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Como o Sul tem pago as crises geradas pelo Norte e ampliado a sua submissão

Veremos neste texto como as crises das dívidas na periferia estão ligadas às crises capitalistas que ocorrem no epicentro capitalista, onde estão os países mais ricos. Estas crises, por sua vez, são usadas para subordinar muitos estados subdesenvolvidos. Mais à frente veremos uma perspectiva histórica das crises das dívidas na periferia desde o século XIX ao século XXI. Desde a América Latina à China, passando pela Grécia, Tunísia, Egito e o império otomano, a dívida tem sido usada como uma arma de dominação política e um meio de acumulação de riqueza em beneficio das classes dominantes. Este estudo constitui uma introdução a uma série de seis artigos que tratam sobre "A dívida como instrumento de subordinação da América Latina". Completa quatro artigos recentes, já publicados: “A Grécia independente nasceu com uma dívida odiosa” , «Grécia: a continuidade da servidão mediante a dívida, desde finais do século XIX até a Segunda Guerra Mundial», “A dívida como instrumento para a conquista colonial do Egito”, “França se apoderou de Tunísia usando a dívida como arma”.
A partir dos anos 1820, os governos dos países latino-americanos recém-saídos das guerras da independência se lançaram numa onda de empréstimos externos. Os banqueiros europeus buscavam com entusiasmo ocasiões para endividar estes novos estados, pois isso era-lhes altamente rentável[fn]Fzeram o mesmo com a Grécia em 1824-1825 com a concessão de dois empréstimos de um montante igual a 100% do PIB desse país, que estava se a formar. Ver: http://cadtm.org/Grecia-nacio-con-u [/fn]. Num primeiro momento, os empréstimos serviam para os esforços de guerra para garantir e reforçar a independência. Nos anos 1820 os empréstimos externos tomavam a forma de títulos de dívida emitidos por estados por intermédio de banqueiros ou por corretores de bolsa em Londres. Logo após os anos 1830, motivados pelos altos rendimentos, os banqueiros franceses, com muitos ativos, passaram a disputar com a praça financeira de Londres. No curso das décadas seguintes outras praças financeiras se somaram na concorrência: Frankfurt, Berlim, Anvers, Amsterdam, Milão, Viena… A forma usada pelos banqueiros para emprestar aos estados limitava os riscos aos que se expunham em caso de suspensão dos pagamentos aos possuidores destes títulos. Seria diferente se os empréstimos fossem feitos diretamente aos estados[fn]Foi o que aconteceu em 1960-1970. Durante esse período, os banqueiros concederam diretamente os empréstimos. Quando eclodiu a crise da dívida do Terceiro Mundo, em 1982, escaparam graças à intervenção dos estados imperialistas e a dupla do Banco Mundial/FMI autorizado a regressar à securitização da dívida como era praticada em todo do século XIX até a década de 1930. Voltaremos a isso mais tarde. Eu abordei a questão no livro A Bolsa ou a Vida de 1998, reedição revista e ampliada em 2004. http://cadtm.org/La-bolsa-o- e http://bibliotecavirtual.clacso.org/ [/fn]. Não obstante, quando estes banqueiros compravam estes títulos acabavam assumindo risco em caso de suspensão de pagamentos. Por outro lado, a existência de um mercado de títulos ao portador permitia aos banqueiros levar a cabo múltiplas manipulações para buscarem um rendimento elevado.
O recurso ao financiamento externo foi revelado contraproducente para os países em causa, em particular, porque esses empréstimos foram contraídos com condições muito favoráveis para os credores. As suspensões dos pagamentos eram numerosas e levavam a retaliações pelos países credores que repetidamente usavam a intervenção armada para obter o reembolso. As reestruturações de dívidas serviam normalmente aos interesses dos credores e das grandes potências que os apoiaram e colocavam os países devedores em um círculo vicioso de endividamento, dependência e «desenvolvimento do subdesenvolvimento», para usar uma expressão do economista André Gunder Frank[fn]Gunder Frank, André. 1972. Le développement du sous-développement: l’Amérique latine, Maspero, Paris, 399 p. https://books.google.es/books/about El desarrollo del subdesarrollo. IEPALA Editorial, 1992 - 179 páginas [/fn].

