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Autoridade e Obediência, as experiências de Stanley Milgram e o filme “Experimenter”

O filme Experimenter, de Michael Almereyda centra-se essencialmente nas experiências desenvolvidas a partir de 1961, na Universidade de Yale, em torno da obediência individual à autoridade. Por Rui Matoso.
O filme Experimenter, de Michael Almereyda centra-se essencialmente nas experiências desenvolvidas a partir de 1961, na Universidade de Yale, em torno da obediência individual à autoridade
"O filme Experimenter, de Michael Almereyda centra-se essencialmente nas experiências desenvolvidas a partir de 1961, na Universidade de Yale, em torno da obediência individual à autoridade"

O filme Experimenter, de Michael Almereyda, em exibição no cinema Monumental, para além de ser um bom meio para entrar em contacto com uma parte importante da biografia do psicólogo social Stanley Milgram, centra-se essencialmente nas experiências desenvolvidas a partir de 1961, na Universidade de Yale, em torno da obediência individual à autoridade.

Stanley Milgram (1933-1984) é hoje igualmente reconhecido pela sua teoria dos seis graus de separação cuja aplicação às redes sociais digitais faz com que o Facebook afirme ter reduzido o grau de separação para 3.5, o que equivale a afirmar que são apenas necessárias 3.5 amigos intermediários, em média, para ligar duas pessoas quaisquer com perfil na rede. Sobre esta teoria foi criado na Internet o Oráculo de Bacon que indica as ligações existentes entre o ator Kevin Bacon e outros.

No que concerne às experiências de obediência à autoridade relatadas no filme, Milgram terá começado a investigação devido a ter ficado perturbado com o julgamento de Adolf Eichmann, iniciado em abril de 1961, e com a “banalidade do mal” que este parecia encarnar ao afirmar-se sempre e apenas como um cumpridor de ordens superiores que o mandavam assassinar judeus em massa. Este julgamento foi igualmente tema de um filme, de Margarethe von Trotta, sobre o processo que levou a filósofa alemã de origem judaica, Hannah Arendt, a acompanhar e a escrever para o The New Yorker sobre o julgamento do coronel das SS por crimes contra a humanidade. Desde então a “banalidade do mal” representa o conceito de que o mal não emerge apenas através de fanáticos ou psicopatas, pois qualquer pessoa considerada banal, como Arendt considerava Eichmann, pode desencadear atos criminosos suscitados por coisas tão triviais como a vontade de subir na carreira, e não por estar subjugado a uma ideologia nazi, neste caso.

Convém fazer notar que este tipo de experiência, em torno do behaviorismo e da psicologia comportamental, tem como antecedentes os ensaios de Ivan Pavlov acerca do reflexo condicionado, e como continuidade - após Milgram - o conceito de condicionamento operante B. F. Skinner. Stanley Milgram quis testar empiricamente a possibilidade de alguém aceitar infligir sofrimento a outros pelo motivo de estar a cumprir “apenas” uma ordem, sem pôr em causa a autoridade e recusar-se a violentar terceiros.

No entanto, quando passamos a problemática do comportamento individual para dentro do laboratório, apesar de dissimulado em diversos tipos de sala para amenizar a perceção laboratorial do sujeito analisado, o problema deixa de ser tão abstrato como é o dilema filosófico universal da liberdade vs autoridade, passando estritamente a ter de responder a uma questão mais concreta: se um investigador pede a um indivíduo (professor) que aumente a sua severidade contra outra pessoa (aluno) – através de choques elétricos –, em que condições esse indivíduo irá respeitar, e em que condições ele vai desobedecer por sua livre iniciativa? A descrição exaustiva das diversas variações da experiência e respetivas conclusões foram registadas por Milgram na obra “Obedience to Autorithy”.

Na análise que Stanley Milgram fez aos resultados das experiências, o seu espanto perturbado deveu-se ao facto de terem sido ultrapassadas todas as suas expectativas relativamente ao comportamento esperado, a média dos “professores” que administraram a voltagem máxima e perigosamente mortal (450 volts) aos “alunos” foi de 60%, ou seja, parece confirmar-se, tal como acontecia no III Reich, que há homens que no quotidiano são responsáveis e decentes, mas acabam por ser seduzidos pelas armadilhas da autoridade, pelo controlo das suas perceções e pela aceitação acrítica da voz de comando na realização de ações nocivas a terceiros.

