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Cessar-fogo na Síria: o acordo EUA-Rússia vai resultar?

Quem ganha e quem perde com este acordo? É o fim da guerra na Síria? O veterano jornalista e correspondente no Médio Oriente Patrick Cockburn responde às principais perguntas levantadas pelo acordo de Genebra.
John Kerry e Serguei Lavrov Lavrov na conferência de imprensa que anunciou o acordo. Foto U.S. Department of State/Flicke

Este acordo é importante?

Ele é muito significativo dentro e fora da Síria porque é entre os Estados Unidos e a Rússia, os principais atores do conflito sírio, que podem pressionar os seus aliados a cumpri-lo. Também é importante porque é um sinal de mudança no panorama político internacional: a Russia volta a ser uma superpotência – certamente no Médio Oriente e talvez globalmente – pela primeira vez desde a queda da União Soviética em 1991. A intenção dos EUA e Rússia de cooperarem numa campanha aérea conjunta contra o Daesh e Jabhat al-Nusra, o ramo sírio da al-Qaeda agora chamado Jabhat Fateh al-Sham, não tem precedentes.

Irá o governo sírio de Bashar al-Assad manter o cessar-fogo?

Sim, porque já disse que o faria e está dependente do apoio aéreo e do fornecimento de armas da Rússia. Mas, igualmente importante, tem interesse em fazê-lo porque os EUA e a Rússia terão como alvo o al-Nusra, movimento salafista-jihadista que é a principal força armada do movimento rebelde que não integra o Daesh. Ele tem estado na linha da frente de todas as ofensivsa rebeldes bem sucedidas. Se a oposição armada perder o al-Nusra e o Daesh, então ficará substancialmente castrada no que toca a combater o exército sírio e seus aliados. Isto é um ganho importante para Assad.

De imediato, um cessar-fogo que congele as atuais linhas de batalha também é do seu interesse, pois as suas forças voltaram a cercar os rebeldes no leste de Aleppo, tomaram a praça-forte rebelde de Daraya em Damasco e estão a avançar noutras frentes. O exército sírio deve julgar que pode passar por um período de consolidação e será capaz de concentrar as suas forças contra um Daesh enfraquecido e ganhar território no leste de Aleppo.

Poderá o Irão, o Hezbollah e o eixo xiita estragar estes planos?

Os iranianos já saudaram o acordo, já que o seu objetivo principal é manter Assad no poder, pelo que é do seu interesse, tal como do dele, alinhar com este acordo.

Então quem perde com o acordo e o que pode fazer sobre isso?

É uma má notícia para o Daesh, porque a coligação contra si ficará ainda maior. Mas neste momento já existem mais aviões e drones no céu da Síria e do Iraque do que alvos a atacar. O ataque militar aéreo contra o Daesh pode não se tornar mais pesado, mas o exército sírio estará mais livre para atacar no leste de Aleppo e noutros lados. Não há muito que o Daesh possa fazer quanto a isso.

E como irá o al-Nusra reagir a ser atacado como o Daesh?

Esta é uma das debilidades do acordo. A oposição armada não-Daesh na Síria é há muito dominada por islamistas, mas os grupos combatentes islamistas são dominados pelo al-Nusra. A sua disciplina, moral elevado, experiência, popularidade e, talvez mais importante, capacidade de colocar grande quantidade de bombistas suicidas, tornam-no na espinha dorsal da oposição armada. Mas os EUA e a Rússia prevêem que a oposição “moderada” se distancie geograficamente do al-Nusra, que será então bombardeado pelos norteamericanos e russos. Mas por que há-de o al-Nusra ficar à espera que tal aconteça? Para eles, o plano de paz assinado em Genebra é um plano de guerra dirigido contra si. Por outras palavras, eles não têm nada a ganhar com o cessar-fogo e, mesmo quando apoiados por ataques aéreos dos EUA e Rússia, não há combatentes da oposição moderada que tenham a força para substitui-los. Alguns líderes do al-Nusra podem pensar que se vão passar a ser tratados como o Daesh, então será melhor reforçar os laços com esta organização – embora seja difícil para eles esquecerem a guerra civil interjihadista de 2013-14.

Irá a ajuda da ONU chegar às cidades sitiadas?

Sim, essa é uma parte essencial do acordo – em particular a ajuda para o leste de Aleppo sob controlo rebelde. No turbilhão obscuro das várias crises que constituem a crise síria, um aspeto que impressionou o mundo foi o das pessoas a passar fome enquanto são cercadas pelos inimigos. Isso acontece, mas não à escala que as pessoas imaginam. 250 mil das 275 mil pessoas no leste de Aleppo ainda não ficaram sem comida – embora seja cara – porque a ONU tinha colocado mantimentos que estão a ser consumidos, mas precisam ser reabastecidos. O outro grande enclave rebelde, o leste de Ghouta, a leste de Damasco, tem várias carências, como sementes e maquinaria agrícola, mas é uma área fértil que produz boa parte da sua alimentação. Mas há áreas onde as pessoas estão literalmente a passar fome, como Madaya e Moadamiya. Todas estas deverão ver chegar a ajuda, embora possa haver dificuldades em Kefraya e Foua, duas localidades xiitas pró-governamentais a oeste de Aleppo cujo destino está ligado ao de Madaya e Zabadani, a oeste de Damasco, sob controlo rebelde. 

Irá parar o bombardeamento a zonas civis por parte da força aérea síria?

Sim, porque a opinião pública estrangeira está muito atenta a isso e a força aérea síria não será autorizada a agir nessas zonas. Em qualquer caso, esses bombardeamentos nunca ajudaram Damasco no plano militar. O seu objetivo era obrigar ao êxodo massivo da população em qualquer área ocupada pela oposição.

A guerra vai acabar?

Não, porque o acordo EUA-Rússia contém um plano de paz e um plano de guerra. A guerra será dirigida ao Daesh e ao al-Nusra, mas não está claro de onde virão as tropas terrestres.

Poderá o acordo fracassar?

Sim, porque nem toda a gente está a agir no seu interesse – este é um bom acordo para a Rússia, Irão e o governo sírio – mas é prejudicial para a oposição. Numa palavra, ela não tem uma força militar credível capaz de substituir o al-Nusra e o Daesh como oposição ao governo sírio.


Artigo publicado no jornal The Independent. Tradução de Luís Branco para o esquerda.net
 

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