COP23 de Bona: Do fosso ao abismo

01 de December 2017 - 23:21

De COP em COP, o capitalismo mundial continua a aproximar a humanidade do abismo. Artigo de Daniel Tanuro.

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Foto UNclimatechange/Flickr

A vigésima terceira Conferência das Partes signatárias da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre o Clima acaba de terminar, em Bona (Alemanha). Tratou-se de uma reunião intermédia entre a COP21 de Paris, em 2015, e a COP24 que terá lugar, em Katowice (Polónia), em 2018.

Como se sabe, Paris resultou num acordo dito «histórico» relativamente ao limite do aquecimento no fim do século (comparado com a era pré-industrial): «ficar abaixo de 2°C e prosseguir os esforços para não ultrapassar 1,5°C».

Katowice será uma etapa mais importante do que Bona: os Estados signatários terão que dizer como e em que medida elevarão o nível das suas ambições para atravessar o fosso entre as reduções de emissões de gás de estufa previstas efetivamente nos seus "Planos de Clima" nacionais, por um lado, e as reduções que seriam necessárias para alcançar as metas globais fixadas no papel, em Paris, por outro lado. A Bélgica, por seu lado, não tem nenhum Plano Clima merecedor desse nome.

Todos os anos, as Nações Unidas consagram um relatório especial ao desafio do "fosso das emissões". De acordo com a edição 2017 (Relatório Referente a Emissões 2017), o fosso é "de uma dimensão alarmante". Isso é o menos que se pode dizer: os Planos de Clima (ou "Contribuições Nacionalmente Determinadas" - CND) dos Estados representam só um terço das reduções de emissões que seria necessário fazer para ficar abaixo de 2ºC do aumento da temperatura... e (mas o relatório não diz isto) menos do que um quarto das reduções que seria necessário para ficar abaixo de 1,5°C.

Ora, o tempo é curto e os prazos finais são cada vez mais apertados. O relatório especifica: "Se o fosso das emissões não estiver colmatado em 2030, é extremamente improvável que o objetivo para não ultrapassar os 2°C seja alcançado. Mesmo se as CND atuais forem completamente concretizadas, o orçamento de carbono para 2°C estaria esvaziado em 80%, em 2030. Segundo as estimativas atuais, o orçamento de carbono para 1,5°C estará já esgotado antes de 2030 ". [1]

Convém recordar que o "orçamento de carbono" é a quantidade de carbono que ainda pode ser enviada para a atmosfera com uma probabilidade X de não exceder um aumento de Y°C até ao fim do século. A probabilidade relativa aos orçamentos de carbono de 2°C e de 1,5°C mencionados no Relatório de 2017 da ONU referente às emissões é de 65%. (Em parênteses: é pouco. O que fará você se lhe disserem que o avião no qual viaja tem 65% de hipóteses de não explodir durante o voo?).

Voltemos à questão das demoras. Para que o fosso esteja preenchido em 2030, é preciso que as medidas sejam tomadas o mais tardar em 2020 - daqui a três anos - e que elas sejam multipliquem por três as reduções de emissões previstas nas CNDs. O ano de 2020 é a primeira data limite prevista em Paris para a adaptação das CNDs, tendo em vista colmatar o fosso. 

Para preparar esta negociação crucial, os governos previram um processo chamado "diálogo facilitador" que começa em 2018. O relatório das Nações Unidas sobre o fosso descreve assim, preto no branco: "O diálogo facilitador e a revisão 2020 dos CNDs é a última oportunidade de colmatar o fosso das emissões em 2030."

“A última oportunidade de colmatar o fosso”, o que quer dizer é a última oportunidade para ficar abaixo de 2°C de aquecimento no fim do século. Convém lembrar que um aquecimento de 2°C implicará muito provavelmente - e irreversivelmente - um aumento do nível dos oceanos de aproximadamente 4,5 metros...

Dada a dimensão dos esforços a fazer para se estar em linha com os objetivos de Paris e o prazo final extremamente curto no qual esses esforços devem ser efetivamente decididos e aplicados, não é de fosso que se deve falar, mas de abismo.

Dada a dimensão dos esforços a fazer para se estar em linha com os objetivos de Paris e o prazo final extremamente curto no qual esses esforços devem ser efetivamente decididos e aplicados, não é de fosso que se deve falar, mas de abismo.