Pancho Villa - gravura de Leopoldo Méndez, 1934
- Como um meio de pressão e subordinação dos países endividados. Tal como sublinha Rosa Luxemburgo em 1913, os empréstimos «são os meios mais seguros dos velhos países capitalistas para manter sob sua tutela os jovens países, controlar suas finanças e colocar pressão sobre a política exterior, alfandegária e o comercial»[fn]Rosa Luxemburg, L’accumulation du capital, Maspero, París, Vol II, p. 89. Em espanhol: La acumulación del capital, http://grupgerminal.org/?q=system/f [/fn]. Felizmente, o México, em duas ocasiões, saiu de forma vitoriosa do confronto com os seus credores (em 1867 sob a presidência de Benito Juarez e, mais tarde, na onda da revolução mexicana liderada por Emiliano Zapata e Pancho Villa, que ordenou a suspensão da dívida em 1914).
O Brasil também enfrentou com sucesso os seus credores, entre 1933 e 1943, bem como o Equador em 2007-2009, sem esquecer Cuba sobre o Clube de Paris de 1986. Com uma nova crise da dívida na América Latina em andamento, está na hora de aprendermos com as lições ocorridas nos dois últimos séculos. Não fazer isso é condenar-se a reviver as tragédias do passado.
A dívida externa como arma de dominação e subordinação
O uso de dívida externa como arma de dominação desempenhou um papel fundamental nas políticas imperialistas dos países desenvolvidos ao longo do século XIX e continua cada vez mais forte no século XXI. Grécia, desde o início dos anos de 1820-1830, foi completamente submetida aos ditames das potências credoras (especialmente Grã-Bretanha e França)[fn]Ver http://cadtm.org/Grecia-nacio-con-u [/fn]. O Haiti, que se tinha libertado da França durante a Revolução Francesa e tinha proclamado a independência em 1804, foi novamente submetido a ela em 1825 pela dívida[fn]Sophie Perchellet, Haïti. Entre colonisation, dette et domination, CADTM-PAPDA, Liège-Puerto Principe, 2010 http://cadtm.org/Haiti-Entre-coloni. A ordenança do rei de França 1825 «Artigo 2: Os habitantes atuais da parte francesa de Santo Domingo entregue ao Depósito e remessas de França em cinco parcelas, ano a ano, a primeira em 01 de dezembro de 1825 a soma de cento e cinquenta milhões de francos, destinado a compensar os ex-colonos que exigirá uma compensação.» Este montante foi reduzido para 90 milhões de francos alguns anos mais tarde. [/fn]. A Tunísia endividada foi invadida pela França em 1881 e transformada numa colónia[fn]«Francia se apoderó de Túnez usando la deuda como arma», http://www.cadtm.org/Francia-se-apodero-de-Tunez-usando [/fn]. O Império Otomano, de 1881, foi submetido diretamente aos credores (Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália ...)[fn]Ver http://cadtm.org/L-Empire-Ottoman-f [/fn], o que acelerou a sua quebra. A China foi forçada pelos credores a fazer concessões territoriais e abrir totalmente o seu mercado no século XIX. A altamente endividada Rússia czarista também se poderia ter tornado presa aos poderes dos credores se a revolução bolchevique não tivesse repudiado a dívida em 1917-1918.
Das diferentes potências periféricas[fn]Periféricas em relação as principais potências capitalistas europeias (Grã-Bretanha, França, Alemanha, Países Baixos, Itália, Bélgica) e em relação aos Estados Unidos. [/fn] que poderiam potencialmente ter o papel de potências capitalistas imperialistas na segunda metade do século XIX, ou seja, o Império Otomano, no Egito, o Império Russo, a China e o Japão, apenas o Japão conseguiu esta mudança[fn]Jacques Adda é um dos autores que chama a atenção a isto. Ver Jacques Adda. 1996. La Mondialistation de l´économie, tomo 1, p. 57-58. [/fn]. Na verdade, o Japão não recorreu praticamente a nenhuma dívida externa para o desenvolvimento económico significativo e se tornar uma potência capitalista imperialista, na segunda metade do século XIX. O Japão experimentou um grande desenvolvimento capitalista autónomo, como resultado das reformas do período Meiji (iniciado em 1868). Importou as técnicas industriais ocidentais mais avançadas, porém evitando a penetração financeira estrangeira no seu território, recusando-se a recorrer a empréstimos estrangeiros no país. Desta forma removeu os obstáculos à circulação de técnicas de produção ocidentais no seu parque industrial. No final do século XIX, o Japão passou de autarquia secular a uma expansão imperialista vigorosa. É claro que a ausência de dívida externa não foi o único fator que permitiu ao Japão saltar para um desenvolvimento capitalista vigoroso e perseguir uma política externa agressiva, entrando no ranking das grandes potências imperialistas. Outros fatores que seriam demasiado longos para enumerar aqui operaram igualmente, mas, obviamente, a ausência de dívida externa desempenhou um papel fundamental[fn]Para saber mais sobre os fatores que não recorrem a dívida externa, ler Perry Anderson, 1979, El Estado absolutista (Siglo XXI Editores), sobre a passagem do feudalismo ao capitalismo no Japão. Por outo lado, Carmen M. Reinhart e Christoph Trebesch assinalam que efetivamente o Japão não recorreu ao endividamento externo e se saiu melhor que os restantes. Ver Carmen M. REINHART et Christoph TREBESCH, «The Pitfalls of External Dependence: Greece, 1829-2015», Brookings Papers. [/fn].
