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Brasil: oposição voltou às ruas

Iniciativa das torcidas antifascistas de clubes de futebol levou à resolução de um aparente beco sem saída que paralisava a esquerda. Houve manifestações anti-Bolsonaro e antirracistas em 20 capitais de estado e muitas outras cidades. Por Luis Leiria.
Guilherme Boulos fala durante concentração em S. Paulo. Foto Mídia Ninja
Guilherme Boulos fala durante concentração em S. Paulo. Foto Mídia Ninja

A esquerda brasileira viveu durante meses uma situação de aparente beco sem saída, também conhecida como “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”, como se diz por aquelas terras. Perante a irresponsabilidade do presidente Jair Bolsonaro, que desvaloriza a pandemia de Covid-19 equivalendo-a a uma “gripezinha”, e ataca os confinamentos parciais promovidos por grande parte dos governadores dos Estados, a esquerda defendeu as orientações da OMS, o confinamento e o distanciamento social como única arma capaz de impedir a escalada da doença e evitar o colapso da saúde pública.

Isto levou a que os fascistas defensores de Bolsonaro promovessem à vontade as suas manifestações aos domingos, pedindo a intervenção militar para encerrar o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional e dando a impressão de serem os senhores das ruas. A esquerda, confinada, ficava reduzida ao uso dos “panelaços”. As manifestações da extrema-direita eram pequenas, mas a presença de Bolsonaro dava-lhes a visibilidade que o volume de pessoas não justificaria.

Para piorar, o confinamento promovido pelos governadores, demasiado tímido, não foi suficiente sequer para achatar a curva de progressão da doença. Hoje, o Brasil disputa com os EUA o triste título de maior foco de expansão da Covid-19 no mundo. A doença está a matar uma pessoa por minuto, e nada indica que tenha atingido o pico.

Que fazer, nessa situação? Sair às ruas, correndo o risco de ajudar a expandir a doença e pondo em risco os manifestantes? Ficar em casa deixando os fascistas posarem de “donos das ruas”, sendo que o recurso aos panelaços estava manifestamente esgotado?

Surge um novo protagonista

Até que um protagonista inesperado apareceu no cenário político do país: as torcidas (claques) antifascistas dos principais clubes de futebol.

“Como se tivessem surgido do nada, cada um vindo de um lugar diferente, corintianos fizeram uma manifestação-relâmpago pró democracia na avenida Paulista, na hora e no local em que bolsominions planeavam um ato de apoio ao Genocida”, relatou o jornalista e escritor Fernando Morais sobre a primeira iniciativa de apoiantes do Corinthians, um dos clubes mais populares de S.Paulo. Isto aconteceu no dia 9 de maio, e da ação-relâmpago ficou uma fotografia de torcedores atrás de uma faixa com os dizeres “Somos Democracia”. Um dos líderes da manifestação explicou ao site “Meu Timão” que o grupo tinha consciência de estar a quebrar o isolamento social, mas que o momento político justificava o risco e pedia uma manifestação presencial.

Foto dos torcedores do Corinthians que participaram na primeira ação das torcidas antifascistas em S. Paulo
Foto dos torcedores do Corinthians que participaram na primeira ação das torcidas antifascistas em S. Paulo

A iniciativa passou quase despercebida mas, no fim de semana seguinte, membros da torcida antifascista do Internacional de Porto Alegre fizeram uma contramanifestação diante dos bolsonaristas que, na frente do Comando Militar do Sul, pediam a volta da ditadura militar. Embora protegidos pela polícia, os poucos bolsonaristas abandonaram o local.

O sucesso despertou entusiasmo e as torcidas antifascistas começaram a mobilizar-se de norte a sul. No dia 31, a convocatória para as manifestações antifascistas e apelando à queda de Bolsonaro já era subscrita por uma míriade de torcidas ou grupos de torcedores dos principais clubes paulistas: além dos corintianos, com destaque para a histórica Democracia Corintiana (de Sócrates, Casagrande e Vladimir) os Gaviões da Fiel (a maior torcida organiuzada do clube) e o Corinthians antifascista, juntaram-se também torcedores do Palmeiras (Porcomunas e Palmeiras Antifascista) e as torcidas antifascistas do Santos e do S. Paulo. Este é um dos vídeos que convocou a manifestação antifascista desse domingo 31 de maio:

No Rio de Janeiro a contramanifestação das torcidas antifascistas do Flamengo e do Fluminense foi reprimida pela polícia que optou por defender os bolsonaristas; em Belo Horizonte estiveram juntas torcidas do Cruzeiro, do Atlético e do América, em Porto Alegre as torcidas antifascistas dos rivais Grêmio e Internacional já atuavam em comum.

Quando as novas convocatórias para o domingo 7 de junho começaram a ser anunciadas, desta vez abrangendo mais Estados, como Brasília, Bahia, Ceará e Pará, o movimento tornou-se irreversível: as torcidas antifascistas estavam a retirar aos bolsonaristas o monopólio das ruas e mostravam-se decididas a encurralá-los. Fá-lo-iam sozinhas, se fosse preciso.