Será possível colmatar o fosso - não cair no abismo? Uma vez mais, a  resposta a esta pergunta é dupla: tecnicamente, sim. No quadro do produtivismo capitalista, não.

A Convenção Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, adoptada em 1990 no Rio, fixava como meta não exceder um "nível perigoso" de aquecimento. Foram necessários vinte cinco anos e vinte um COPS para decidir dar um número a este nível perigoso: não exceder 2°C e "continuar os esforços (sic) para não ultrapassar 1,5°C."

Vista esta lentidão, é preciso ser ingénuo ou muito otimista para pensar que dois anos serão agora suficientes para que os governos do mundo se ponham de acordo sobre as medidas a tomar para multiplicar os seus esforços por três, a fim de respeitar o objetivo dos 2°C, e por quatro para respeitar os 1,5°C (de facto, o que deveria ser absolutamente alcançado).

Realmente, vinte e cinco anos depois do Rio, as emissões globais continuam a aumentar. Elas aumentam debilmente, é verdade (0,9%, 0,2% e 0,5%, respectivamente, em 2014, 2015 e 2016)... mas elas aumentam... enquanto deveriam diminuir fortemente e rapidamente"

É verdade que é positivo que por um lado os Estados Unidos estejam politicamente muito isolados na temática climática, e que por outro alguns estados (a Califórnia na linha da frente) desafiem abertamente Trump e a sua clique de criminosos climáticos. O que não impede que a retirada dos EUA pese sobre as negociações.

Esta retirada vai tornar ainda mais difícil colmatar o fosso. A Contribuição nacionalmente determinada pelos EUA consistia numa promessa de redução das emissões em cerca de 2 gigatoneladas de CO2. Estas 2 Gts equivalem a 20% do esforço muito insuficiente que estabelecem os CNDs no seu todo. Elas somam-se assim às medidas a tomar daqui a três anos.

Além disso, é necessário notar aquele que os EUA se retiram sem realmente se retirarem: presentes em Bona, eles continuaram - como sob Obama - a travar os fundos verdes para o clima. Lembro que cem mil milhões de dólares por ano é quanto os países desenvolvidos se comprometeram a colocar à disposição do Sul a partir de 2020, para a adaptação e mitigação das alterações climáticas, das quais os países ricos são os principais responsáveis e os países pobres as principais vitimas.

Este fundo verde foi decidido na COP16 de Cancun, em 2010, mas o objetivo dos cem mil milhões está muito longe de ser alcançado (é um eufemismo). A ocasião faz o ladrão, outros países - a União Europeia em particular - aproveitaram a atitude norte-americana para evitar responder às questões concretas dos países do Sul e das ONGs: Quanto dinheiro? Quando? Sob que forma (donativos ou empréstimos?).

A verdade é que, de COP em COP, o capitalismo mundial continua a aproximar a humanidade do abismo. Face a esta situação alarmante, tentam convencer-nos com a enumeração de dados acerca do aumento da parte da energia de origem renovável no "mix energético”. Este aumento é realmente muito rápido e vai acelerar nos próximos anos, porque a eletricidade produzida pelas renováveis sai a partir de agora globalmente mais barata do que a energia produzida por combustão das fósseis.

Porém, estes discursos tranquilizadores induzem-nos em erro, porque o indicador a ter em conta é a redução das emissões, não a subida da parte das renováveis. Ora, enquanto não pusermos em causa o crescimento, logo a corrida ao lucro, a parte das renováveis pode aumentar ao mesmo tempo que aumentam as emissões de gás de estufa, e é exatamente o que tem acontecido nos últimos quinze anos.

Como sairá o capitalismo deste enorme problema? Para Trump e os criminosos imbecis do seu género, a questão não se coloca: a catástrofe que vem ou é natural ou uma punição que Deus impõe à humanidade pelos seus costumes depravados. Oremos, irmãos… E, em ambos os casos, ai dos pobres!

