cumprir todos os requisitos legais, não conseguiu até hoje que lhe fosse atribuído o número de utente do SNS. O Aliou olha-me nos olhos, de queixo erguido, mas o seu olhar não esconde o cansaço de uma vida de luta e uma certa desilusão de quem aparenta ter sido esquecido e a quem são negados os seus direitos.

Aliou Sall - Senegal, 40 anos.

A Sunita Ranjitkar tem 37 anos e é do Nepal. Chegou a Portugal a 28 de junho de 2019. Assim que tiver a sua situação regularizada, tentará trazer para o país o filho de 19 anos.

Vive na freguesia de Sarilhos Grandes, concelho do Montijo, com mais duas pessoas do Nepal. A 1 de setembro de 2019, começou a trabalhar como copeira num restaurante. Desde então, paga impostos sobre o seu salário, de 700 euros brutos.

Apresentou a Manifestação de Interesse em agosto de 2019. Em novembro de 2019 adicionou documentos em falta. Ainda nem sequer obteve resposta do SEF. Nenhum sinal de vida. Carregou o telemóvel com 20 euros para poder ligar para este serviço, mas nunca lhe atendem a chamada.

Sunita Ranjitkar, 37 anos, Nepal.

A Sunita Ranjitkar tem um problema de saúde que já se arrasta há algum tempo e que a levou a recorrer, por diversas vezes, ao Centro de Saúde do Montijo e ao Hospital do Barreiro. Pediu o número de utente do SNS mas foi-lhe recusado, por não ter visto de residência. Já gastou cerca de 300 a 400 euros, sem conseguir resolver o seu problema de saúde. Numa fase pior, chegou a meter os papéis da baixa, mas ficou sem receber nada. Atualmente, tem o pescoço muito inchado, a doer e a latejar. Mas não pode deixar de trabalhar, senão não tem como sobreviver. Também não pode continuar a pagar contas avultadas de saúde. O salário não dá para tudo… Resta-lhe a esperança que o problema passe por si só.

Ecografia e outros exames de Sunita Ranjitkar, 37 anos, Nepal.

Encontrei a Luísa Embaló, da Guiné Bissau, à porta da Solim. Eram 8h30 e a guineense de 47 anos esperava que a Associação abrisse para que lhe fosse atribuída uma senha.

A Luísa chegou a Portugal a 16 de março de 2018. Entregou a Manifestação de Interesse a 29 de agosto de 2019 em Portimão. Na altura trabalhava lá, num restaurante. Já tem dois anos de descontos para a Segurança Social. O SEF só respondeu a 25 de maio de 2020. Desde então, aguarda que abram as marcações, sem que ninguém lhe consiga sequer adiantar uma data aproximada.

A Luísa está agora na linha da frente no combate à covid-19. Trabalha numa casa de repouso, das 9h às 18h, com idosos, os mais frágeis e mais suscetíveis à pandemia. É um trabalho duro e com riscos acrescidos em contexto pandémico. Recebe apenas o salário mínimo nacional.

A Luísa ficou viúva a 31 janeiro de 2019 e mora agora com a irmã, que trabalha com idosos na Santa Casa da Misericórdia, e a filha de 13 anos.

Em outubro de 2020, depois de incontáveis tentativas, conseguiu ser atendida telefonicamente pelo SEF. Queria regularizar a situação da filha, a estudar no 8º ano e a frequentar a escola em Portugal já há dois anos. Fizeram marcação para 3 de novembro. Tinha todos os documentos requeridos, mas faltava o comprovativo da entrada no país. A filha entrou a partir de Espanha num carro privado. Ela veio de autocarro de Espanha mas não guardou o bilhete. Recusaram dar residência à filha naquele momento. Foi feita uma nova marcação para 19 fevereiro, no Centro Nacional de Apoio a Integração de Migrantes – CNAI, junto ao metro dos Anjos.