Foi nesse momento que a esquerda se decidiu a voltar às ruas.

De volta às ruas

Mesmo assim, houve divisões. Em primeiro lugar, o PT: o vice-líder do partido no senado, Jacques Wagner, assinou uma carta firmada também pelos partidos Rede Sustentabilidade, PSB, PDT e Cidadania, desencorajando a participação nas manifestações, alegando a necessidade de “redobrar os cuidados sanitários e ampliar a comunicação com a sociedade em prol do distanciamento social”. Esta posição foi apoiada também pelo governador do Ceará, Camilo Santana. Já a presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann, soltou uma nota assinada também pelos líderes do PT na Câmara, e no Senado em apoio às manifestações.

Também no PSOL houve divisões. O deputado federal Marcelo Freixo avisou que não compareceria: “Se não tivesse pandemia, eu estaria nas ruas todo dia contra o Bolsonaro. Como é que eu posso estimular as pessoas a irem para as ruas no meio de uma pandemia onde as pessoas estão morrendo? Essa pessoa que vai para a rua pode chegar em casa e contaminar sua mãe, seu avô, contaminar a família”, afirmou, em entrevista ao Poder 360.

Já o ex-candidato do PSOL à Presidência da República, Guilherme Boulos, e a Frente Povo Sem Medo articularam-se com as torcidas e convocaram também as manifestações. O PSOL soltou uma nota assinada pelo seu presidente em apoio à mobilização. PSTU, PCB e UP apoiaram também. Das centrais sindicais, só a combativa CSP-Conlutas deu apoio.

Os que se decidiram pela mobilização deixaram bem claro que desaconselhavam a participação de pessoas que fizessem parte ou morassem com alguém de grupos de risco. Por outro lado, garantiram que haveria distribuição de máscaras e de desinfetante. Reconhecendo que a organização de manifestações de rua representa um risco, sublinharam que esse risco já é corrido pela população mais pobre que nunca fez confinamento e é obrigada a usar os transportes públicos a abarrotar; que mesmo não tendo obtido os seus objetivos, o confinamento, que abrangeu basicamente a classe média e os funcionários públicos já está a ser desmontado pelos governadores. Nesta situação, deixar os bolsonaristas com o controlo das ruas, não se envolver na mobilização para pôr fim ao seu governo genocida será um risco muito pior, até do ponto de vista da pandemia.

Polémicas

Na véspera da mobilização, o debate foi reavivado por outra questão. Um texto do sociólogo Luiz Eduardo Soares apelando para que os movimentos sociais não fossem às ruas neste momento, diante do risco de que infiltrados promovessem distúrbios, com o objetivo de causar uma situação de caos social, criando o o ambiente para Bolsonaro propor uma rotura institucional. “Companheiras e companheiros, vocês não percebem que Bolsonaro está armando uma armadilha? Vocês acham que terão condições de impedir que infiltrados promovam quebra-quebra? Não terão. Não subestimem os fascistas. A P2 fez isso outras vezes, por que não faria agora?”

Guilherme Boulos fala na concentração em S. Paulo
Guilherme Boulos fala na concentração em S. Paulo

Foi o próprio Guilherme Boulos a responder: “O que vimos na semana passada, puxado por torcedores organizados, foi um passo fundamental na resistência ao fascismo: a demonstração de que a rua não é deles”, salientou, referindo-se às manifestações do domingo anterior. “Não basta sermos maioria na sociedade”, prosseguiu, recordando que a hegemonia fascista, mesmo minoritária, afirma-se nas ruas. “Foi assim com os Camisas Negras de Mussolini e com as milícias hitleristas.” E Boulos advertiu: “Se normalizamos gente defendendo AI-5 e agredindo opositores, jornalistas e enfermeiras em praça pública, daqui a pouco não teremos condições de dar as caras.”

Quanto ao perigo de infiltração, o dirigente do MTST reconheceu que sempre há um risco e que tudo fará para minimizá-lo. “Mas, convenhamos, o outro lado não precisa de pretextos nossos para endurecer. Se ficarmos parados tampouco temos qualquer garantia. Eles sempre produziram os próprios pretextos.”

Em conclusão, Boulos disse estar ciente dos riscos, mas não crer que “se deixarmos as ruas para eles, estaremos impedindo” a escalada autoritária de Bolsonaro.

A revolta venceu o medo

Com todas estas polémicas, dúvidas e incertezas, com a ausência das maiores lideranças da esquerda, diante da ameaça de uma nova escalada da Covid-19, não seria de esperar que as manifestações que finalmente ocorreram no domingo fossem as maiores da história do Brasil. Mas os milhares que saíram à rua constituíram um marco que será recordado no futuro: o dia em que os bolsonaristas ficaram reduzidos à sua verdadeira dimensão. O dia em que os antifascistas mostraram, na rua e não só nas sondagens, que o presidente já não conta com o apoio popular que o levou ao poder. Que usa a presença militar no seu governo para ameaçar desferir um autogolpe que intervenha nos outros poderes (Justiça, Parlamento) e instaure a ditadura com que sonha. Mas que na verdade é um homem cada vez mais isolado, cercado e sem rumo.

