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Bolivia entre a estabilidade económica e a crise política

Enquanto os especialistas salientam a estabilidade económica do país, o conflito dos cocaleros está a agravar-se, as lutas internas do MAS intensificam-se e a direita regressa às ruas. Javo Ferreira, editor do La Izquierda Diario da Bolívia, aborda nesta entrevista a complexa situação no país andino.
Evo Morales e o presidente Luis Arce em novembro de 2021 numa manifestação em defesa do governo . Foto Jorge Abrego/EPA

O executivo de Luis Arce Catacora, parte da chamada "nova onda progressista", tem a particularidade de exibir uma situação económica bastante estável de acordo com os atuais padrões latino-americanos. A situação política, porém, não parece ter a mesma sorte. Há já várias semanas que o Governo enfrenta um grande conflito dos cocaleros, um sector chave da base social do seu partido, o MAS. Por seu lado, a oposição de direita começa a regressar às ruas após um período de recuo na sequência das derrotas eleitorais e da prisão de alguns dos protagonistas do golpe que depôs Evo Morales. Neste contexto, juntam-se as próprias disputas internas do MAS, que já aquecem apesar de as eleições presidenciais estarem a pouco mais de três anos de distância. Como avaliar as diferentes tendências que intervêm na Bolívia hoje em dia? Entrevistamos Javo Ferreira, dirigente da Liga Obrera Revolucionária e editor do La Izquierda Diario de Bolivia.


Nas análises que têm feito no La Izquierda Diario Bolivia sobre a situação económica e política atual, falam de "equilíbrios precários". A que se referem?

Para compreender a situação em que o governo Arce se encontra, é essencial ter em conta dois elementos que mostram dinâmicas relativamente contraditórias.

O primeiro é o que menciona, o fator económico, que é a principal fonte de estabilidade. O governo de Luis Arce tem esta vantagem que o distingue do resto da região. A imprensa internacional tem vindo a destacar como a Bolívia está a ir contra as tendências inflacionistas e a estagnação económica que estão a varrer o mundo e a região. Esta estabilidade económica, combinada com o crescimento e uma balança comercial excedentária, funciona como um fator de estabilização importante na situação política.

O segundo elemento é que o golpe de Estado de 2019 que expulsou Evo Morales do poder do Estado abriu uma crise profunda em todas as instituições do Estado, particularmente a polícia, as forças armadas e o poder judicial. Esta profunda crise no regime político não pôde ser resolvida com o importante triunfo eleitoral de Arce com 55% dos votos, mas foi adiada, enquanto se espalhou não só para o bloco golpista, que ficou extremamente fragmentado, mas também para o próprio MAS, onde as disputas entre Evo Morales e as várias correntes de "renovadores" ameaçam alastrar à própria administração do governo.

A combinação destes dois elementos, que agem de forma contraditória, é o que nos permite falar de "equilíbrios precários". A profunda falta de legitimidade das instituições estatais e a fragmentação de todas as formações políticas são "contidas", por assim dizer, pela estabilidade económica. O governo encontra-se numa corrida contra o tempo, procurando tirar partido dos elementos de estabilidade para reconstruir alguma forma de hegemonia política, evitando ao mesmo tempo que a situação económica se deteriore e acelere os elementos centrífugos do seu partido e do Estado.

Disputa pelo poder no MAS tem em vista as eleições de 2025

Mencionaste as disputas entre o evismo e as várias correntes de "renovadores" como parte desta situação de "equilíbrio precário". Que diferenças estão a ser expressas nesta disputa interna, que, como dizes, poderiam alastrar para a administração do governo?

A disputa interna que se desenvolveu no seio do MAS, e que arrancou a sério após o golpe de Estado, está intimamente ligada às aspirações pessoais dos vários caudilhos e de figuras públicas do MAS com os olhos postos nas eleições de 2025. A remoção de Evo do poder provocou o surgimento de várias correntes e contestações, essencialmente baseadas em atribuir a culpa do que aconteceu ao autoritarismo que Morales empregou nos seus últimos anos de mandato e à vontade de construir pontes com as classes médias, procurando evitar a polarização. Assim, na origem das disputas internas estão não só as aspirações presidenciais de Morales, que acaba de anunciar a sua candidatura através do antigo presidente da câmara de Warnes e firme apoiante, Mario Cronenbold, mas também as aspirações dos chamados renovadores, como o vice-presidente David Choquehuanca e o próprio presidente Luis Arce, que nunca negou as suas aspirações de reeleição em 2025. Em resposta ao recente anúncio de Cronenbold da candidatura de Morales para 2025, o deputado do MAS e forte opositor de Morales, Rolando Cuellar, descreveu o anúncio como uma tentativa de golpe de estado dentro do MAS e uma falta de respeito pelo presidente e vice-presidente, o que mostra a tensão interna que se está a desenvolver no seio do partido. Pela sua parte, Evo Morales pressionou o governo de Arce a mudar de ministros e vice-ministros, ameaçando utilizar a bancada parlamentar do partido no poder como expressão de uma nova oposição ao governo de Arce.

