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Chile: exército ocupa as ruas de Santiago, pela primeira vez depois da ditadura

Perante o levantamento popular contra o aumento de preços e a austeridade, o presidente do Chile decretou estado de emergência e entregou o controle ao exército. Na origem da crise social está a política neoliberal e as distorções no sistema político, que se mantiveram após o fim da ditadura. Por Carlos Santos
Centenas de pessoas ocupam a estação de metro Los Héroes em Santiago do Chile no dia 18 de outubro de 2019 – Foto de Alberto Pena/Epa/Lusa
Centenas de pessoas ocupam a estação de metro Los Héroes em Santiago do Chile no dia 18 de outubro de 2019 – Foto de Alberto Pena/Epa/Lusa

É a primeira vez, desde o fim da ditadura militar de Pinochet em 1990, que o exército ocupa as ruas e é chamado a tomar conta da segurança pública. 46 anos depois do bárbaro e sanguinário golpe de Estado de Pinochet, um presidente de direita, Sebastián Piñera, volta a entregar o poder ao exército para tentar submeter pela força a revolta popular, mostrando-se incapaz de ouvir a população e de responder aos protestos de um povo que se levanta contra a carestia e o agravamento das suas condições de vida.

#EvasionMasiva

Na passada sexta-feira, 18 de outubro, milhares de pessoas manifestaram a sua revolta contra o aumento dos preços do metro no Chile. Os protestos já vinham crescendo, há duas semanas, mas o presidente e o governo primeiro não os ouviu e depois começou a reprimi-los. Na sexta-feira, convocadas nas redes sociais pela hashtag #EvasionMasiva, as ações radicalizaram-se, verificando-se invasão das estações de metro, destruição de carruagens, enquanto era largado fogo a algumas carruagens ou estações.

As ações contra este aumento de preços do metro tinham começado desde a sua imposição, foram mobilizando sempre mais pessoas ao longo de duas semanas e foram também radicalizando-se. Cada vez mais pessoas foram saltando as cancelas e as ações de destruição também se multiplicaram, atingindo os prejuízos mais de 700.000 dólares.

Esta sexta-feira, gerou-se o caos na capital. O metro encerrou três linhas, por causa dos protestos, os autocarros não foram suficientes para transportar as pessoas, os táxis esgotaram-se e a cidade ficou bloqueada com os congestionamentos do trânsito. Os incêndios de carruagens, estações e edifícios públicos propagaram-se, assim como os saques a supermercados.

Invasão das estações do metro de Santiago (veja o vídeo):

 

O maior aumento desde 2010

Segundo o El Pais1, desde 2007 quando foi inaugurado o sistema de transporte público Transantiago (atual Rede Mtropolitana de Mobilidade), o preço do bilhete de metro já subiu 20 vezes, a última verificou-se no início deste mês passando de 800 para 830 pesos. Este aumento de 3,75% é o maior desde 2010. A justificativa para o aumento foi a guerra comercial no mundo, a valorização do dólar face ao peso chileno e o aumento do preço da energia. O preço do metro de Santiago do Chile é um dos mais elevados da América Latina, superior ao de São Paulo, Buenos Aires e Cidade do México.

Piñera entrega controle ao exército

Ao final do dia 18 de outubro, Sebastián Piñera decretou o estado de emergência no país e entregou o controle da capital ao exército.

Camila Vallejo, que encabeçou as lutas estudantis de 2011, escreveu no twitter: “Piñera passará à história como o primeiro presidente que em democracia impôs o recolher obrigatório devido às manifestações sociais”.

Para Piñera, que durante duas semanas não ouviu os protestos e só reagiu quando as estações de metro começaram a ser ocupadas ou destruídas, "o objetivo do declarar o estado de emergência é muito simples”, diz que se trata de “assegurar a ordem pública e a tranquilidade dos habitantes da cidade de Santiago, proteger os bens públicos e privados e, sobretudo, garantir os direitos de todos e de cada um dos nossos compatriotas".

Na verdade, o objetivo é calar os protestos para prosseguir a mesma nefasta política da direita chilena. Por isso, Piñera chama o exército para controlar as ruas, pela primeira vez 27 anos depois do fim da ditadura.

