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“Construímos cidades para que as pessoas invistam, não para que vivam”

“O Estado reorientou-se, passou de responsável pelo bem-estar da população como um todo a responsável pelo bem-estar das corporações capitalistas”, defende David Harvey numa entrevista publicada esta semana no La Vanguardia.
David Harvey. Foto reproduzida pelo Outras Palavras.
David Harvey. Foto reproduzida pelo Outras Palavras.

David Harvey é, sem dúvida, o geógrafo do capitalismo. Claro, é marxista. Nascido em Gillingham, Inglaterra, em 1935, foi professor de universidades como a Johns Hopkins, Oxford e, na atualidade, a City University of New York. Não era, recorda com um sorriso, um jovem radical. Começou a ler Marx aos 35 para poder interpretar melhor o que estudava como geógrafo. Livros como Os limites do capital, de 1982, foram um guia para entender as turbulentas paisagens do capitalismo moderno e mostraram que a análise da dinâmica da urbanização permitia compreender o que acontecia na complexa macroeconomia.

Harvey, que se tornou referência para a esquerda, visitou Barcelona para falar no MACBA [Museu de Arte Contemporânea de Barcelona] de um livro dedicado à sua obra: David Harvey. La lógica geográfica del capitalismo (Icaria), editado por Núria Benach e Abel Albert.

A entrevista é de Justo Barranco, publicada por La Vanguardia, 19-08-2019. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Afirma que, a partir dos anos 1980, as teorias de Marx tornaram-se cada vez mais úteis para interpretar o mundo. Porquê?

A teoria de Marx parte da visão utópica dos pais da economia clássica, de Adam Smith e David Ricardo, cujo argumento básico era: deixe que os mercados façam o seu trabalho e o mundo será muito melhor. Sendo assim, analisou as coisas a pensar num mercado perfeito. Contudo, quando comecei a ler Marx, nos anos 1970, contávamos com duas décadas de ampla intervenção do Estado na economia. Não era um mercado perfeito em nada. No Reino Unido, muitas habitações eram sociais.

Nos anos 1980, chegaram Thatcher e Reagan e disseram que o Estado precisava de retirar as suas mãos de tudo. Thatcher privatiza a habitação social e vamo-nos submetendo cada vez mais à disciplina do mercado. As teorias marxistas tornam-se ainda mais significativas porque se cria algo próximo ao mercado livre. Quanto mais mercado tínhamos, mais era necessário ler O Capital. Voltámos ao século XIX que Marx analisava.

Quando fala do capitalismo atual, diz que mudou: antes tratava da acumulação, agora da desapropriação do comum.

Houve um amplo leque de mudanças. O Estado reorientou-se, passou de responsável pelo bem-estar da população como um todo a responsável do bem-estar das corporações capitalistas. É um curioso socialismo empresarial em que o Estado subsidia as corporações para se instalarem nas suas cidades, com recursos que são retirados da educação, da habitação.

Além disso, o capital produz continuamente excedentes que precisam de ser empregues para produzir mais excedentes. Desse modo, precisam de definir novos campos para a acumulação. Quando a habitação se torna um campo onde o grande capital realmente pode circular, entra e organiza os seus mercados, também entra na educação e na universidade, que começam a ser uma mercadoria. Coisas que deveriam ser direitos tornam-se mercadorias.

Como é que esta mudança de sistema mudou as cidades?

Há muitas versões. Nos estados do Golfo, é de loucos. Numa região onde a maioria da população está desesperada por ajuda económica, constroem grandes cidades que não significam nada, a não ser consumo especulativo. Estamos crescentemente a construir cidades para que as pessoas invistam, em vez de cidades para que as pessoas vivam, e a qualidade da vida nelas cai, a menos que sejam milionárias. Muitos edifícios de Nova York permanecem vazios, muitos investidores são chineses que compram até que a situação na China melhore. Caminhe à noite e veja quantas luzes há.

O que é que as cidades podem fazer?

Deve haver uma taxa para habitações desocupadas, mesmo que talvez muitos encontrarão formas de demonstrar que nelas vive o zelador do edifício e um gato. Há vias tributárias para taxar as pessoas que usam a habitação apenas como uma fonte de investimento e poupança, em vez de espaço de vida. O que também acontece em cidades como Barcelona e Nova York é que muitos andares tornam-se Airbnb e isso também não ajuda na qualidade da vida comunitária, pelo contrário, destrói-a.

É possível mudar essas dinâmicas num mundo onde as grandes cidades são o principal centro do sistema?

Acredito na importância do poder dos movimentos políticos a nível municipal. Contudo, neste momento, não temos uma ideia de como usar esse poder. A experiência da administração de Colau é importante para ver as possibilidades e os limites de um projeto político municipal. As cidades têm muito potencial para lidar com temas como a oferta de habitação e a sua acessibilidade. Mas, não possuem poder suficiente. Nos Estados Unidos, estão limitadas pelos Estados, que possuem o poder tributário e podem inibir a sua capacidade de resposta. É muito importante entender onde está o poder, como é distribuído entre os diferentes níveis: nacional, local, distrital, e será necessária muita experiência para ter ideias mais claras.

Será complicado diante da dinâmica global de concentração da população em megacidades.

Hoje, há um desequilíbrio entre os centros metropolitanos e as áreas rurais, que foram minadas pela industrialização da agricultura. Possuem menos oportunidades de emprego. E de educação. O seu hospital pode estar a 70 km. Desse modo, tudo se concentra em grandes cidades, cuja política é muito diferente daquela das zonas rurais, que, em muitos lugares, foram o centro da reação populista de direita.

Esse desequilíbrio conduziu à onda populista?

O seu papel é muito importante. Não o único. O outro problema é que o neoliberalismo, após 2007, perdeu a sua legitimidade. Existiam pessoas que, nos anos 1990, gostavam do seu jogo, o empreendimento, o progresso pessoal. Houve muitas coisas boas na era neoliberal: mais atenção aos direitos dos gays, muitas feministas puderam utilizá-lo em seu benefício, havia uma base de apoio popular. Contudo, explodiu e não foi restabelecida.

A política neoliberal continua, mas sem legitimidade. Sendo assim, agora está em aliança com governos autoritários, populistas de direita. A primeira ação do atual presidente do Brasil foi nomear um ministro das Finanças que fizesse o que Pinochet fez no Chile, no seu início: liberalização total. A política real de Trump é a de desregulamentação em tudo. Desse modo, temos uma política neoliberal aplicada pela direita populista e acredito que veremos uma reação contra isso, porque não serão capazes de cumprir grande coisa em termos de melhorias económicas e políticas.

O populismo nascido das consequências do neoliberalismo agora é sua muleta?

Sim. O mais surpreendente é que não houve muito pensamento novo surgido da crise de 2008. Os economistas não sabem o que dizer. Não possuem um programa alternativo para sair da estagnação.


Artigo publicado em: http://www.ihu.unisinos.br/591801-construimos-cidades-para-que-as-pessoas-invistam-nao-para-que-vivam-entrevista-com-david-harvey

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