As explicações para o fenómeno da obediência à autoridade, enquanto comportamento estrutural do ser humano, são muitas e apoiadas em diversas perspetivas. O comportamento, tal como outras características humanas, foram moldadas pelas exigências da sobrevivência biológica. A hierarquia piramidal de poder favoreceu modelos de organização social ao longo das sociedades humanas fundadas na disciplina e no poder simbólico, assunto aliás tratado por filósofos e sociólogos como Michel Foucault ou Pierre Bourdieu. Das políticas de consciência, fundadas pelo cristianismo à biopolítica das sociedades disciplinares, as formas de governamentabilidade associadas ao controlo das populações vêm-se caracterizando cada vez mais como mecanismos de poder redirecionados do corpo para a mente, da vida material para a vida psíquica, particularmente para a gestão das memórias e para a economia simbólica da atenção.

Nesse sentido, o filme They Live (1988, John Carpenter), é representativo dessa visão da ideologia enquanto forma de controlo incorporada até ao lugar mais recôndito dos desejos humanos. A ideologia, diz Slavoj Žižek a propósito desta obra prima do cinema, não nos é simplesmente imposta, a ideologia é a forma da nossa relação com o mundo social, e de certa forma apreciamos viver ideologicamente condicionados, porque sair fora da ideologia e viver em liberdade, pode ser perigosamente doloroso.

They Live

They Live

São muitas as obras literárias, filosóficas e cinematográficas que abordam as distopias ideológicas, mas uma das mais emblemáticas será certamente o Discurso da Servidão Voluntária (Étienne de La Boétie, 1563). A explicação de La Boétie para o absurdo da servidão voluntária, e para o vício de os cidadãos viverem como servos dos governantes, tem várias causas ainda hoje estudadas: o apego às tradições violentas, a programação total da vida coletiva, a mistificação do poder, o medo latente, os interesses privados, etc... pois “que monstruoso vício é esse, que a palavra covardia não exprime, para o qual falta a expressão adequada, que a natureza desmente e a língua se recusa a nomear?”. Outra obra que merece destaque, na análise da ideologia da sociedade industrial avançada, e na critica quer do capitalismo tardio quer do comunismo totalitário, é o livro O Homem Unidimensional, de Herbert Marcuse (1964).

Nas análises de Marcuse, tal como nas de Stanley Milgram, é introduzida a esfera tecnológica que desde a invenção da cibernética, enquanto ciência do controle e da comunicação, começa a ganhar relevância no entendimento de como as psicotecnologias começaram a instaurar novas formas, mais eficazes, e mais agradáveis, de controlo e consolidação social, i.e., um meio-ambiente cibernético imersivo e holístico com características totalitárias.

Uma das consequências da expansão da cibernética à totalidade da vida, da bioengenharia à inteligência artificial, é a criação de subjetividades dóceis produzidas num contexto de atração pelo poder e suas ilusões. Tal como à “sociedade disciplinar” (Foucault) se sucedeu a “sociedade de controlo” (Deeluze) movida pelo marketing e pela digitalização, também o sistema neoliberal de dominação de preservação do poder já não funciona por via da repressão, mas antes pela da sedução. O marketing digital, e preditivo, é um exemplo óbvio de como a tecnologia envolve formas subtis de manipulação, criando desejos no momento certo e no local exato para que possam ser satisfeitos pelos consumidores. Não se trata já de um sistema repressor das liberdades (programadas), mas de incutir o espírito liberal do individualismo, transformando o trabalhador oprimido num empresário de si-mesmo.

Deste modo, como sugere Byung-Chul Han, o sujeito subjugado pela psicopolítica já nem sequer reconhece a subjugação, pois pensa que é um sujeito livre. Este modo de dominação tende a neutralizar eficazmente qualquer tipo de resistência, criando assim um equilíbrio homeostático mais duradoiro no sistema (cibernética).

Artigo de Rui Matoso para esquerda.net

Sobre o/a autor(a)

Investigador e docente universitário
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