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Brasil: apocalipse agora!

Bolsonaro, o seu companheiro de chapa, o general Hamilton Mourão, e a extrema-direita militar (exército e polícia) que os apoiam, não são, a rigor, "nostálgicos da ditadura militar", mas se consideram como soldados de uma eterna guerra contra um inimigo fantasmático. Artigo de Armelle Enders.
Brasil: apocalipse agora!
Apoiantes do candidato Bolsonaro, Copacabana, 21 de outubro de 2018. Foto de Carl de Souza.

Arriscamos uma profecia triste:  seja o que ocorrer no segundo turno das eleições presidenciais, governadores e do Senado Federal, domingo, 28 de outubro, o Brasil - 210 milhões de pessoas, 10 ª economia mundial - se encaminha inexoravelmente para o caos.

O candidato de extrema-direita Jair Bolsonaro (Partido Social Liberal - PSL) superou amplamente seu adversário, Fernando Haddad (Partido dos Trabalhadores - PT) no primeiro turno e aumentou a diferença nas projeções para a segunda fase: pesquisa datada de 23 de outubro lhe credita 57% dos votos contra 43% para Haddad. Mesmo que Fernando Haddad revertesse milagrosamente a tendência, há pouca dúvida de que o veredicto da urna seria imediatamente contestado e que o presidente eleito não tomaria posse.

Um dos filhos do candidato de direita, Eduardo Bolsonaro, eleito deputado federal em 7 de outubro com uma votação histórica, não esconde o pouco caso que faz de barreiras legais e institucionais. O Supremo Tribunal Federal?  Para ele, bastaria "um soldado e um cabo" para livrar-se da corte suprema, se ela desejar colocar recursos contra seu pai candidato.

Fanáticos, versão brasileira 

Mesmo dessa perspectiva, espera-se que o instinto de sobrevivência e o amor a seu país levarão a maioria dos eleitores a barrar Jair Bolsonaro , cujas gesticulações não detonariam um Pulp Fiction ou um horrível programa de Reality TV. Se a extrema direita deve chegar ao poder, que seja por uma ruptura, como em 1964, e sem a unção do povo soberano.

O que está acontecendo no Brasil é de suma importância para as democracias ocidentais, já roídas pelo surgimento dos direitos radicais, muitas vezes chamados de "populistas". Como um país, onde 60% dos habitantes consideram a democracia como o melhor regime, podem se atirar  nos braços de um ex-capitão dos paraquedistas,  político de terceira categoria por 30 anos, cuja única linha clara, desde o começo da carreira política, é a apologia da ditadura, da tortura, do assassinato?

O Brasil é atualmente palco de histeria e cegueira coletivas de proporções inéditas, que devem ser analisadas e constituírem objetos de reflexão na medida de sua gravidade.

A campanha Bolsonaro, sobre a qual pairam as sombras da Cambridge Analytica, de  Steve Bannon e da extrema direita norte-americana, se baseia na divulgação sistemática de mentiras, falsas notícias e Infox pelas redes sociais, principalmente pelo aplicativo de mensagens fechado WhatsApp. Uma investigação do jornal Folha de São Paulo revelou que essa campanha de hackers foi financiada ilegalmente, em até 3 milhões de euros por patrões.

Independentemente das manipulações, o mais surpreendente é que milhões de pessoas tenham se apossado dessas idiotices sinistras e aderiram sem pestanejar a um imaginário tão delirante quanto odioso.

Democracia brasileira em coma

A campanha para as eleições gerais de 2018, longe de revigorar uma democracia doentia, acentuou seus males. Desde 5 de outubro, data do primeiro turno, a democracia brasileira mergulha cada vez mais fundo no coma.

O candidato Bolsonaro, esfaqueado por um iluminado durante um comício, em 6 de setembro, invoca seu estado de saúde para fugir de qualquer debate televisivo com seu oponente e derroga esse ritual, tão ancorado nos costumes democráticos internacionais. Esse boicote deve ser visto como mais do que uma simples tática projetada para mascarar a fraqueza de um candidato sem qualquer habilidade ou experiência, que ignora quase todos os assuntos e alterna contradições abissais e mentiras horripilantes. Essa recusa em confrontar suas ideias, seu programa e sua personalidade com o adversário reflete a rejeição profunda à própria essência da democracia liberal e à interdição do dissenso, que formam a ponta de lança da extrema direita brasileira em seu lado militar.

A impossibilidade do debate afeta todo o espaço público, recuperado em contrapartida pela violência. A campanha eleitoral tornou-se um gigantesco diálogo dos surdos, como ilustra a conversa relatada abaixo:

"Como você pode defender um candidato que elogia a tortura e os piores torturadores da história brasileira? 
- O Brasil foi torturado pelo Partido dos Trabalhadores durante anos.

O mantra, incansavelmente desenrolado, segundo o qual o Partido dos Trabalhadores e Lula saquearam e levaram o Brasil à bancarrota e que o pior genocídio não é nada comparado a esse 'crime', impede qualquer forma de discussão.

As agressões simbólicas, verbais e físicas tomaram precedência sobre a discussão e vão crescendo. No dia seguinte ao primeiro turno, em Salvador da Bahia, o artista negro Moa do Catendê foi morto, esfaqueado 12 vezes por um eleitor de Bolsonaro por expressar sua simpatia pelo PT.