Ao contrário de China, que até os anos de 1830 levava a cabo um desenvolvimento muito importante e se pretendia uma potência económica de primeiro nível[fn]Kenneth Pomeranz, que trabalha para pôr em evidência os fatores que impediram a China de se converter numa das grandes potências capitalistas, não atribui importância à dívida externa, enquanto centra seu estudo no período que precede a 1830-1840. A sua análise é muito rica e sugestiva. Ver Kenneth Pomeranz (2000), The Great Divergence, Princeton University Press, 2000, 382 páginas. [/fn], ao recorrer a empréstimos externos permitiu que as potências europeias e os Estados Unidos gradualmente a marginalizassem e a submetessem. Outros fatores se somaram a este processo, tais como as guerras lançadas pela Grã-Bretanha e França para impor o livre comércio e as exportações de ópio para China, mas o uso de dívida externa e as suas consequências desastrosas desempenharam um papel muito importante.
Na verdade, para pagar os empréstimos estrangeiros, a China teve que sacrificar e conceder áreas territoriais portuárias para potências estrangeiras. Rosa Luxemburgo menciona, entre os métodos utilizados pelo Ocidente para dominar de «sistema da dívida pública, empréstimos europeus, controle financeiro europeu com o resultado da ocupação das forças chinesas, abertura forçada de portos livres e concessão ferroviária obtida sob a pressão dos capitalistas europeus»[fn]Rosa Luxemburg, La acumulación del capital http://grupgerminal.org/?q=system/f [/fn]. Joseph Stiglitz, quase um século depois de Rosa Luxemburgo, também se refere a isso em sua obra «A Grande Decepção».
As crises da dívida externa da América Latina do século XIX ao século XXI
Desde a independência em 1820, os países latino-americanos tiveram quatro crises da dívida.
A primeira crise ocorreu em 1826, produzida pela primeira grande crise capitalista internacional, que começou em Londres em Dezembro de 1825. Esta crise da dívida durou até os anos 1840-1850.
A segunda começou em 1876 e terminou nos primeiros anos do século XX[fn]A Venezuela recusou-se a pagar a sua dívida e entrou num verdadeiro teste de força com os imperialistas EUA, alemães, britânicos e franceses, que enviaram em 1902 uma frota militar multilateral para bloquear o porto de Caracas e obter, pela diplomacia das canhoneiras, o compromisso da Venezuela para retomar o pagamento de dívidas. A Venezuela terminou de pagar essa dívida em 1943. Ver Pablo Medina et al. 1996 «ABC de la deuda externa», p. 21-22, p. 37, p. 50. [/fn].
A terceira começou em 1931 como desdobramento da crise que havia surgido em 1929 nos Estados Unidos. Seu término ocorre no final dos anos 1940.
A quarta explodiu em 1982, ligada com a elevação da taxa de juros praticada pela Reserva Federal dos Estados Unidos (Fed) e a queda dos preços das matérias primas. Esta quarta crise terminou em 2003-2004, quando ocorreu um aumento dos preços das matérias-primas e uma queda na taxa de juros. A América Latina também se aproveitou da queda da taxa de juros internacionais como resultado das decisões da Fed, seguidas pelo BCE e pelo Banco da Inglaterra, a partir da crise bancária no Norte que começou em 2008-2009.
