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Cabo Delgado: “As mulheres são totalmente despojadas da sua dignidade”

Conceição Osório, responsável pela área de investigação na WLSA Moçambique, fala sobre as consequências da radicalização religiosa na vida das mulheres e explica por que é que o impacto da exploração dos recursos naturais as atinge de forma mais gravosa. Por Mariana Carneiro.
Foto publicada na página de Twitter do Acampamento Direitos Humanos Acesso à Informação.

Conceição Osório é socióloga, investigadora, feminista e ativista pelos direitos das mulheres e, atualmente, responsável pela área de investigação na WLSA Moçambique – Mulher e Lei na África Austral.

Em entrevista ao Esquerda.net, Conceição Osório afirmou que existe um “caldo explosivo em Cabo Delgado”, em que “a religião funciona como uma armadura, cimenta todo esse ressentimento que existe”, resultante das “promessas que não foram cumpridas em relação aos mega-projetos” e da pobreza que grassa na província.

Que questões ligadas às mulheres mais a marcaram no trabalho de terreno que realizou em 2018, juntamente com Teresa Cruz e Silva, e que deu origem ao livro "Silenciando a Discriminação: conflitos entre fontes de poder e os direitos humanos das mulheres em Pemba"?

Todas aquelas mulheres, ao contrário de outros contextos urbanos em que temos feito pesquisa, casaram com 15 ou 16 anos, independentemente da sua idade. E tinham 5 ou 6 filhos, também independentemente da idade. Algumas delas tinham habilitações da 10ª ou 12ª classe, mas não tinham emprego. Esse é um problema geral.

Começámos a querer saber o porquê da idade núbil ser tão precoce. E o argumento era de que os filhos são uma bênção e de que a religião diz que não se pode matar os filhos. O planeamento familiar não era permitido. E não estamos a falar de zonas rurais de Cabo Delgado, onde também fizemos pesquisa. Noutras zonas rurais, que não Cabo Delgado ou a costa de Nampula, as mulheres têm estratégias, perguntam aos homens se eles são capazes de alimentar mais do que dois ou três filhos. Há uma negociação. Aqui não encontrámos isso.

Por outro lado, explicavam-nos que o papel do homem é educar a mulher, e que elas só cultivavam a terra, alimentavam a família e vendiam no mercado. E diziam que o papel do homem é ser o provedor e o papel da mulher o de obedecer ao homem. Isto dito de uma forma muito rígida. Não é só uma questão cultural. Vamos a outras regiões e, mercê dos media, da luta que nós, organizações da sociedade civil, temos travado em relação à violência e à igualdade, e até das novelas brasileiras, que nós muitas vezes criticamos, a visão da mulher submissa já não é a mesma.

Uma das jovens que nós entrevistámos estava vestida de burka. Formada em gestão, era de Maputo e estava há cinco ou seis anos em Pemba. Era a segunda mulher de um teólogo. Perguntei-lhe se em Maputo tinha o mesmo estilo de vida e ela respondeu-me que não, ia a discotecas. Mas, entretanto, aprendeu que “devia obedecer ao marido”. Quando lhe perguntámos a profissão, e sabendo que ela estava empregada e era gestora, respondeu-nos que era doméstica. Explicou-nos que não tinha profissão e que o marido é que lhe tinha dado autorização para trabalhar. “Quando ele quiser eu volto para casa”, disse-me. Já tinha uma quantidade de filhos.

Estes elementos levaram-nos a considerar a possibilidade de existir uma radicalização religiosa, e que a mesma pudesse ter alguma ligação com a guerra que teve início seis meses antes. Seguimos essa linha de pensamento.

Entrevistámos, por exemplo, o presidente islâmico provincial, diretor de uma escola chamada Andaluzia. Perguntei-lhe o porquê do nome e ele explicou-me que foi o primeiro califado. Perguntei a algumas pessoas, meio na brincadeira, qual seria o califado em Moçambique. Disseram-me que seria Cabo Delgado, parte de Niassa e a costa de Nampula. Isto em 2018.

Mas já assistíamos há vários anos a uma radicalização e a uma tentativa de islamizar o Estado e as instituições.

A existência de uma radicalização por parte de um setor da comunidade islâmica tem vindo a ser referida em vários estudos, mas as origens desta guerra são bem mais complexas...