Torcidas na linha da frente em Belo Horizonte. Foto Mídia Ninja
Torcidas na linha da frente em Belo Horizonte. Foto Mídia Ninja

“Foi uma contradição defender o isolamento e ao mesmo tempo participar de um ato desses? Foi, mas uma contradição necessária!”, escreveu Sílvia Ferraro, do PSOL, ao fazer o balanço da moblilização de S. Paulo. “A vida nas periferias já tem pouco isolamento, a maioria está sendo obrigada a trabalhar, a quarentena não é um direito de todos e a população negra ainda sofre com a violência policial. Junto com isso, a ameaça constante de um governo que quer esconder os números das vítimas da Covid-19 e anda conspirando contra a democracia, com atos e falas que defendem fechar o Congresso e o STF e querem a volta da ditadura militar e o AI-5.” Mas, desta vez, “a revolta venceu o medo. O grito preso na garganta tinha que sair!”

A concentração no Largo da Batata, em S. Paulo, que juntou muitos milhares de pessoas, teve grande presença de jovens negros das periferias, que se mobilizaram pela luta antirracista e pela solidariedade com os irmãos norte-americanos e em denúncia dos crimes racistas e da violência policial que é o quotidiano da sua vida. Estavam presentes as torcidas antifascistas, com destaque para uma enorme bandeira da Democracia Corintinana. Estava o MTST de Boulos. E estavam ainda ícones do Rap nacional, como Thaíde, Mano Brown e Dexter. Para além da capital, ocorreram mobilizações em outras cidades do estado, como S. José dos Campos, Campinas e Sorocaba. Não houve conflitos provocados por polícias ou fascistas infiltrados.

Dos bolsonaristas que estiveram em frente à sede da Fiesp (federação empresarial) nesse dia ficaram poucos registos. Eles foram remetidos à sua insignificância.

Presença da central sindical CSP-Conlutas na manifestação de S. Paulo. Foto Pam Santos-Fotos Públicas
Presença da central sindical CSP-Conlutas na manifestação de S. Paulo. Foto Pam Santos-Fotos Públicas

A de S. Paulo foi a maior manifestação antifascista e antirracista, mas no domingo houve importantes mobilizações em Belo Horizonte, numa manifestação encabeçada por faixas das torcidas Cruzeiro antifa e Resistência alvinegra (do Atlético Mineiro), em Porto Alegre, onde pela primeira vez os bolsonaristas não foram às ruas, Rio de Janeiro, numa manifestação no centro da cidade cercada por um dispositivo de guerra da Polícia Militar, e Brasília, onde foi possível comparar a grande manifestação antifascista com o grupinho de manifestantes pró-Bolsonaro – elas ocorreram em simultâneo, separadas pela Polícia. No total, houve protestos antifascistas e antirracistas em 20 capitais.

A nota negativa ocorreu em Fortaleza, onde a polícia do governador do Ceará, Camilo Santana, do PT, cercou o local da manifestação e impediu o acesso a todos os que queriam fazer o protesto antifascista. Algo semelhante ocorreu em Belém do Pará, estado governado pelo PMDB. Mais uma demonstração de que é preciso voltar às ruas, para recuperar o direito de manifestação, posto em causa nestes dois estados.

Luta contra Bolsonaro saiu fortalecida

Num primeiro balanço da jornada de domingo, podemos concluir que a luta contra Bolsonaro saiu fortalecida e que os bolsonaristas perderam a iniciativa. Quem saiu às ruas chegou ao fim da jornada moralizado. A porta para o regresso às grandes mobilizações foi aberta.

No início da semana, Bolsonaro tinha ensaiado um recuo, chamando os seus partidários a deixar os manifestantes da oposição – a quem chamou de “terroristas”, “marginais”, “maconheiros” e “desocupados” – sozinhos. Na verdade era mais uma desculpa a prever o que viria, ou seja, que os bolsonaristas seriam muito inferiores em número.

Na segunda-feira, o governo viu-se na defensiva diante dos protestos internos e internacionais contra a sua decisão de apagar os dados da pandemia e alterar a sua divulgação de forma a minimizar as estatísticas que apontam a morte de uma pessoa por minuto de Covid-19. À noite, um juiz do STF concedeu uma decisão cautelar a partidos da oposição, obrigando o Ministério da Saúde a restabelecer o formato de divulgação integral dos dados da pandemia.

Bolsonaro foi ao Twiter vitimizar-se e “sacudir a água do capote”: “Lembro à Nação que, por decisão do STF, as ações de combate à pandemia (fechamento do comércio e quarentena, p.ex.) ficaram sob total responsabilidade dos Governadores e dos Prefeitos.”

Se, diante de uma crise desta dimensão, o presidente da República não tem mais nada para dizer a não ser “lavar as mãos” e desresponsabilizar-se, o que é que ele está a fazer no governo?

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