You are here

Não apaguem o Facebook, regulem-no

O escândalo do Facebook/Cambridge Analytica mostra que chegou a hora das plataformas de comunicação serem reconhecidas como bens essenciais para a sociedade moderna. Artigo de Bruce Shapiro.

O Facebook está a levar a tareia que merece pela sua escandalosa negligência ao permitir que os antidemocráticos, mentirosos e desavergonhados da Cambridge Analytics recolherem os dados de cerca de 50 milhões de utilizadores. Muitos dos meus amigos estão a deixar o Facebook, numa revolta absolutamente justificada. Estão a juntar-se ao crescendo da campanha #DeleteFacebook — e aquela desculpa atrasada do “já solucionámos o problema” por parte de Mark Zuckerberg e Sheryl Sandberg só veio esfregar mais sal na ferida.

Ainda assim, não me vou juntar ao êxodo — pelo menos por enquanto. Continuo a achar que o Facebook é uma plataforma de comunicação e auto-publicação valiosa e importante. Com todos os seus defeitos, permanece um instrumento fundamental para o ativismo político - basta olhar, por exemplo, para a importância que o Facebook e outras redes sociais tiveram na greve dos professores da Virgínia Ocidental, ou na onda de mobilização estudantil a seguir ao tiroteio na escola Marjory Stoneman Douglas, ou mesmo na manifestação deste fim de semana em Washington.

Não me interpretem mal. Acho que Zuckerberg e Sandberg deviam ir para a reforma antecipada na Antártida. Mas a raiz do problema não está no Facebook. Está nas ideias e nas políticas: o libertarianismo cego que dirige esta empresa e toda a indústria da tecnologia.

Facebook, Twitter, Apple, Google — toda esta área foi construída a partir da ideia de que os dados individuais são uma mercadoria para ser explorada, sem regulação, como a bauxite ou o titânio. Sillicon Valley agarra-se à ideia de que “liberdade de expressão” significa que as empresas hospedeiras não têm qualquer responsabilidade pelas falsidades, ameaças ou imagens chocantes que se publicam nas suas lucrativas plataformas; que a enorme riqueza gerada por estes negócios pode ser concentrada nas mãos de uma pequena elite tecnocrática; e que essas empresas e as suas satélites têm razão em recorrerem a paraísos fiscais para se protegerem até da mínima responsabilidade cívica que é uma obrigação de qualquer negócio. A aparência liberal da indústria tecnológica em assuntos sociais esconde as traições gananciosas ao contrato social mais geral.

Claro, podemos sempre esperar por uma alternativa melhor ao Facebook. Podemos esperar por tecnologia que faça mais pela proteção da privacidade — tal como o Skype era suposto ser mais seguro do que o email, até que deixou de ser; como o WhatsApp supostamente encripta melhor as mensagens, mas foi comprado pelo Facebook; tal como o Signal é suposto ser ainda mais impenetrável, até ao dia em que algum hacker ou espião conseguir lá entrar.

Podemos entrar numa roda de hamster sem fim ou esperar pela Próxima Plataforma Melhor — que só será melhor até deixar de o ser. Ou podemos abandonar o barco das redes sociais, o que nos corta a comunicação com milhões de pessoas. Qualquer destas escolhas não mudará nada; só empurra com a barriga a questão da responsabilidade social da indústria da tecnologia.

A verdadeira alternativa: podemos afirmar que chegou a hora das plataformas de comunicação serem reconhecidas como bens essenciais para a sociedade moderna; e tal como outros bens essenciais, elas devem ser reguladas, sujeitas a um controlo público rigoroso e à prestação de contas.

Tal como muitos cidadãos, eu sou um vulgar consumidor de redes sociais, com pouca paciência para discussões sobre APIs e algoritmos. Se tivesse nascido há um século, ficaria igualmente entediado pelas conferências dadas por brilhantes geólogos e engenheiros acerca da então recém-chegada indústria do petróleo. Mas é precisamente essa a questão. Não foram os engenheiros e empreendedores da era Progressista que prevaleceram na Standard Oil e no resto dos consórcios gananciosos do petróleo nos EUA, que têm manipulado os preços sem castigo e comprado legisladores como bagatelas. Foi uma geração de políticos reformistas, advogados de causas, jornalistas de investigação e eleitores indignados que respeitaram a experiência democrática do seu país. Esta gente percebeu que os pesos e contrapesos do sistema tinham sido corrompidos por concentrações de riqueza e influência nunca vistas. É isso que está em causa nesta trapalhada do Facebook e na razão pela qual os tão liberais e geniais líderes da indústria tecnológica ficaram amarrados através da Cambridge Analytica a algumas das piores pessoas neste planeta. Não se trata de saber se o Farmville tem muitos dados sobre uma pessoa. E não é um problema que os engenheiros e empreendedores possam arranjar.