Uma quinta se anuncia como resultado da queda acentuada nos preços das commodities, que começou em 2013-2014, e da evolução da economia das principais potências imperialistas, que hoje incluem China (perspectiva de taxas crescentes de juros determinada pela Fed, a bolha do mercado de ações explodiu… causando um regresso de capital para os Estados Unidos, Europa e talvez China). A crise já afeta em cheio Porto Rico[fn]http://cadtm.org/Puerto-Rico-en-lut [/fn]. É um prenúncio, mas são especialmente a Venezuela e a Argentina que correm o risco de dar maior amplitude à crise quando ela estourar, com a particularidade de que uma parte da sua dívida foi contraída com a China, o novo grande emprestador na América Latina.
As origens destas crises e da sua expansão estão intimamente relacionadas com o ritmo da economia mundial e, especialmente, dos países mais industrializados. Cada crise da dívida foi precedida por uma fase de sobreacumulação do capital nos países industrializados. Neste processo de expansão de capital fictício marcado por uma superabundância do capital, uma grande parte passa a ser reciclado nas economias subdesenvolvidas, seja em títulos ou aplicado em ações.
As origens destas crises e seus momentos estão intimamente ligados ao ritmo da economia mundial, em especial dos países industrializados. Cada crise da dívida é precedida por uma fase de sobreaquecimento da economia dos países mais industrializados do Centro, durante a qual ocorre superabundância de capitais. Uma parte destes capitais é reciclada em direção às economias da Periferia. As fases que antecedem a eclosão da crise, durante as quais a dívida cresce fortemente, correspondem ao fim de um ciclo longo expansivo dos países mais industrializados, salvo no caso presente, porque dessa vez não se pode falar de ciclo longo expansivo, exceto em relação à China (e outros BRICS). A crise é geralmente causada por fatores externos aos países endividados: uma recessão ou um crash financeiro que atinge um ou vários países industrializados; uma mudança da política de taxas de juro decidida pelos bancos centrais das grandes potências dessa época.
O que está dito acima está em desacordo com a narrativa da crise que domina o pensamento económico-histórico dominante[fn]Ver em especial os escritos de Sismondi e Tugan Baranovsky sobre as grandes manchetes da época e discursos por parte dos governos europeus da época. [/fn] que é divulgado pela grande média e pelos governos ligados ao sistema da dívida. De acordo com a narrativa dominante, a crise que eclodiu em Londres, em dezembro de 1825, e se espalhou para outras potências capitalistas, resultou do sobre-endividamento dos Estados latino-americanos; na década de 1870, o sobre-endividamento da América Latina, do Egito e do Império Otomano; na década de 1890, quase causando a falência de um grande banco britânico, o endividamento da Argentina; na década de 2010, o endividamento da Grécia e, mais genericamente, dos PIGS (Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha).
A crise da dívida e as ondas longas da economia capitalista internacional
Há uma relação entre o estouro dessas quatro crises e as ondas longas do capitalismo. Este conceito de ondas longas do desenvolvimento capitalista, desde o início do século XIX, teve a contribuição de vários autores, incluindo Ernest Mandel. Estes deram uma contribuição importante, nomeadamente quanto ao impacto do fator político sobre o desenvolvimento e os resultados de ondas longas nas economias periféricas[fn]Mandel, Ernest, Las ondas largas del desarrollo capitalista: una interpretación marxista. Madrid: Siglo XXI Editores, 1980/1986. ISBN 84-323-0558-3 [/fn]. Ernest Mandel propôs a periodização seguinte para as ondas longas desde o final do século XVIII até inicio do século XX[fn]Ver E. Mandel, El capitalismo tardio. México: Ediciones Era, 1972/1979. ISBN 968-411-009-0 [/fn]:
- Crescimento forte a partir de 1793 finalizando na grande crise de 1825
- Crescimento lento de 1826 a 1847 com forte crise em 1846-47
- Crescimento forte de 1848 a 1873 com crise forte em 1873
- Crescimento lento de 1874 a 1893 com crise bancária em 1890-1893
- Crescimento forte de 1894 a 1913…
As fases de expansão forte, assim como as fases de expansão lenta, estão subdivididas em ciclos mais curtos que variam entre 7 a 10 anos e que acabam em crise.
