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Bad reputation: uma história (também) da luta das mulheres

No dia em que Joan Jett decidiu subir a um palco e fazer o que, na altura, apenas os homens faziam, mudou o rumo da história do rock e do punk no mundo. Artigo de Isabel Pires.
Foto Doclisboa.

“I don't give a damn 'bout my reputation
You're living in the past, it's a new generation
A girl can do what she wants to do and that's what I'm gonna do
An' I don't give a damn 'bout my bad reputation”

Bad Reputation, Joan Jett & The Blackhearts (1981)

Bad Reputation é mais do que um filme biográfico que acompanha a vida de Joan Jett, umas das figuras incontornáveis do rock e do punk. Bad Reputation é uma resenha histórica do papel das mulheres no rock e na indústria musical, e de como foi preciso partir muros, a muito custo, para se ser reconhecida. Nesse campo, Joan Jett abriu o caminho para muitas de nós, mas não sem muito custo.

Sendo verdade que o documentário não abrange todos os pormenores da carreira de Joan Jett, também é certo que a linha cronológica abarca a carreira desde as The Runaways até à carreira com os The Blackhearts, que ainda mantém.

Iniciando a sua carreira numa época em que se iniciava uma revolução feminista nos EUA, Joan Jett percebeu desde logo que não seria fácil entrar no mundo da música, especialmente do rock. As grandes estrelas eram homens, o papel da mulher era relegado para segundo plano, enquanto acompanhantes ou até adereços e símbolos sexuais.

Nesse meio altamente masculinizado, o surgimento de uma banda composta apenas por mulheres, que fazia o mesmo (ou melhor) que as bandas de homens foi uma lufada de ar fresco. As The Runaways entraram a matar, com composições de Joan, apesar de não ser ela a vocalista. Rapidamente passaram a esgotar concertos e daí até tours mundiais foi um pequeno passo. Mas foi quando começaram a crescer que o machismo começou a mostrar a sua verdadeira face.

Se ao início foram vistas como algo exótico, e por isso a indústria condescendia a sua presença, quando suplantaram muitas das bandas apenas de homens os insultos começaram: não só insultos, mas agressões físicas durante concertos, objetos atirados para o palco, até cuspidelas. Apenas porque eram mulheres.

Considera-se, muitas vezes, que o rock teve o condão de, nos anos 70 especialmente, ter uma consciência política que outros géneros não tinham, consideram-se pessoas muito abertas e livres de preconceitos. Mas bastou surgir uma banda só de mulheres, que tocava tanto ou melhor que as bandas apenas de homens, a fazer música pesada, com letras que falavam sobre as questões das mulheres, para que os preconceitos que sempre lá estiveram viessem ao de cima.

Foi preciso sair dos Estados Unidos para Joan Jett ter a perceção de que as coisas não tinham que ser assim, e em Londres teve um contacto muito próximo com o movimento punk que surgia e que, de facto, estava muito mais aberto a todos e todas.

Quando chegaram ao Japão foram pagas pela primeira vez pelos seus concertos. A audiência era maioritariamente feminina e jovem, tendo Joan percebido que algo de mais relevante do que a própria música se estava a passar. Numa sociedade em que a mulher era considerada cidadã de segunda categoria, Joan e as The Runaways perceberam que o que faziam chegava a milhares de jovens mulheres, passando a mensagem de que podiam fazer tudo o que quisessem.

A partir dessa tour e por várias ações de Kim Fowley (produtor) a banda desintegrou-se[1].

Começa um momento mais negro da vida de Joan Jett, abuso de álcool e drogas, até ter sido internada com uma infeção no coração. Após recuperação, Joan tinha que continuar a trabalhar por obrigações contratuais, tendo-se juntado a Kenny Laguna, um compositor e produtor do que se chamava bubblegum-pop[2], parceria que dura ainda hoje.

A sua carreira a solo, a partir deste momento, é história. Bad Reputation e I Love Rock’n’Roll tornaram-se hits mundiais. No entanto, isto exigiu muito trabalho, não aconteceu sem muitas portas fechadas e problemas recorrentes com editoras que queriam controlar o que Joan fazia e como fazia, além de pouco ou nada lhe pagarem.

Não me focarei na análise da sua carreira musical, mas sim na importância e significado do seu trabalho: a luta que teve que travar apenas por ser mulher num mundo de homens. Numa altura em que procurava uma editora, chegaram a perguntar-lhe “Quando estás em cima do palco, sentes-te homem ou mulher?”, como se uma mulher a tocar guitarra não pudesse ser, assim mesmo, uma mulher.

A sua história de luta permanente e de desigualdade de tratamento foram (e são) um exemplo para várias gerações de mulheres que viriam a percorrer um caminho no meio do rock e do punk: Bikini Kill, L7, The Kills, The Gits, Peaches, entre tantas outras. Teve uma grande ligação ao movimento Riot Grrrl (movimento punk feminista), esteve ligada de forma mais empenhada ao movimento feminista em Nova York, nos anos 90, especialmente após o assassinato da vocalista dos The Gits, violada e assassinada. O seu ativismo passou também pela defesa dos direitos dos animais e, mais recentemente, esteve lado a lado com o movimento LGBTQ.

O que mais podemos ressalvar é o seu comprometimento com a causa feminista, com a luta pelo direito das mulheres serem quem quiserem ser, sem pressões, sem violências, sem condescendências, sem estereótipos. A luta por gritar (literalmente) ao mundo que as mulheres não são assim ou assado, são o que quiserem e como quiserem.

Só em 2015 teve o reconhecimento dos seus “pares” com a entrada no Rock and Roll Hall of Fame. Continua a trabalhar com novas artistas e novas bandas, produzindo discos e tocando ao vivo.

No dia em que Joan Jett decidiu subir a um palco e fazer o que, na altura, apenas os homens faziam, mudou o rumo da história do rock e do punk no mundo. Com um grande estrondo, abriu uma frecha no muro para as mulheres entrarem e desde aí que continuam a entrar: o caminho foi apenas aberto por ela, muitas lhe seguiram os passos e ainda hoje muito há a fazer para também no rock e no punk acabar com as discriminações e preconceitos.

Um filme com ritmo, o mesmo ritmo frenético da vida e da luta de Joan Jett, que se vê sem esforço e com interesse tanto para quem conhece bem a obra dela como para quem não conhece nada. A melhor história que se retira do documentário é mesmo a luta das mulheres contra a discriminação, num papel ativo, derrubando a ideia de dominação dos homens.


Notas:

[1] - Kim Fowley trabalhou com vários dos grandes artistas do rock da época. No caso específico, marcou uma sessão fotográfica com a vocalista da banda, Cherie Currie, que em tudo se assemelhava a um calendário em lingerie, algo que a banda não tinha autorizado. Também existem alegações de violação de Kim a membros da banda. A partir daí, deixaram de trabalhar com este produtor.

[2] -  Género que assim ficou conhecido por serem músicas que rapidamente se tornavam hits, pela sua composição simples, leve e muito cativante, que permitia a qualquer ouvinte gostar, tendo vários êxitos mundiais

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda. Licenciada em Ciências Políticas e Relações Internacionais e mestranda em Ciências Políticas
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