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Brasil: 4ª maior população carcerária do mundo é barril de pólvora

Número de presos triplicou desde 2000, em grande parte devido à política de “guerra às drogas”. População prisional excede em 42% o número de vagas. Por Luis Leiria, do Rio de Janeiro.  
Parentes de presos aguardam notícias em Manaus.
Parentes de presos aguardam notícias em Manaus. Foto de Marcelo Camargo/Agência Brasil.

As rebeliões em penitenciárias que abalaram o Brasil neste início do ano, provocando a morte de 102 presos, só espantam por não terem sido mais generalizadas. As prisões superlotadas são barris de pólvora prestes a explodir. Um vídeo feito pelos próprios cativos de uma das penitenciárias do Rio de Janeiro denunciou há dias que neste Verão inclemente, que castiga cariocas e fluminenses com temperaturas de 40 graus (e sensações térmicas superiores), as prisões locais sofrem de falta de água pelo menos desde 27 de dezembro. O calor infernal, a escassez de água (quando aparece é acastanhada, denunciam os presos), as paredes cheias de mofo, a superlotação que atinge todas as 21 penitenciárias do estado do Rio, onde se amontoam mais de 50 mil seres humanos encarcerados, são os ingredientes de uma tensão que pode explodir a qualquer hora.

Maior massacre desde o Carandiru

Como explodiu em Manaus e Boa Vista, Norte do país. Na capital do estado de Amazonas, 60 presos (número atualizado) foram mortos numa rebelião no primeiro dia de 2017, no Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj). Foi o maior massacre numa prisão desde o que vitimou 111 presos no Carandiru, S. Paulo, em 1992.

Durante a revolta, escaparam do Compaj 112 prisioneiros e 72 de outro presídio da cidade, o Ipat (Instituto Penal Antonio Trindade); deste total, 73 foram recapturados. No dia seguinte, mais quatro presos morreram noutra penitenciária da cidade. Enquanto o país se aterrorizava com a violência das mortes, provocadas por uma guerra entre organizações de traficantes de drogas, e o governo Temer se mostrava despreparado para lidar com a crise nas cadeias, ocorreu novo massacre no dia 6, desta vez em Boa Vista, capital do estado de Roraima, com a morte de mais 33 prisioneiros.

Ao contrário do massacre do Carandiru, praticado pela polícia, as vítimas morreram às mãos de outros presos, e as rebeliões de Manaus e Roraima foram atribuídas à guerra entre as principais organizações de traficantes de drogas do país. Segundo fontes policiais, em Manaus, a Família do Norte massacrou o Primeiro Comando da Capital, originário de S. Paulo, que disputa com aquela organização o controlo das lucrativas rotas de tráfico do Norte do país. A mesma interpretação afirma que o massacre de Boa Vista foi uma vingança do PCC.

Esta versão, porém, é relativizada por organizações envolvidas no acompanhamento dos direitos humanos nas prisões, como a Pastoral Carcerária (Igreja católica). Segundo Maria Marques, representante da Pastoral Carcerária no Amazonas, “A maioria dos que morreram não foi assassinada porque pertencia a uma facção. Eram presos que estavam separados dos outros, em outro pavilhão, por serem acusados daqueles crimes que sofrem grande rejeição entre os internos, como estupro ou morte de criança”, afirmou. “Morreram aqueles que, numa rebelião, são sempre os primeiros a morrer.”

Mas mesmo que se tivesse tratado de uma pura guerra entre rivais, nada retira a responsabilidade do governo diante dos massacres: as vítimas são "pessoas que estão detidas estão sob a custódia do Estado e, portanto, as autoridades relevantes carregam a responsabilidade sobre o que ocorre com elas", recordou em nota o Alto Comissariado da ONU.

Desorientação do governo Temer

Só três dias depois do massacre o governo Temer fez uma reunião de emergência para anunciar que iria construir cinco novas penitenciárias federais e que daria dinheiro aos Estados para instalarem bloqueadores de telemóveis nas prisões. Mas nenhum data foi indicada para que estas promessas se cumpram.

Numa tentativa de corrigir o atraso do seu pronunciamento, que ocorreu depois dos da ONU, da Amnistia Internacional e até do Papa Francisco, Temer cometeu a gaffe de citar o massacre como “acidente”. Foi imediatamente acusado nas redes sociais de pretender minimizar o acontecimento, o que o levou a tentar justificar-se no Twitter com os sinónimos da palavra: “tragédia, perda, desastre, desgraça, fatalidade", publicou.

Antes, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, entrara em polémica com o governo de Amazonas, afirmando que este tinha informações sobre planos de fugas mas que elas não tinham sido partilhadas com o governo federal. O governo amazonense rebateu, lembrando que desde outubro de 2016 funciona um comitê com representantes estaduais e federais, como a Polícia Federal e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), para monitorizar ameaças de rebelião e falhas de segurança no Amazonas.

A gaffe maior, porém, veio do secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio, que se demitiu do cargo depois de criticar a repercussão dos massacres, afirmando que "tinha que matar mais", e chegando mesmo a concretizar: "Tinha que fazer uma chacina por semana". O secretário tentou negar a frase, afirmando que fora deturpada, mas o site Huffpost Brasil publicou o áudio da declaração.