Depois de uma crise financeira da Bolsa de Valores em 1825, a primeira crise moderna da superprodução de mercadorias (1826) abriu o caminho para uma longa onda de crescimento lento (1826-1847) e para a primeira crise da dívida na América Latina (que começa em 1826-1827).
A segunda crise eclodiu em 1873 como resultado de uma quebra na Bolsa de Viena, seguida pela quebra da Bolsa de Nova York. Este fato foi marcado por uma longa depressão nas economias industrializadas 1873-1893. Na América latina a sua consequência foi uma crise da dívida na década de 1870.
Como resultado da crise em Wall Street, em 1929, a depressão da década de 1930 na economia global provoca a crise da dívida na América Latina. Todavia, suas consequências geraram um cenário diferente da fase anterior. De facto, como resultado nomeadamente da decisão de não pagar a dívida de quatorze países latino-americanos, a crise da dívida levou um boom industrial de longa duração nos principais países (nomeadamente Brasil e México) em contradição com a crise dos países do Centro.
A quarta crise começou em 1982 e foi causada pelo efeito combinado da segunda recessão econômica global (1980-1982) no pós Segunda Guerra, marcada pela queda dos preços das matérias-primas (que estava ligado à recessão) e a elevação da taxa de juros pelo Fed de 5% para 20% em 1979, visando à retomada da hegemonia do dólar.
As quatro primeiras crises duraram de 15 a 30 anos. A quinta crise já está nos seus primeiros passos e afeta o conjunto dos estados independentes da América Latina e do Caribe, quase sem exceção.
No decorrer dessas crises, foram frequentes suspensões de pagamento da dívida. Entre 1826 e 1850, durante a primeira crise, a maioria dos países suspendeu o seu pagamento. Em 1876, onze países latino-americanos suspenderam seus pagamentos. Em 1930, onze países do continente decretaram moratórias. Entre 1982 e 2003, México, Bolívia, Peru, Equador, Brasil, Argentina, Cuba tiveram suspensão de pagamento, por um período de vários meses ou vários anos. A suspensão decretada pela Argentina entre o fim de 2001 e Março de 2005, num montante de cerca de US$ 90 bilhões permitiu um crescimento económico sustentado.
Na maioria dos casos, as suspensões de pagamentos foram seguidas por reestruturação favorável aos interesses dos credores. Exemplos de estados periféricos que vitoriosamente repudiam as suas dívidas são muito raros, mas existem. É o caso do México durante o mandato do liberal Benito Juarez, o primeiro presidente indígena da América Latina[fn]Benito Juárez (1806-1872) era zapoteca, uma das populações nativas de México (região de Oaxaca). [/fn]. O México, que suspendeu o pagamento da dívida odiosa, em 1861, conseguiu expulsar o Corpo Expedicionário Francês em 1866 após quatro anos de combates pesados e a imposição de um imperador Europeu, Maximiliano da Áustria. Em 1867, o México repudiou a dívida reclamada pela França. Igualmente raros são os casos em que um Estado organizou uma auditoria da dívida, a fim de questionar o seu pagamento. Foi em especial o caso do Equador, em 2007-2008. Os seus exemplos são ricos em ensinamentos.