Apesar da virulência destas disputas, elas não exprimem diferenças substanciais em termos programáticos e políticos. Ninguém questiona os pactos feitos por Evo Morales com a direita da Meia Lua [NT: as regiões mais ricas no leste da Bolívia] ou os sectores agro-industriais, tal como ninguém questiona os ataques neoliberais que o governo Arce está a levar a cabo contra os funcionários públicos. Em vez disso, estamos a assistir a uma disputa pelo poder dentro da administração estatal, posições-chave quando se pensa em construir lideranças eleitorais.

O conflito cocalero está de novo no centro das atenções por estes dias, mas já se arrasta há muito tempo. Como entender este complexo enredo?

Um dos conflitos mais importantes das últimas semanas tem a ver com o controlo do mercado legal da folha de coca. É impossível compreender este conflito fora das políticas do MAS relativamente à chamada "luta contra o tráfico de droga" imposta pelo imperialismo americano nos anos 1980 e 1990. O governo de Evo Morales apoiou estas políticas, no máximo dando-lhes um carácter "soberano", ou seja, sem a participação da DEA, que foi expulsa do país, ou da embaixada dos EUA, mas sem resolver os problemas sociais gerados por estas políticas.

Nesses anos, as culturas de coca eram classificadas como "tradicionais", para consumo doméstico e produzidas na área Yungas, e as "excedentárias", supostamente produzidas para a procura do narcotráfico. A produção neste último setor foi restringida, a área do Chapare foi declarada zona "transitória", da qual Evo Morales emergiu como líder dos cocaleros, e foi implementado um processo de substituição de culturas, enquanto que no resto do país foi totalmente proibida. A última lei promulgada por Evo Morales, a Lei 906, alargou a zona de produção legal no Chapare e manteve a condição de que apenas dois mercados podem vender legalmente folha de coca: um em Sacaba, Cochabamba, e o outro em La Paz. O atual conflito é desencadeado pela abertura de um mercado paralelo em La Paz. Há semanas que os membros da Associação Departamental de Produtores de Coca de La Paz (Adepcoca), cujo líder é Freddy Machicado, protestam contra o funcionamento deste "mercado paralelo", liderado por Arnold Alanes, a quem questionam por não ter sido legitimamente eleito pela base da Adepcoca. É um conflito cuja natureza se baseia no confronto entre pobres contra pobres como resultado de uma política que descarrega os efeitos da luta contra o tráfico de droga nas costas das comunidades camponesas que produzem folha de coca.

"Solução duradoura para o conflito da coca passa pela legalização"

Os governos do MAS evitaram questionar estes acordos e convenções internacionais baseados na proibição e repressão. É por isso que os camaradas da Liga Obrera Revolucionaria têm vindo a propor que qualquer solução duradoura para o conflito da coca deve começar por questionar as políticas imperialistas da coca, abrindo a discussão sobre a liberdade de cultivar, comercializar e industrializar a coca, ou seja, uma política baseada na legalização e não na repressão das comunidades camponesas produtoras.

Neste conflito setorial, que papel desempenham as disputas com a direita e as disputas internas do partido no poder?

O governo Arce interveio no conflito em apoio ao grupo de Alanes, que lhe é politicamente próximo, com uma repressão feroz, o que provocou resistência e confrontos.

O partido no poder procura retirar toda a legitimidade a estes protestos, afirmando que são de "direita". Isto é muito pernicioso porque, desta forma, estão a empurrar importantes setores da base cocalera para os braços da oposição reacionária. Por exemplo, o secretário de atas da Adepcoca, liderado por Machicado, tem vindo a fazer um discurso que se aproxima ao das forças golpistas, afirmando que "eles já retiraram um presidente" e que, se necessário, o fariam de novo, aludindo ao governo de Arce. Esta linguagem beligerante é o resultado da política do MAS de acusar qualquer ponta de crítica como sendo golpista ou de direita, o que a oposição aproveita para tentar "marcar terreno" em setores descontentes.

Falando da oposição reacionária, a direita tem utilizado o adiamento do Censo Nacional da População e Habitação para voltar às ruas. Qual é a sua situação atual após o regresso do MAS ao governo e a prisão de Jeanine Añez [NT: a autoproclamada presidente interina do país após o golpe que depôs Morales em 2019]?

Começaram de facto a sair à rua. No entanto, tanto o Governo como os cívicos crucenhos [a direita golpista do departamento de Santa Cruz] começaram a construir pontes e a abrir espaços de diálogo e negociação, como o que teve lugar em Santa Cruz, o que, embora ainda sem um calendário definido, mostrou a vontade da oposição e do Governo de chegar a acordos. Estas tentativas de negociação são fortemente condicionadas pela situação mais geral das relações entre a oposição e o oficialismo. Assim, o lento progresso dos três julgamentos no caso do golpe de estado - que já colocou uma dúzia de funcionários atrás das grades, incluindo a ex-presidente Jeanine Áñez - provoca vulnerabilidade em todo o bloco golpista, que vê a necessidade de reconstruir um bloco de direita para melhorar a sua capacidade de resistência e negociação com o governo Arce e com o próprio aparelho judicial. Os setores da direita vão tentar transformar qualquer questão num conflito anti-governamental, a fim de condicionar o governo de Arce e estabelecer alguns limites à eventual detenção do líder cívico de Santa Cruz, o golpista Luis Fernando Camacho, e outros cívicos, tal como exigem várias organizações sociais e populares.