Soube, entretanto, que os agendamentos foram todos cancelados, e ninguém prevê quando haverá remarcação. O aviso partiu da sua advogada. A Luísa sabe que estão em causa processos administrativos, mas é tudo tão complicado, tão moroso, tão burocrático que acabou por procurar apoio jurídico. Apesar de várias insistências, a advogada ainda não lhe disse quanto irá cobrar. Está preocupada por não saber se terá dinheiro para pagar.

E está exausta. E desesperada. No dia em que nos encontrámos, a Luísa deixou a filha a dormir em casa sem preparar almoço para vir à Solim. A sua mãe vive na Guiné-Bissau e já conta com 96 anos. Está com uma sobrinha que já teve um acidente vascular cerebral - AVC. “E se acontece alguma coisa?”, pergunta, nitidamente angustiada. Não consegue habituar-se a viver na corda bamba, na permanente incerteza sobre o que lhe espera no dia de amanhã.

Luísa Embaló, Guiné Bissau, 47 anos.

O Agostinho João Bico Mendes (fez questão de me escrever o seu nome completo numa folha de papel) também é guineense. Tem agora 37 anos e veio para Portugal em 2019. A 6 de janeiro de 2020 apresentou a Manifestação de Interesse. O SEF respondeu apenas passados dez meses, a 12 de outubro. E agora aguarda marcação. É mais um dos processos empilhados numa mesa junto à janela.

O Agostinho tem mulher e três filhos, de 5, 7 e 9 anos na Guiné Bissau e quer trazê-los para cá. “Mas nem consigo o visto de residência para tratar da carta de condução e fazer formação. Estou à espera há tanto tempo”, lamenta.

Trabalha nas obras, a receber 4 a 4,5 euros por hora. Paga os seus impostos. Quer tirar a carta e fazer formação para conduzir camiões e manobrar gruas, talvez assim consiga ganhar um pouco mais. Mas sem o visto, não pode fazê-lo. O Om aponta para a pilha de processos a aguardar e diz-lhe: “Tem de esperar, amigo. As marcações estão fechadas”.

Processos de imigrantes que entregaram Manifestação de Interesse ao abrigo do artigo 88º e que aguardam marcação.

“Mas não pode fazer nada? Estamos sempre à espera, sempre à espera e não sabemos quanto tempo mais temos de esperar”, afirma em desespero. Acaba por ir embora. Vai continuar a esperar.

Agostinho João Bico Mendes, Guiné Bissau, 37 anos.

Há 24 anos em Portugal, o Malam Dabó exibe com orgulho o seu cartão de cidadão português. O carpinteiro guineense de 65 anos já trabalhou do Norte ao Sul do país. Não tem cá família.

Explica ao Vladimir, também ele guineense, que quer trazer os filhos, de 21 anos e 23 anos. Inscreveu-os na Faculdade cá. O pedido para a vinda dos filhos foi entregue no consulado de Portugal na Guiné-Bissau, em fevereiro de 2017. Não obteve resposta até agora. Já fez várias tentativas, já pagou, mas sem sucesso.

Malam Dabó, Guiné Bissau, 65 anos.

A Muna Karki vive em Faro. É trabalhadora agrícola, contratada pela empresa MDSF Rasberrys, que lhe paga 635 euros brutos. Agora com 31 anos, a imigrante nepalesa chegou a Portugal a 2 de abril de 2016. Há cinco anos que paga impostos neste país.

Muna pediu autorização de residência através do artigo 123º. De julho de 2018 a outubro de 2020, o pedido esteve suspenso, na medida em que os seus dados pessoais constavam do Sistema de Informação Schengen de Segunda Geração (SIS II). O sistema informático europeu assinalava a sua passagem pela Alemanha.

Em outubro do ano passado, a Solim enviou para o SEF a informação sobre a anulação da referência constante no SIS II. O SEF só respondeu a 9 de dezembro, afirmando que o processo está em análise. A Muna aguarda agora, não sabe até quando, pelo desfecho deste já longo processo.