Há um caldo explosivo em Cabo Delgado. Conforme concluiu um estudioso meu amigo, o António Francisco, se Cabo Delgado fosse um país, seria o mais pobre do mundo. Há muita fome, há ressentimentos, porque existem promessas que não foram cumpridas em relação aos mega-projetos. Mas também encontramos esses ressentimentos em Inhambane, em Tete... Em 2017 fizemos uma pesquisa nas comunidades reassentadas pela Jindali e pela Valeii em Cateme, Moatize e etc e ouvimos as queixas das populações. Mas lá não existe este caldo todo, em que a religião funciona como uma armadura, cimenta todo esse ressentimento que existe.

Creio que fomos muito preguiçosos quando, em 2019, se começa a estudar a guerra e as pessoas diziam que era tudo por causa da pobreza. Não é só a pobreza, são vários fatores, em que a religião é um elemento muito importante.

E quando se diz que o problema é o modelo de desenvolvimento, a verdade é que nós não temos modelo de desenvolvimento. É um Estado capturado, extremamente frágil, tremendamente corrupto, cheio de banditismo internamente, de gangsterismo. Mas existe este lado religioso que também tem todo o campo para germinar.

No livro que vamos publicar brevemente procuramos analisar o contexto geral do país a partir dos anos 90. Ao longo dessa, registou-se o regresso de muito jovens formados em Universidades Islâmicas.

Posso dar dois exemplos sobre a radicalização desde então. Em 2009, houve um grande escândalo, com meninos comprados aos pais, de 7, 8 ou 9 anos, transportados em camiões, sem as mínimas condições, para madrassas em trânsito aqui no sul. Depois mandavam-nos para fora. Um desses camiões foi apanhado quando eu estava precisamente em Sofala a fazer uma pesquisa e a trabalhar com a polícia local. O motorista foi preso e o caso foi abafado. Tentei saber porquê e o comandante geral da PRM [Polícia da República de Moçambique] provincial de Sofala respondeu-me que teve ordens superiores para abafar o caso.

Ainda antes disso, em fevereiro de 2006, o Savanaiii publicou as caricaturas do jornal dinamarquês Jyllands-Posten sobre Maomé. Nessa altura foi declarada uma Fatwa [decisão jurídica baseada na lei islâmica] contra o jornal, que foi levantada em abril. Mas esse episódio teve consequências, ainda que o Fernando Lima, proprietário do Savana, tenha ido de mesquita em mesquita para pedir desculpa. Desde então, e até hoje, os elementos da comunidade muçulmana, a mais importante no setor económico do país, cancelaram a publicidade no jornal.

Em 2016 nós, as organizações de mulheres, fomos para a rua em protesto contra o uso obrigatório das saias compridas. E esta questão não tem nada a ver com cultura, tem a ver com o lóbi islâmico que é quem suporta o Estado moçambicano, nas eleições e não só. A manifestação foi brutalmente reprimida, e a situação não mudou.

Há todo um conjunto de elementos no passado recente que apontam no sentido de que há uma penetração de uma ala do Islão em Moçambique que, inclusive, se espalha por outras zonas e regiões, como o centro, nas zonas de Manica e Sofala, por exemplo. E isso acontece porque há alianças muito estranhas entre as elites políticas e as elites económicas muçulmanas.

Em 2018, durante a campanha das eleições autárquicas, o governador de Cabo Delgado fez uma reunião com os líderes muçulmanos. Na altura, eles pediram desculpa ao Estado pela guerra, dizendo que estavam enganados. Pediram ainda uma amnistia. Isto mostra que há uma base de apoio inicial a esta ala.

Agora há uma perseguição e uma repressão contra os muçulmanos deslocados...

Em Pemba há um grande silenciamento neste momento. Há muito medo do Estado, porque há prisões, pessoas desaparecem. E há também repressão material e simbólica em relação aos muçulmanos deslocados. Não são autorizados a desembarcar logo, ficam retidos nos barcos, e saem depois debaixo de um cordão do exército fortemente armado. Isto é aterrorizante. Silencia.

Voltando ao relatório “O impacto da base logística de Pemba sobre as comunidades”… No documento, referem que este projeto está a violar os direitos das comunidades, que não foram consultadas sobre o seu impacto. E frisam que “o impacto da exploração dos recursos naturais atinge de forma gravosa as mulheres”. Pode explicar-nos porquê?