Infelizmente, este não é o único caso. A jornalista da Folha de São Paulo, Patrícia Campos Mello, que investigou o financiamento ilegal da campanha do candidato de extrema-direita, enfrenta todo tipo de ameaças, assim como o conjunto dos meios de comunicação que ousam fazer o seu trabalho.

No domingo, 21 de outubro, o candidato Bolsonaro anunciou, em meio a aplausos, que iria se envolver na "maior operação de limpeza da história do Brasil", "limpando o mapa do Brasil desses bandidos vermelhos". Nesse clima de intimidação, a suástica tornou-se moda e começou a contaminar as paredes das instituições designadas como inimigas: instalações universitárias, igrejas católicas... Um aviso?

Jair Bolsonaro não é um populista

Jair Bolsonaro não é um "trunfo tropical", nem um "populista" no sentido comumente do termo, e essas analogias ajudam a banalizá-lo perigosamente. No registro brasileiro de insultos políticos, "populista" permanece sinônimo de "comunista" e está no mais alto nível da escala Richter de abominação por todas as direitas. São assim carimbados como populistas e condenados ao descrédito todos os proponentes do estado de bem-estar e um social-democrata como Fernando Haddad.

Nos discursos de Bolsonaro, não encontramos as passagens obrigatórias dos populismos clássicos. O capitão aposentado raramente se refere ao "povo" e não exibe a habitual retórica anti-oligárquica ou anti-elite.

Além disso, Bolsonaro é o candidato da burguesia brasileira - da alta à baixa - e do patronato, mesmo tendo expandido significativamente seu eleitorado em outros estratos da sociedade, é também o campeão em qualquer classe nas megacidades do país. Bolsonaro continua identificado como o "candidato dos ricos" e Haddad como o os pobres - o que confirma a sociologia do seu eleitorado.

Aos patrões, promete a remoção de todas as restrições, sociais e ambientais. Aos proprietários de terra, concede o direito de usar a força em relação a pequenos camponeses, camponeses sem-terra, ameríndios, [bem como vis a vis] reservas naturais. A todos os que usam uniforme, garante o direito de disparar à vista, com impunidade, em "bandidos" e "ralé", que substituem o "subversivo" como inimigo interno.

O discurso de Bolsonaro, fracamente articulado, se reduz a um ultranacionalismo quimicamente puro, totalitário e vingativo. O "Brasil", incessantemente invocada em todas as frases, deve ser liberado, limpo, purificado dos "delinquentes (marginais) vermelhos." O mundo de  Bolsonaro é extraordinariamente maniqueísta: de um lado, o mundo em verde e amarelo, de "bons cidadãos" ou "cidadãos de bem" brandindo a Bíblia e com o direito de se armar; do outro, o mal.

O PT, e com ele toda a forma de oposição, é comparado ao anti-Brasil, a um cancer que é legítimo extirpar pelos meios mais violentos.

A extrema direita militar no momento da vingança

Bolsonaro, seu companheiro de chapa, o general Hamilton Mourão, e a extrema-direita militar (exército e polícia) que os apoia, não são, a rigor, "nostálgicos da ditadura militar", mas se consideram como soldados de uma eterna guerra contra um inimigo fantasmático. Para eles, a "Revolução de 1964", ou seja, o golpe que instalou o regime militar até 1985, é uma vitória sobre a "subversão" que começou a se infiltrar no Brasil.

Entre os militares, os mais radicais nunca consideraram que a repressão tenha sido suficiente (434 mortes oficialmente reconhecidas, milhares de torturados e exilados), não aceitaram o retorno da democracia nem esboçaram a mínima  mia culpa ou arrependimento.

A parte mais politizada da corporação não se contenta com a impunidade, garantida pela lei de anistia de 1979, mas quer pegar em armas novamente. A "Nova República", que sucedeu à ditadura, permitiu o retorno à vida política e até a ascensão ao poder daqueles que a extrema direita vê como os "vencidos de 1964", isto é, o amplo espectro de todos os opositores da ditadura militar.

Em 1999, o Capitão Bolsonaro estimava que o futuro do Brasil passava por uma considerável guerra civil e pela eliminação de 30.000 pessoas (o número de vítimas da ditadura militar argentina), começando pelo presidente social-liberal do país na época, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso.

Sob as duas presidências de Dilma Rousseff, as facas foram afiadas. Não só a presidente era ela própria uma guerrilheira, presa política e torturada durante a ditadura, como teve a coragem de criar uma Comissão Nacional da Verdade (2011-2014) para lançar luz sobre as violações dos direitos humanos perpetradas por agentes do Estado entre 1946 e 1988.

A crise política brasileira, acentuada pelo golpe parlamentar de 2016 contra Dilma Rousseff, a recessão econômica de proporções históricas, o desastroso governo Temer (97% de impopularidade!), a operação "mãos limpas" à brasileira (operação "lava jato"), desqualificaram simultaneamente  a classe política e a própria política, alimentou o "fora todos" (dégagisme) e criou as condições para o sucesso de Jair Bolsonaro.

Na véspera do primeiro turno, os candidatos do PSL, o partido de Bolsonaro, foram desmontar uma placa em homenagem a Marielle Franco , a vereadora assassinada em março de 2018, presumivelmente por paramilitares. O provável futuro governador do estado do Rio de Janeiro, Wilson José Witzel, um bolsonário, assistia a cena. Um augúrio sinistro.


Publicado originalmente no The Conversation, tradução de Aluisio Schumacher para o Carta Maior.

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