Muna Karki, Nepal, 31 anos.

A Menezinha Gomes, da Guiné Bissau, tem 47 anos e está em Portugal sozinha, desde 2019.

Entregou a Manifestação de Interesse em dezembro de 2019, mas continua sem saber quando terá direito ao visto de residência. Trabalha para a empresa de limpezas Operandus, por sua vez contratada pela Santa Casa da Misericórdia. Recebe 622 euros brutos. Está a trabalhar no Hospital de Alcoitão, mas, de vez em quando, é enviada para outro serviço da Santa Casa. Faz todas as horas extraordinárias que consegue. Paga escrupulosamente os seus impostos, está na linha da frente no combate à covid e corre riscos acrescidos no desempenho das suas funções, mas nem sequer lhe foi atribuído o número de utente do SNS.

Menezinha Gomes, Guiné Bissau, 47 anos.

O Ismaila Sambon está em Portugal desde 16 de fevereiro de 2019 e vive em Rio de Mouro. O gambiano de 42 anos traz nas mãos uma pasta amarela, com vários papéis e documentos, devidamente organizados. Quer saber a situação do seu pedido de residência.

Explica que, em março de 2020, o patrão apresentou a Manifestação de Interesse. O Om confirma no portal do SEF que o patrão não submeteu o pedido, não enviou os documentos necessários. A desilusão do Ismaila é notória.

A Solim vai enviar os documentos, e o prazo só começará a contar a partir de agora. Terá de esperar entre oito meses a um ano por uma resposta do SEF, depois, passará a aguardar a marcação.

Ismaila Sambon, Gâmbia, 42 anos. À esquerda na foto, com a pasta amarela nas mãos.

O Kiran, do Nepal, chegou há cerca de cinco anos a Portugal. Tem mulher e filho no Nepal e veio à Solim para o apoiarem no pedido de reagrupamento familiar. Não há vagas, mas a Solim vai entregar o processo e aguardar que o SEF responda.

O Kiran trabalha o dia inteiro na Uber, para ganhar a maior quantia de dinheiro que conseguir. Não tirou o capacete para ser atendido, porque está com pressa. Anda de mota a entregar refeições e compras a quem consegue cumprir o confinamento em casa.

Kiran, Nepal.

A angolana Rosário Moisés, de 53 anos, chegou a Portugal em 2019 e, passado um mês, começou logo a trabalhar. Entregou a Manifestação de Interesse há um ano e três meses. Está empregada numa fábrica de bolos, onde trabalha oito horas por dia e ganha o salário mínimo.

Vive em Rio de Mouro com uma filha de 14 anos e duas netas menores, e quer trazer para cá, assim que possível, a filha e o neto. A Rosário recebe o rendimento social de inserção (RSI). São menos de 200 euros por mês. Às vezes precisa de ajuda para alimentação.

Rosário Moisés, 53 anos, angolana.

A Júlia Maria, de Cabo Verde, conseguiu a primeira residência através do marido (reagrupamento familiar). António Joaquim, com 49 anos, também cabo-verdiano, trabalha na manutenção de sistemas de gás desde outubro de 2016. Ganha 820 euros brutos e paga os seus impostos em Portugal.

Júlia, de 44 anos, tem um filho de 9 anos, que vive com a tia em Cabo Verde. Ele não se está a dar bem lá. A Júlia quer trazê-lo para Portugal, mas o pedido tem de ser feito em seu nome, dado que o marido não é o pai biológico da criança.

O problema é que a imigrante cabo-verdiana não conseguiu arranjar um contrato de trabalho. Atualmente faz limpezas em casa de uma senhora durante três horas por semana. Fica lavada em lágrimas por não conseguir trazer já o filho para Portugal.

Júlia Maria, 44 anos, António Joaquim, 49 anos, Cabo Verde.