Mas os outros, os porta-vozes do capital que não se refugiam no negacionismo climático, os que sabem que a ameaça é real, terrível e que a catástrofe está em marcha, que farão eles para tentar enfrentar o desafio? Que farão eles quando constatarem que é impossível colmatar o fosso, porque o capitalismo não pode dispensar o crescimento? Vão associar-se à geoengenharia na esperança de evitar de qualquer forma tombar para o abismo.

Facto significativo: pela primeira vez, o relatório das Nações Unidas sobre o fosso das emissões contém um capítulo sobre as tecnologias das emissões negativas. Por outras palavras, as tecnologias que permitiriam remover o carbono da atmosfera "no caso de” as medidas de redução de emissões continuassem a ser insuficientes para respeitar os 2°C-1,5°C. É mais do que evidente que a reserva "no caso de" é uma figura de estilo para evitar revelar a verdade brutal: apesar de todos  os seus meios técnicos e científicos, a humanidade avança para o desastre por causa da corrida ao lucro imposta por uma minoria da população.

Mas voltemos às tecnologias das emissões negativas. Algumas dessas tecnologias são dignas de aprendizes de feiticeiro. É o caso, em particular, da bioenergia com captura e sequestro do carbono (BECCS), ou seja, a produção de eletricidade por combustão de biomassa em substituição dos fósseis, com captura do CO2 e armazenamento geológico deste.

Para que a BECCS tenha um impacto climático significativo, seriam necessárias enormes quantidades de água (3% de água doce usada hoje para fins humanos) e superfícies muito grandes destinadas às culturas energéticas industriais. Claramente, deveremos escolher entre a peste e a cólera: ou uma competição com a produção de alimentos, ou uma destruição terrível da biodiversidade (quero dizer: ainda mais terrível). Ou ambas ao mesmo tempo.

Dizem-nos que outras tecnologias são leves: reflorestamento, gestão dos solos favoráveis, armazenamento do carbono, restauração das zonas húmidas, etc. Exatamente, são leves em si mesmo. Mas a experiência mostra que tecnologias leves em si mesmo podem ter efeitos socialmente muito duros, quando pilotadas pela procura do lucro máximo e da extensão dos mercados. A lógica capitalista já mostrou como os povos indígenas são afastados da floresta em nome do clima (REDD, REDD+,etc.). Isso só pode ser acentuado no quadro de uma generalização sob gestão capitalista das tecnologias “leves” para emissões negativas.

Porém, no quadro capitalista, as tecnologias leves não serão suficientes. Elas poderiam bastar, mas não podem neste quadro pois são menos interessantes do ponto de vista capitalista do que a BECCS. Efetivamente, a BECCS oferece mercados à indústria pesada e permite ao capital realizar uma dupla operação: vender eletricidade, por um lado, e ser remunerado pela comunidade para retirar CO2 da atmosfera, por outro.

Interessante deste ponto de vista: damos conta num parágrafo do Relatório da ONU de 2017 relativo às emissões que ainda é possível ficar abaixo dos 2°C de aquecimento sem recorrer a bioenergia com captura e sequestro do carbono. Então, porque é que mais de 90% dos cenários de transição elaborados pelos cientistas apostam na utilização desta tecnologia? Porque a maioria dos cientistas que trabalham nos cenários consideram que a lei do lucro é uma lei natural, tão incontornável como a lei da gravidade.

Não há nada, rigorosamente nada a esperar dos negociadores das COPs. Os seus discursos tranquilizantes e satisfeitos visam unicamente adormecer as populações. O salvamento do clima através da solidariedade só depende da nossa capacidade para combater e, com as nossas lutas, de lançar as bases de uma lógica social alternativa à do lucro: a lógica da satisfação das necessidades sociais democraticamente determinadas no respeito pelos limites ecológicos.


* Daniel Tanuro é um militante ecossocialista e autor do livro “O Impossível Capitalismo Verde”. Publicado em: http://www.europe-solidaire.org/spip.php?article42501

Tradução de António José André para o esquerda.net

 

Notas:
[1] As emissões mundiais de CO2 são um pouco inferiores a 40 gigatoneladas/ano, as emissões acumuladas de todos os gases com efeito de estufa um pouco superiores a 50Gt/ano. Segundo o quinto Relatório do GIEC, os custos de carbono para 2°C e 1,5°C (65% de probabilidade) são de 1500Gt e de 800Gt para o período de 2011-2100.