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Carta aberta apela a consagração da violação como crime público

Proteger a vítima do seu próprio isolamento, evitar futuros crimes e lançar um aviso poderoso a todos os agressores sobre o trajeto para o fim da impunidade são alguns dos objetivos da proposta. A carta tem como promotoras Joana Mortágua e Maria Castello Branco e é subscrita por cerca de duas dezenas de mulheres de diferentes quadrantes políticos.
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O Esquerda.net transcreve, na íntegra, a carta aberta “Razões e condições para a consagração da violação como crime público”:

Razões e condições para a consagração da violação como crime público

As signatárias desta carta aberta consideram que o combate aos crimes sexuais e a proteção das suas vítimas exige um debate profundo na sociedade portuguesa. É nesse contexto que lançamos o repto sobre a consagração da violação, um crime de violência muito grave, como crime público — ou seja, passível de ser denunciado e investigado sem intervenção da vítima, num quadro de proteção da identidade da vítima.

Portugal está vinculado à Convenção de Istambul desde 1 de agosto de 2014. Ao ratificar a Convenção de Istambul, Portugal subscreveu a obrigação nela estabelecida de garantir que a investigação do crime de violação “não depende totalmente da denúncia ou da queixa apresentada pela vítima (...) e que o procedimento possa prosseguir ainda que a vítima retire a sua declaração ou queixa”1. No entanto, o Código Penal português mantém este crime como semipúblico, ou seja, em geral dependente de queixa, exceto quando a vítima é menor de idade, quando da violação resulta também a morte da vítima ou, ainda, por decisão do Ministério Público “sempre que o interesse da vítima o aconselhe”.

Apesar do elevado número de incidências, estes crimes são frequentemente ocultados, seja devido à proximidade da vítima com o agressor, ao medo (incluindo o medo de estigmatização da vítima), e, em demasiados casos, devido às relações de poder e de dependência da vítima com o agressor. Em consequência, demasiadas vezes, o crime fica impune, garantindo e propiciando oportunidade de reincidência ao agressor. De acordo com os dados evidenciados em sucessivos Relatórios Anuais de Segurança Interna (RASI), a maioria das vítimas é mulher e os seus agressores costumam ser homens das suas relações próximas.

Assim sendo, uma parte considerável dos crimes de violação está já integrada no regime de crime público, no quadro do regime respeitante à violência doméstica (art.º 152º do Código Penal). Desta forma, o que distingue, neste momento, a violação cometida fora do quadro da violência doméstica não é a natureza dos atos, mas a relação entre a vítima e o agressor. O reconhecimento da natureza muito grave do crime só acontece quando a vítima é próxima do agressor.

A consagração da violação como crime público permitirá que qualquer crime de violação seja denunciado e investigado sempre que haja uma denúncia, mesmo que feita por terceiros. O objetivo é dar a todas as vítimas a mesma proteção, independentemente da relação com o agressor, proteger a vítima do seu próprio isolamento, evitar futuros crimes e lançar um aviso poderoso a todos os agressores sobre o trajeto para o fim da impunidade.

Estamos conscientes de que o crime de violação é um gravíssimo atentado à dignidade humana, de que o seu reconhecimento por parte da vítima na relação com a sociedade é um processo doloroso que envolve fenómenos de culpabilização da vítima, estigmatização social e até vergonha, motivados por preconceitos de género arraigados. Não ignoramos que, com elevados níveis de estigmatização, 7% das vítimas deste tipo de violência são homens, sobretudo jovens.

Entendemos que a consagração da violação como crime público deve respeitar o equilíbrio entre o respeito pelos direitos da vítima e o bem comum que é a segurança pública e a proteção da dignidade humana. Consideramos que qualquer alteração à lei deverá ser balizada pelos seguintes limites:

  1. A vítima não tem qualquer obrigação de colaborar com as investigações, gozando dos direitos garantidos nas situações similares em que os crimes são investigados sem queixa da vítima, como os casos de violência doméstica.

  2. A vítima tem direito à privacidade, à proteção da sua identidade e ao respeito pela intimidade durante todo o processo.

  3. A vítima tem direito a acompanhamento social e psicológico reforçado, quer pretenda ou não colaborar com o processo. O reconhecimento do crime público tem de estar associado a uma rede de retaguarda de apoio à vítima e de formação de todos os profissionais envolvidos. É preciso assegurar que as vítimas se sentem principalmente apoiadas e reconhecidas.

Uma vez que a perseguição penal do agressor deixa de estar dependente da vítima, esta estará menos sujeita à intimidação e à pressão social e psicológica sobre o andamento do processo. A liberdade da vítima para decidir colaborar ou não, sem essas pressões, torna-se mais efetiva. É a sociedade como um todo que assume a responsabilidade pelo processo e pela censura absoluta do crime.

Defendemos que este é o caminho para proteger as vítimas de violação, para assegurar a sua liberdade, idoneidade e a autodeterminação em todos os campos da sua identidade, constituindo um contributo para garantir a segurança de toda a sociedade.

Joana Mortágua — Deputada

Maria Castello Branco — Mestranda Teoria Política, London School of Economics

Beatriz Gomes Dias — Professora, Vereadora da Câmara Municipal de Lisboa

Carla Castro — Deputada

Catarina Silva — Estudante de Direito/Autarca em Arroios

Helena Morão — Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Inês Ferreira Leite — Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Inês João Rodrigues — Estudante de Solicitadoria

Inês Melo Sampaio — Jurista no Serviço Jurídico da Comissão Europeia

Joana Barata Lopes — Deputada

Leonor Caldeira — Advogada

Maria Clara Sottomayor — Juíza

Paula Teixeira da Cruz — Advogada

Sara Falcão Casaca — Professora Universitária/Investigadora

Sofia F. Santos — Doutoranda/Investigadora

Teresa Leal Coelho — Professora Universitária de Direito

Teresa Morais - Docente Universitária na Faculdade de Direito de Lisboa.

Teresa Pizarro Beleza - Professora Catedrática de Direito Penal, Universidade Nova


1 Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, número 1 do artigo 55º.

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