O Nurul tem 39 anos e é do Bangladesh. Chegou a Portugal em 2016. Mas só conseguiu residência em dezembro de 2018, após uma longa luta que resultou na alteração da lei e na regularização de cerca de 30 mil imigrantes. O Nurul participou nessa luta, e esteve presente em várias manifestações pela legalização dos imigrantes.

Quando chegou a Portugal, trabalhou na agricultura. Entretanto, em fevereiro de 2019, abriu uma frutaria, que dá emprego a outras pessoas.

Está a tentar trazer para Portugal a esposa. Ao contrário do que lhe disse o seu contabilista, o Nurul descobriu agora que há um procedimento burocrático a seguir. E está a reunir toda a papelada.

Nurul, 39 anos, Bangladesh.

Em Portugal há 12 anos, Sueli entregou a Manifestação de Interesse em 2009, mas não reunia os requisitos necessários. “Passei por muito empregos em que não tinha contrato. O SEF pede os documentos mas o patrão não nos dá”, afirma. A brasileira de 31 anos trabalha desde 2014 como mulher a dias em casa de uma senhora. Tem contrato desde 2016. Vive na Reboleira com mais duas pessoas. As rendas são muito caras e é impossível viver no centro de Lisboa. Aguarda há meses por uma resposta do SEF ao novo pedido de residência.

Estas são algumas das pessoas que tive o privilégio de conhecer nos últimos dias e que acederam a partilhar a sua história e, em muitos casos, a ser fotografadas. E não é fácil dar a cara.

Mbaye Seck, Senegal, 26 anos. Entregou Manifestação de Interesse a 11 de março de 2020. Ainda não obteve qualquer resposta do SEF.

Falamos de imigrantes que têm encontrado inúmeros entraves à sua legalização e no acesso a serviços fundamentais como a saúde. Que são, muitas vezes, olhados com desconfiança por parte das autoridades. Que são alvo de estigmatização e de discriminação. E que esperam e desesperam pelo efetivo reconhecimento dos seus direitos.

À procura de trabalho: "Seja o que for"

Com 25 anos, o Salif Turé, da Guiné-Bissau, está em Portugal há oito meses e procura trabalho, “seja o que for”. Já apresentou a Manifestação de Interesse e a sua única preocupação é garantir que preenche todos os requisitos previstos na lei para obter a autorização de residência.

Também a Valentina, angolana, está disponível para fazer “qualquer coisa”. Há um ano em Portugal, vive sozinha com o filho, de quatro anos, que já frequenta o infantário, e a filha, de dois, para a qual não conseguiu vaga numa creche. Entregou Manifestação de Interesse em setembro de 2020 e pediu marcação no Espaço Emprego da Solim. Quer, precisa de trabalhar.

Os filhos de Valentina, de 4 e 2 anos.

Criado em janeiro de 2021, o Espaço Emprego dá apoio às e aos imigrantes na procura de emprego e informa-os sobre os seus direitos laborais.

A Anabela Rodrigues, da Solim, explica que, em contexto pandémico, as ofertas de emprego diminuíram, as regras de contratação estão mais apertadas e aumentaram os abusos laborais. Há situações muito complexas e de discriminação, com relatos de imigrantes que foram colocados em regime de layoff, cumpriram o horário normal e não foram pagos. O não pagamento de salários e a ausência de declaração da situação de desemprego são algumas das queixas mais comuns.

As e os imigrantes estão a ser muito atingidos pela covid-19, porque trabalham essencialmente em setores onde não há teletrabalho, como a construção civil ou a restauração. Acresce que o distanciamento social cria dificuldades acrescidas para os imigrantes. Os recrutamentos passaram a ser feitos maioritariamente por telefone, e os problemas de comunicação fazem-se notar. “Neste momento, com o confinamento, a língua é mesmo uma barreira. No sábado estivemos a fazer ensaios de entrevistas para praticar o Português”, confirma a Anabela Rodrigues.

Anabela Rodrigues e Om no espaço emprego a atender um imigrante da Guiné-Bissau.