É evidente que já há por aí algumas boas ideias e que vozes muito informadas estão a soar o alarme. Fico impressionado pela decência e as motivações democráticas dos dissidentes da indústria tecnológica do Center for Humane Technology. Também há iniciativas legislativas — preliminares e limitadas — que vão na direção certa. O membro da Câmara dos Representantes Ro Khanna propôs uma Carta dos Direitos da Internet, que se concentra sobretudo na privacidade dos dados; A senadora Amy Klobuchar apelou à regulação da publicidade nas redes sociais, tal como existe regulação para as emissoras.

Mas o escândalo Facebook/Cambridge Analytica – tornado público, sublinhe-se, por repórteres de investigação transnacionais que seguem a tradição da revelação de escândalos iniciada na onda reformista contra os consórcios no século XIX — mostra que os riscos são maiores, por isso as soluções têm de ser mais ambiciosas. Enquanto cidadãos, podemos exigir legislação forte que contrarie a desestabilizadora concentração de poder das empresas das redes sociais. Enquanto utilizadores e consumidores, podemos exigir que as empresas — a começar pelo Facebook — estejam à altura de padrões mais elevados.

Por isso, enquanto não abandono o jogo, se alguém quiser organizar um Dia Sem Facebook para exigir um novo pacto para as redes sociais — contem comigo.


Bruce Shapiro é editor do The Nation e diretor executivo do Dart Center for Journalism and Trauma.

Artigo publicado em The Nation a 22 de março de 2018. Traduzido por Luís Branco para o esquerda.net.

(...)

Neste dossier:

Ghost in the Shell, de Mamoru Oshii.

Google e Facebook - a privatização da privacidade

O período de consentimento e participação na maior operação de invasão da privacidade alguma vez operada na história da humanidade parece ter sofrido o seu primeiro momento de crise. Dossier organizado por Tiago Ivo Cruz. 

Mark Zuckerberg ao lado do número de utilizadores do Facebook, Instagram, WhatsApp, Messenger, e Groups, em Março de 2015. Foto de Maurizio Pesce / Wikimedia.

Nem sequer precisaram de piratear o Facebook

“A Cambridge Analytica pirateou a nossa informação online para ajudar à eleição de Donald Trump. É um escândalo, mas não é nada de novo”. Artigo de Branko Marcetic publicado em Jacobinmag.com.

O Arquiteto, em Matrix Reloaded.

Exatamente quanta informação reuniu o Facebook e a Google sobre si? Vai ficar assustado.

Que a Google e o Facebook reúnem informação privada já não surpreende ninguém, mas o volume de informação reunida apenas por estas duas multinacionais está a surpreender mesmo os profissionais da área. Aqui fica um guia para tentar controlar a sua informação privada.

Mark Zuckerberg, fundador do Facebook. Fotografia da sua página oficial no Facebook.

Zuckerberg admite erro do Facebook

Após dias de silêncio, o fundador do Facebook veio referir-se ao escândalo com a empresa Cambridge Analytica, reconhecendo que a empresa cometeu erros e que tem a obrigação de garantir a segurança dos dados dos utilizadores.

Mark Zuckerberg, presidente e fundador do Facebook, fala durante o lançamento de produto Oculus Connect 4 em San Jose, California, numa quarta-feira, 11 de outubro de 2017.

Facebook ocultou páginas onde promovia a sua capacidade de influenciar eleições

Até recentemente, "havia uma secção inteira do site dedicada a divulgar as “histórias de sucesso” de campanhas políticas que usaram a rede social para influenciar resultados eleitorais" no Facebook. Um artigo de Sam Biddle publicado no The Intercept.

O Facebook e a manipulação das nossas opiniões

Os nossos dados podem ser roubados, analisados e tratados por empresas, de forma a manipular a nossa opinião e condicionar o nosso sentido de voto e a nossa escolha em futuras eleições

Crónica de Moisés Ferreira

Fotografia: GarryKillian/Shutterstock

Psicográficos: a análise comportamental que ajudou a Cambridge Analytica a conhecer as mentes dos eleitores

A Cambridge Analytica foi contratada para a campanha de Trump e forneceu uma nova arma para a máquina eleitoral. Enquanto usava segmentos demográficos para identificar grupos de eleitores, tal como na campanha de Clinton, a Cambridge Analytica também segmentou através de psicográficos. Por Michael Wade.

Não apaguem o Facebook, regulem-no

O escândalo do Facebook/Cambridge Analytica mostra que chegou a hora das plataformas de comunicação serem reconhecidas como bens essenciais para a sociedade moderna. Artigo de Bruce Shapiro.

Foto Belinda Lawley/Southbank Centre/Flickr

Eu inventei a web. Aqui estão três coisas a mudar para a salvarmos

Neste artigo, Tim Berners-Lee alerta para a perda de controlo dos dados pessoais que acabam por se virar contra os utilizadores através de campanhas personalizadas de desinformação.