Prisão privatizada

A rebelião de Manaus veio trazer à tona outra realidade pouco conhecida: a da crescente privatização dos serviços penitenciários. Quem administra a penitenciária que foi palco da rebelião é uma empresa privada, a Umanizzare (note-se a ironia do nome), que cobra ao Estado de Amazonas 5.867 reais por preso/mês, o triplo dos 2.100 reais gastos em S. Paulo.

A Umanizzare, segundo o portal de notícias UOL, é ligada ao Grupo Coral, com sede na cidade de Goiás, que faliu em 2015 e que deixou de pagar a pelo menos 9.000 trabalhadores. A Umanizzare faturou pelo menos 650 milhões de reais entre 2013 e 2016 no Amazonas, enquanto o Grupo Coral tem dívidas estimadas em 200 milhões de reais.

As contas são de tal forma escandalosas que o Ministério Público pediu ao Tribunal de Contas do Estado que avalie a rescisão dos contratos com a Umannizare por suspeitas de superfaturamento, mau uso do dinheiro público, conflito de interesses empresariais e ineficácia da gestão.

Em 2014, a Serval, empresa associada à Umanizzare na gestão dos presídios amazonenses, fez uma das maiores doações à campanha do atual governador, José Melo: 1,2 milhão de reais.

A empresa, segundo um levantamento do jornalista Leandro Fortes, mantém um lobista no Congresso Nacional: o deputado Silas Câmara, do PSD do Amazonas, que recebeu da empresa 200 mil reais para a sua campanha a deputado federal de 2014. Este deputado foi um dos responsáveis, na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, pela aprovação da admissibilidade da Proposta de Emenda Constitucional que prevê a redução da maioridade penal para 16 anos, o que trará como consequência um aumento da população prisional.

Também em 2014, a esposa de Silas, a bispa da Assembleia de Deus Antônia Lúcia Câmara, candidata a deputada federal, recebeu 400 mil reais da Umanizzare e a filha do casal, Gabriela Ramos Câmara, então candidata a deputada estadual, recebeu 150 mil reais.

Antônia Lúcia Câmara é do mesmo partido de Jair Bolsonaro, provável candidato de extrema-direita à Presidência da República, que já apareceu com 9% dos votos nas sondagens.

Razões de fundo

Todos estes ingredientes já por si seriam explosivos, mas há um problema de fundo que causa e voltará a causar rebeliões como as do início deste ano: a superlotação das prisões, que não para de crescer – e não será a construção dos presídios anunciada por Temer que irá resolver o problema.

O Brasil tem a 4ª maior população prisional do mundo, em números absolutos, segundo dados divulgados pelo Ministério da Justiça referentes ao primeiro semestre de 2014. Em números absolutos, o Brasil alcançou a marca de 607.700 presos, atrás apenas da Rússia (673.800), China (1,6 milhão) e Estados Unidos (2,2 milhões). Quando se compara o número de presos com o total da população, o Brasil também está em quarto lugar, atrás da Tailândia (3º), Rússia (2º) e Estados Unidos (1º).

Mas enquanto que o número de presos nos EUA tem vindo a diminuir, o crescimento no Brasil tem sido exponencial: praticamente triplicou desde 2000, quando o número de presos no país era de 232.755. Note-se que este período corresponde “grosso modo” às gestões do PT (2003 a 2016), o que prova que o partido pouco fez para mudar a Justiça no país, e essencialmente a política em relação às drogas. De facto, o “tráfico de drogas” é o crime que mais encarcera hoje no Brasil (28%). Do total de pessoas que enchem as prisões brasileiras, cerca de 40% estão em regime de prisão provisória, isto é, sequer foram julgados e condenados. A lentidão da Justiça é acachapante: um homicídio pode tramitar por mais de nove anos na Justiça, como acontece nos tribunais de Belo Horizonte. O resultado é que "muitos presos provisórios ficam mais tempo presos do que o tempo de suas posteriores condenações. E isso cria um sentimento de injustiça no preso, aumentando seu antagonismo com o Estado e a probabilidade de ele se aliar a uma facção criminosa”, avalia o analista criminal Guaracy Mingardi, ouvido pela Folha de S. Paulo.

Todos estes fatores contribuem para a superlotação das cadeias, onde há mais 42% de presos que de vagas.

A crónica falta de recursos para o sistema prisional, a ausência de uma reforma da Justiça, a insistência na política de “guerra às drogas”, sem sequer se cogitar um processo de descriminalização do seu consumo e venda, levam ao panorama atual.

A falta de recursos tem também outra consequência: as organizações de traficantes cada vez mais dominam as cadeias.

Diretor de presídio acusado de receber dinheiro de traficantes

O exemplo mais gritante deste facto é a exoneração, na última terça-feira, do diretor interino do Compaj, o presídio onde ocorreu o massacre de Manaus, José Carvalho da Silva, acusado por dois presos que morreram durante a rebelião de receber dinheiro da organização de traficantes Família do Norte para facilitar a entrada de drogas, armas e telemóveis na penitenciária. As denúncias foram feitas por meio de duas cartas enviadas à Justiça do Amazonas no dia 14 de dezembro, 18 dias antes da rebelião ocorrida em Manaus.

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Sobre o/a autor(a)

Jornalista do Esquerda.net
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