A maioria das ofertas de trabalho disponíveis para as e os imigrantes são na construção, hotelaria e limpezas e algumas na agricultura, com contratos a termo ou sazonais. Lisboa, Algarve e Alentejo são as regiões que mais recrutam imigrantes. As remunerações ficam-se, em regra geral, pelo salário mínimo nacional.

O Espaço Emprego da Solim tem recebido mais pedidos de ajuda de homens, e são eles que, neste momento, têm mais ofertas de trabalho. Para construir o currículo, são sempre indicadas as habilitações e experiência profissional das e dos imigrantes, mas eles aceitam qualquer trabalho, porque precisam de trabalhar para sobreviver e para cumprir os requisitos exigidos pelo SEF.

Imigrantes mais expostos a consequências da covid-19

De acordo com o estudo realizado com base num inquérito conduzido pelos investigadores do Instituto de Higiene e Medicina Tropical (IHMT), e que contou também com a participação decisiva do ACES, o Agrupamento dos Centros de Saúde da Amadora, e da ONG AJPAS - Associação de Intervenção Comunitária, Desenvolvimento Social e de Saúde, os efeitos da pandemia penalizam mais as famílias imigrantes.

"Os nossos resultados mostram que a situação é difícil para todos, mas ela é ainda mais negativa para as famílias imigrantes, que estão mais expostas aos problemas socioeconómicos causados pela crise sanitária", explica a investigadora Maria do Rosário Martins, do Centro de Investigação em Saúde Global e Medicina Tropical do IHMT, citada pelo Diário de Notícias.

As e os imigrantes estão mais expostos ao desemprego, registam quebras salariais significativas, têm dificuldades acrescidas no acesso aos cuidados de saúde, e veem-se impossibilitados, em muitas situações, de pagar contas e comprar alimentos.

Recentemente, foi também noticiado pelo Público que algumas escolas estão a impedir crianças imigrantes de usufruírem de ação social e de acederem a um computador, negando-lhes, na prática, o direito à Educação.

Face às condições de precariedade laboral e habitacional, com as e os imigrantes a viverem em apartamentos sobrelotados e insalubres, não é de estranhar que estejam entre as principais vítimas da pandemia em Lisboa e Porto. Bem como era expectável o surgimento de surtos como o de Alcácer do Sal e Serpa, ambos em explorações agrícolas.

E as e os imigrantes trabalham em setores que não são permeáveis ao teletrabalho e que estão na linha da frente da resposta económica, social e sanitária à pandemia.

Encontramo-los a garantir a limpeza dos nossos bairros, das nossas ruas, dos hospitais; a cuidar dos mais idosos; na agricultura; na restauração; na construção civil; a trabalhar para as plataformas digitais, entregando nas nossas casas as refeições e as compras que encomendamos a partir do conforto do nosso sofá.

Sabemos que eles estão aqui. Queremos que eles continuem a assegurar estes serviços essenciais, a troco do salário mínimo, e a alimentar os cofres da Segurança Social do país. Mas é confortável que eles se mantenham invisíveis. Que não reivindiquem os seus direitos, que não nos lembrem de que continuamos a não cumprir as leis, a desrespeitar os direitos humanos e a pisotear a dignidade humana. Se o fizerem, haverá, certamente, quem não tenha pruridos em mandá-los "para a sua terra”.

É certo que Portugal tem dado passos significativos em termos legislativos. Mas há ainda muito a melhorar no quadro legal em vigor.

Portugal continua a não ter uma verdadeira política para a inclusão de imigrantes, bem como não tem sido capaz de assegurar uma resposta digna que proteja os direitos humanos. Faltam meios, falta formação, falta um combate intransigente contra a xenofobia, o racismo, a estigmatização e discriminação. Falta a vontade política para que, de uma vez por todas, olhemos para as e os imigrantes como pessoas, e não como números.

 

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
Termos relacionados Sociedade
(...)