Neste contexto, qual é a situação da classe trabalhadora?

A classe trabalhadora tem suportado o peso dos efeitos da crise desencadeada pela pandemia. Tanto o anterior governo de Áñez como o atual governo Arce têm vindo a tomar medidas que procuram reduzir ou limitar cada vez mais os direitos laborais e o direito de organização sindical. Nos últimos tempos, por exemplo, a burocracia sindical tem promovido mobilizações contra os tribunais do trabalho exigindo que estes façam cumprir as leis laborais, com resultados infrutíferos. É o mesmo governo Arce que, por exemplo, despojou milhares de trabalhadores aeronáuticos de todos os seus direitos laborais, proibindo mesmo o seu direito à organização sindical, ao impor a Lei 2027, o Estatuto dos Funcionários Públicos, uma lei profundamente neoliberal que o MAS tem defendido e até alargado a todos os departamentos do Estado. A divisão e fragmentação das fileiras dos trabalhadores não foi revertida, mas mesmo durante os 14 anos de Evo Morales, as taxas de precariedade e informalidade do trabalho espalharam-se tanto que, de acordo com o Centro de Estudos do Trabalho e Desenvolvimento Agrário [CEDLA], a sindicalização da mão-de-obra foi reduzida a quase 13% da força de trabalho do país, qunado era de cerca de 25% há 15 anos.

No entanto, esta nova classe trabalhadora construída durante o ciclo neoliberal e durante o evismo começa a dar sinais de recuperação, que se expressa não tanto em lutas sindicais ou corporativas, o que é complicado por esta mesma situação de precariedade, mas sim em termos políticos. A resistência ao golpe levado a cabo por vastos sectores populares teve uma participação importante destes sectores assalariados altamente precários, provenientes dos bairros de lata da Senkata ou Kara Kara, por exemplo. Há também tendências crescentes para resistir aos ataques dos patrões, tanto nas empresas mineiras como nas fábricas, embora ainda não tenham conseguido despertar processos de luta mais amplos. Acreditamos que estas tendências se desenvolverão enquanto a crise política e a crise do regime como um todo permanecerem abertas. Nós, socialistas revolucionários, estamos a apostar nesta hipótese.

Como podemos sair desta armadilha entre o MAS nas suas diferentes fações por um lado e a direita golpista por outro?

Estamos num cenário extremamente fluido, devido ao que estávamos a falar no início, à falta de legitimidade das principais instituições do Estado e à fragmentação tanto da direita golpista como do MAS dominante. Embora esta tremenda polarização política seja contida pela relativa estabilidade económica, pode encorajar a abertura a novas ideias e projetos políticos entre franjas dos trabalhadores e o movimento popular. Creio que os trabalhadores têm a possibilidade de escapar à polarização que foi estabelecida com o golpe de Estado entre o MAS e a oposição de direita, promovendo uma política genuinamente independente, confrontando a direita, mas também os esforços de apaziguamento do MAS. O projeto de Evo Morales e Arce de promover uma revolução democrática e cultural, preservando ao mesmo tempo as regras do jogo capitalista, chegou à exaustão. Isto tornou-se evidente com o golpe de Estado de 2019, que revelou que os esforços para promover reformas legais destinadas à inclusão social tinham falhado, porque o MAS se recusou a perturbar os interesses materiais das classes sociais que são os portadores desta cultura de exclusão e racista. O conflito cocalero também o demonstra, porque apesar dos 14 anos de Evo no poder, a Bolívia continua condicionada pelas políticas internacionais e imperialistas sobre a folha de coca e a extrema dependência do capital estrangeiro para avançar na exploração do lítio ou de minerais "tecnológicos", como são conhecidas as terras raras que Arce pretende explorar.

Enquanto a situação económica se mantém estável, as exigências sociais continuam a crescer, levando, por exemplo, os camponeses de Achacachi a ameaçar retirar o apoio ao Governo se este não satisfizer as exigências locais de desenvolvimento. Neste cenário, é essencial implementar uma política independente capaz de enfrentar o golpe e os esforços da direita para se reagrupar, mas também a política do MAS, que foi reduzida a uma mera administração estatal sem nada de novo para oferecer. Creio que se está a abrir um cenário propício para que nós socialistas possamos semear as nossas ideias para forjar uma alternativa revolucionária e socialista a partir de baixo, a partir da auto-organização dos trabalhadores do campo e da cidade.


Javo Ferreira é dirigente da Liga Obrera Revolucionaria e editor do La Izquierda Diario Bolívia. Entrevista publicada em La Izquierda Diario. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

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