As mulheres é que produzem, que trabalham a terra e assumem a responsabilidade de alimentar a família. A expropriação da terra é sobre elas que assenta, porque elas têm de encontrar uma forma de assegurar a sobrevivência e a coesão da família.

Por outro lado, elas não estão presentes nas negociações. Ainda hoje estão a negociar o valor por cada hectare de terra. Mas há muitas outras questões importantes que as vozes das mulheres poderiam levantar: a criação de bolsas de estudo, a criação de unidades sanitárias, o planeamento familiar…

Tirar a terra à mulher é tirar-lhe um direito e, ao mesmo tempo, tirar-lhe o tapete em relação ao seu papel. Mesmo que a gente critique o papel da mulher, e defendamos que ele não pode ser o de produzir comida, de facto, é.

Creio que as características dos locais dos reassentamentos também as afetam particularmente. Lembro-me, por exemplo, do acesso à água e aos mercados locais.

As pessoas são reassentadas enganosamente. Há um total desprezo pelas pessoas. Constroem umas casas em cima das outras, não há terras, não há machambas. É terrível. As mulheres são totalmente despojadas da sua dignidade.

Os reassentamentos são, na realidade, verdadeiras deslocações forçadas?

Bem, na realidade, sim, acabam por ser deslocações forçadas. Mas nós não lhes chamamos assim, porque existe uma diferença elementar. No caso de um reassentamento, são atribuídos, pela lei, vários deveres ao Estado e às empresas: há consulta, há compensações que têm de ser dadas, uma parte das mais-valias tem de voltar para as comunidades, têm de ser construídas casas, o acesso à água, o saneamento e a eletricidade têm de ser garantidos. O reassentamento, por lei, traz garantias.

Mas a lei não tem sido aplicada, tem sido letra morta até agora.

Sim, é verdade, a letra tem sido violada. Mas a lei pode ser um suporte para reivindicar junto do Parlamento o respeito pelos direitos das comunidades.

Pode ser um instrumento de luta…

Exatamente. A lei é um instrumento de luta que nós estamos a usar.

A deslocação é uma coisa diferente. Os deslocados são estas pessoas que vêm da guerra e que, no caso de Pemba, se refugiam em casa de familiares. Neste momento temos cerca de 800 mil refugiados, a maioria mulheres.

Na capital da província, instalam-se em casas que já têm vinte pessoas devido à covid, principalmente em Alto Gingone, um bairro onde trabalhámos. As famílias já albergavam os filhos e filhas que ficaram sem emprego por causa da pandemia, e agora recebem os refugiados. Há casos, que não são tão raros assim, de famílias de cinco ou seis pessoas a viverem juntas que agora têm 50 pessoas dentro de casa.

E aí coexistem dois elementos: a solidariedade – os refugiados são recebidos solidariamente pelas famílias locais – e, por outro lado, o oportunismo. As famílias radicadas em Pemba têm expectativa que essas deslocadas recebam um determinado valor e apoio das agências internacionais. Mas isso não acontece.

As deslocadas são chamadas de vientes, num sentido pejorativo, dormem nas varandas, nos terrenos à volta. Há deslocadas que ficam o dia inteiro sem comer. Há uma grande violência. E acontece o mesmo nos acampamentos, com a polícia sempre a reprimir os deslocados e as deslocadas. A violência doméstica também aumentou. Os homens deixaram de ser os provedores, não podem exercer o mando, e passam a exercer violência física sobre as mulheres. Há muita violência sexual. Também há agora muita prostituição. Muitas das deslocadas são jovens e recorrem à prostituição. O mesmo acontece com as jovens locais, porque todo o apoio que está previsto no plano de resposta covid do ministério de género não foi cumprido. E prostituem-se por pão ou por um quilo de arroz.

As uniões forçadas precoces – o casamento de meninas com homens – também aumentaram?

Não temos dados estatísticos. Mas sabemos que aumentaram muito. As famílias que entregam as suas filhas recebem aquilo a que chamam de ‘grades’. Com a pobreza a aumentar, aumentam também os casamentos prematuros. No entanto, as ‘grades’ são mais baixas, porque não há tanto poder económico por parte de quem compra as meninas.

Tem havido algum acompanhamento psicológico das mulheres e jovens que foram raptadas pelos machababos e que, entretanto, conseguiram regressar?

Há preocupação por parte da comunidade civil. Simplesmente, não é suficiente.