As ondas longas de evolução do capitalismo Vamos ver o que diz Michel Husson: «A teoria das ondas longas já tinha sido objeto do Capítulo 4 do capitalismo tardio (Mandel, 1972) antes de ser desenvolvido durante uma série de palestras dadas em Cambridge em 1978, o que levou a publicação de «As Ondas Longas do Desenvolvimento Capitalista em 1980». Uma das propostas essenciais desta teoria é que o capitalismo tem uma história, e que esta história não obedece a um funcionamento cíclico. Isso leva a uma sucessão de períodos históricos, marcada por características específicas, com momentos de auge e recessões. Essa alternância não é mecânica: não basta esperar 25 ou 30 anos. Se Mandel fala onda em vez de ciclo, é claramente porque a sua abordagem não está localizada em um esquema, geralmente atribuído – talvez erroneamente – a Kondratieff, de movimentos regulares e alternados de preços e de produção. Um dos aspectos importantes da teoria de ondas longas é quebrar a simetria das inflexões: a passagem da fase de expansão para a fase depressiva é «endógena», no sentido de que ela é o jogo do funcionamento interno do sistema. Pelo contrário, a passagem da fase depressiva para a fase de expansão é exógena, não automática, e envolve uma reconfiguração do ambiente social e institucional. A ideia-chave aqui é que a transição para a fase de expansão não é dada com antecedência e exige reconstituir uma nova «ordem produtiva». Isto leva tempo, e não há, portanto, um ciclo semelhante ao ciclo económico, cuja duração pode ser relacionada com a vida do capital fixo. Esta é a razão pela qual esta abordagem não dá qualquer prioridade às inovações tecnológicas: na definição desta nova ordem de produção as transformações sociais desempenham um papel essencial (correlação de forças entre capital e trabalho, o grau de socialização, as condições de trabalho, etc.). (Ver Michel Husson: http://www.contretemps.eu/lectures/ e http://www.vientosur.info/IMG/pdf/O). Adaptando um pouco a apresentação cronológica de Ernest Mandel: De acordo com Michel Husson, «Desde a publicação do livro de Mandel, a economia mundial mudou drasticamente. Com a ascensão dos países chamados “emergentes”, estamos a testemunhar uma verdadeira “mudança radical no mundo” cuja medida pode ser tomada com a ajuda de alguns números. Assim, os países emergentes realizaram em 2012 metade das exportações industriais do mundo, quando sua parte foi de apenas 30% no início da década de 1990. Desde o início de 2000, a totalidade da progressão da produção industrial mundial tem sido feita nos países emergentes. O capitalismo parece assim encontrar um segundo fôlego na deslocalização da produção em países com significativos ganhos de produtividade, e onde o nível salarial é muito baixo (…)» «O raciocínio sobre os “velhos países capitalistas” ou a totalidade da economia global, já não é o mesmo: o crescimento da produção (incluindo a produção industrial), os ganhos de produtividade e o desenvolvimento da classe trabalhadora encontram-se desde o início do século XXI em países do Sul. Existe mais que uma dessincronização que poderia ser colocada na conta de fatores específicos (...)» «Em última análise, o que é verdadeiro para os velhos países capitalistas do Norte, ou seja, a incapacidade de pôr em prática as bases de uma nova “onda longa expansiva” não parece ser totalmente aplicável a um número de países que se agruparam uma fração significativa da população mundial. Pode-se, no limite, falar de uma onda longa expansiva com respeito a eles. Se é um modo de crescimento que aumenta as desigualdades e bárbaro (pois evoca o auge da Inglaterra do século XIX) é outra questão: o ponto decisivo é que nos países em causa, a acumulação de capital e o crescimento do emprego assalariado dão provas de um dinamismo impressionante.» Acrescento de minha parte que a fase de forte expansão nos países emergentes (com a China à cabeça) e um grande número de países em desenvolvimento mostra sinais de perda de energia ou exaustão a partir de 2014 a 2015, enquanto as economias dos antigos países industrializados permanecem atoladas em crescimento lento. Uma das ideias apresentada neste artigo, é que existe uma estreita relação entre as fases de forte expansão do capitalismo global e a acumulação de dívida nos países periféricos (e, neste caso, a América Latina) estimuladas em particular pela vontade das economias capitalistas mais fortes para aumentar os fluxos de capitais para a periferia (destaco que temos que colocar a China como economia capitalista forte). A mudança da fase de forte crescimento geralmente leva a uma crise da dívida nos países periféricos. Pode-se afirmar sem exagero que tal processo leva a uma crise da dívida na periferia. No presente período histórico, vivemos em um momento sem um forte crescimento nas antigas economias capitalistas, que poderia levar a uma nova crise da dívida na América Latina e outros países periféricos (na África e Ásia). Os primeiros a serem afetados serão os países que dependem fortemente da exportação de matérias-primas para pagar a sua dívida; além destes, os países periféricos dentro ou nas margens da Europa (Grécia, Portugal, Espanha, Irlanda, Chipre, Ucrânia, outros países do antigo bloco de Leste, etc.) ou na esfera dos Estados Unidos (onde Porto Rico dá o exemplo). |
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Agradecimentos: O autor agradece a Brigitte Ponet, Damien Millet, Claude e Pierre Salama que releu e fez as suas sugestões e Pierre Gottiniaux por ilustrações. O autor é o único responsável por quaisquer erros contidos neste trabalho.
Artigo de Eric Toussaint, publicado originalmente a 8 de julho no Comité para a Abolição das Dívidas Ilegítimas. Tradução para o português de José Menezes Gomes, revisão de Rui Viana Pereira.
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