Balanço do general

Segundo um balanço oficial feito no sábado pelo general Javier Iturriaga del Campo, noticiado pelo “Expresso”2, foram presos 308 manifestantes e 167 ficaram feridos 167. 41 estações de metro (há 140 em Santiago) e 16 autocarros foram danificados ou queimados, assim como ardeu parte de um edifício da empresa de eletricidade ENEL. O general do exército Javier Iturriaga del Campo, chefe da Defesa Nacional, tornou-se o responsável pelo estado de emergência, mandatado por Piñera. No primeiro dia, mais de 500 militares passaram a patrulhar os principais eixos da capital, ao final do segundo dia o número subira para 15.000.

Piñera recua e anula a subida de preço do metro

Na tarde de sábado, Sebatián Piñera anunciou o recuo no aumento de preço do metro e a anulação da medida. “Quero anunciar hoje que vamos suspender a subida dos preços das passagens de metro”, declarou o presidente numa mensagem ao país.

Recolher obrigatório perante a continuação dos protestos

Face à continuação dos protestos em Santiago do Chile, o general Javier Iturriaga anunciou que resolveu decretar o recolher obrigatório entre as 22h de sábado e as 7h de domingo, nas províncias de Santiago e Chacabuco, e nas comunas de San Bernardo e Puente Alto.

O general anunciou a decisão de “decretar a suspensão da liberdade pessoal de circulação através de um recolher obrigatório total”, acrescentando que “a restrição das liberdades implica que as pessoas devem permanecer nas suas casas e que as que precisam, por razões de saúde, emergência, devem solicitar um salvo-conduto”. Para o general, a restrição das liberdades é muito boa para “proteger as pessoas e os seus bens”.

Entretanto, os protestos, marchas e “cacerolazos”3 estenderam-se a outras cidades chilenas como Concepción, Rancagua, Punta Arenas, La Serena, Valparaíso, Viña del Mar, Iquique, Antofagasta, Quillota, Talca e outras.

Em consequência dos protestos, o recolher obrigatório foi decretado também nas regiões de Valparaiso (centro do país), Concepción (sul), nas comunas de Coquimbo e La Serena (norte) e na comuna de Rancagua, O'Higgins (centro), a partir da meia-noite de sábado até às 7 horas de domingo.

Com a entrega do controle das ruas ao exército e as declarações de estado de emergência e recolher obrigatório, Piñera e o seu governo apostam principalmente na militarização e no aumento da repressão para esmagar os protestos. O resultado foi, pelo menos no início, um aumento das manifestações e cacerolazos, mas também mais incêndios nas estações, saques a supermercados (e também bancos) e um aumento crescente de militares nas ruas, não apenas na capital, mas também noutras cidades. Verifica-se igualmente o aumento do número de presos e regista-se que já houve três pessoas mortas.

“Basta de abusos”

Uma mulher declarava na televisão, segundo a Efe: “a gente está cansada de tantos abusos, só queremos uma marcha pacífica, queremos ter reformas dignas e uma educação boa para os nossos filhos e isto não está a ser dito”.

O levantamento popular tem por origem os descontentamentos com o sistema de pensões administrado pelos fundos privados, os elevados custos e mau funcionamento dos serviços de saúde, educação, os baixos salários e a carestia bem refletida no aumento dos preços do metro.

Filhos de Pinochet”

Na origem mais profunda dos protestos está a política neoliberal levada ao extremo no Chile de Pinochet e que prosseguiu para além da queda ditadura. Tem ainda a ver com um sistema político em que se mantiveram entorses antidemocráticas, herdadas da ditadura e que não foram alteradas na transição.

“A principal distorção é o rentismo de uma elite hegemonizada pelos chamados Filhos de Pinochet. Para além de se apropriarem dos cortes de salários, apoderaram-se dos riquíssimos recursos naturais que pertencem ao povo e à nação”, assinala Manuel Riesco, dirigente do Partido Comunista do Chile4.

“Outra distorção são as instituições do Estado”, aponta também Manuel Riesco, salientando as que mandam por si, sem estarem submetidas ao poder político democrático, o que coloca a necessidade de uma Assembleia Constituinte para “corrigir as distorções herdadas da ditadura e agravadas em democracia”.

“O povo unido jamais será vencido”

Artigo de Carlos Santos para esquerda.net


Notas:

3 Protesto comum na América Latina, em que as pessoas batem em panelas, caçarolas, frigideiras ou outros utensílios de cozinha. Estas ações são muito comuns para manifestar rejeição de políticas ou medidas e, muito em particular, para denunciar a carestia.

4 Artigo publicado em resumenlatinoamericano.org a 20 de outubro de 2019.

Sobre o/a autor(a)

Editor do esquerda.net Ativista do Bloco de Esquerda.
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