E as mulheres, as raparigas, as crianças precisam desse acompanhamento. Foram violentadas, viram coisas terríveis. Os filhos viram os seus pais serem decapitados à sua frente.

Mesmo o apoio alimentar é assistencialista. Em Pemba disseram-nos que é um apoio ‘take-away’. Chegam, entregam a comida e bens e vão-se embora. É um apoio que traz mais humilhação. Não dá dignidade. Para nós, que trabalhamos com direitos humanos, isto é terrível. Alguém desce do avião, entrega o que tem a entregar, e as mulheres ficam lá, com um bocado de arroz na mão, sem saber como é o dia de amanhã.

Quando olhamos para as nossas políticas, ainda que tenham muitos erros e muitos enganos, achamos que, no geral, são políticas boas. Mas elas não são minimamente cumpridas.

Há organizações que estão a fazer um trabalho belíssimo no terreno, como é o caso do ROSCiv, que criou espaços de conversa, de partilha, para mulheres. Acho que também é isso que faz falta. Sentar, ouvir, abraçar e não entregar comida e ter horas para ir embora. Falta empatia. A MULEIDEv também está a fazer um trabalho interessante.

Mas muitas organizações batem-se por protagonismos, por acesso a recursos.

Como está a ser pensado o reassentamento dos deslocados?

Está previsto que os deslocados sejam reassentados em cinco distritos de Cabo Delgado, como Montepuez ou Chiúre. Esse reassentamento é feito de uma forma horrível, porque não é discutido com as comunidades. Pessoas que viviam em Mocímboa, por exemplo, são atiradas para ali. O que é garantido a estas pessoas?

As terras de onde elas vêm não eram apenas as terras onde produziam, eram as terras onde tinham as suas plantas medicinais, onde enterraram os seus mortos, onde as crianças fazem os seus ritos de iniciação. São elementos de pertença que são destruídos. Como é que fica este tecido social? Como é que fica esta gente?

Têm surgido novas dinâmicas, novas estratégias de sobrevivência em que as mulheres são agentes de mudança?

Sim, têm existido questões interessantes. Com a covid, a violência doméstica aumentou. Mas, por outro lado, como os homens foram despedidos, foram obrigados a fazer outras coisas. Eu fiquei espantada. Há uma espécie de parcerias em casa, em que os homens fazem dinheiro com a venda do carvão e as mulheres compram óleo, compram farinha, e fazem bolos que vão vender. Depois há o esquema das poupanças. Com pouco dinheiro, as mulheres conseguem fazer negócios ao nível do mercado. Ao princípio, isso era muito mau visto em casa pelos homens. Mas, de repente, eles começaram a ver que entravam dentro de casa coisas que eles não tinham e passaram também a querer fazer parte desses grupos de poupança. Isso já é uma mudança.

Não acredito que o empoderamento económico por si só vá resolver muita coisa. Mas este empoderamento também se traduz na tomada de decisões. Elas têm mais confiança, mais segurança na sua própria capacidade de fazer as coisas, de tomarem decisões, de negociarem melhor.

As mulheres não têm sido meras observadoras, têm sido também, de facto, agentes de mudança.


 

iA Jindal Mozambique Minerais Lda, parte da JINDAL ÁFRICA opera em Moçambique, explorando carvão mineral na Província de Tete. A mineradora é uma multinacional indiana, que faz parte do conglomerado multinacional indiano Jindal Steel and Power Limited (JSPL), que, por sua vez, faz parte do grupo diversificado O.P. Jindal, avaliado em cerca de 18 mil milhões de dólares americanos.

iiA Vale Moçambique é uma empresa brasileira multinacional de extração de minérios condenada por denegação de informação e frequentemente acusada de desrespeito pelos direitos humanos nas suas operações em Moçambique.

iii Semanário moçambicano de língua portuguesa, publicado pela Mediacoop, uma cooperativa livre de jornalistas em Maputo

ivO Fórum da Sociedade Civil para os Direitos da Criança (ROSC), foi criado em 2010 como uma plataforma que congrega Organizações da Sociedade Civil (OSC) nacionais e Organizações Não Governamentais Internacionais que trabalham na área da criança em Moçambique.

vA Associação Mulher, Lei e Desenvolvimento (MULEIDE), criada em 1990, é uma organização que opera em Maputo, Pemba e Beira.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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