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Argélia: eleições sem legitimidade

Segundo dados oficiais, a abstenção nas eleições para o novo parlamento argelino no sábado, 12 de junho, foi de 70%. A oposição, que chamou ao boicote, suspeita que as estimativas divulgadas ainda estejam exageradas. Estranhamente, ainda não foi anunciado qualquer resultado. Por Luis Leiria.
Manifestação na Argélia, num cartaz lê-se “Contra a guerra social do poder contruamos a greve geral” - Foto PST
Manifestação na Argélia, num cartaz lê-se “Contra a guerra social do poder contruamos a greve geral” - Foto PST

A Argélia promoveu no sábado, 12 de junho, as eleições para a Assembleia Popular Nacional (APN). Foi mais um evento em que a maioria esmagadora dos eleitores ficou em casa, respondendo aos apelos ao boicote de toda a oposição ao presidente Abdelmadjid Tebboune e ao regime que ele representa.

Quarenta e oito horas depois de fechadas as urnas, a Autoridade Nacional Independente das Eleições (Anie) não divulgou ainda qualquer resultado, limitando-se a anunciar aquilo a que chamou a “média de participação nacional”, fixada provisoriamente em 30% do eleitorado. Isto é, a Anie reconhece uma abstenção de 70%. Entre os meios da oposição, há suspeitas de que mesmo essa participação de 30% seja exagerada. Em regiões como a Cabília, onde o boicote encontrou uma adesão esmagadora, os índices de participação foram insignificantes: as duas principais cidades registaram uma presença nas urnas de 0,79% dos eleitores (Béjaia) e 0,56% (Tizi Ouzou).

Esta abstenção massiva tem sido uma constante nas últimas consultas realizadas: as eleições presidenciais, oficialmente, tiveram uma abstenção de 60%

Esta abstenção massiva tem sido uma constante nas últimas consultas realizadas: as eleições presidenciais, oficialmente, tiveram uma abstenção de 60%, e ao referendo da nova Constituição compareceram, também oficialmente, apenas 23,7% dos eleitores. Ambas as cifras são contestadas pela oposição.

Mas a abstenção não parece preocupar o presidente da República argelina: “Já declarei que a taxa de participação não me interessa”, afirmou Tebboune. Dificilmente se encontraria uma confissão mais clara de que as eleições são decorativas num regime cuja instituição central continua a ser o Exército.

A força e os limites do movimento

A Argélia viveu desde 22 de fevereiro de 2019 um processo de mobilizações, sem precedentes na sua história, que recebeu o nome de Hirak, que significa “Movimento”. Todas as sextas-feiras o povo argelino saiu às ruas das cidades, em manifestações pacíficas, para defender a mudança do sistema, com o fim do poder do Exército e o afastamento de todos os representantes do velho regime.

Este movimento conseguiu derrubar o presidente Abdelaziz Bouteflika, que anunciara a sua candidatura a um quinto mandato e foi forçado a renunciar, e conseguiu também o adiamento das eleições. Mas não foi capaz de derrubar o regime instaurado desde a independência do país, em 1962.

O regime passou por convulsões, quando a ala de militares e empresários ligados a Bouteflika foi afastada e muitos dos seus membros presos; mas os que assumiram no seu lugar logo demonstraram a intenção de promover no regime mudanças meramente cosméticas para que tudo continuasse igual.

Em vez de uma Assembleia Constituinte, os novos donos do poder promoveram uma comissão de especialistas que cozinhou nos gabinetes uma nova Constituição sem mudanças de fundo, referendada em novembro de 2020, na ida às urnas menos representativa de todas, segundo os próprios dados oficiais (76,3% de abstenção).

Em vez de uma verdadeira eleição democrática, saída de uma Assembleia Constituinte, promoveram uma apressada eleição presidencial antecipada, ao abrigo das leis eleitorais vigentes, responsáveis por um sem-número de fraudes

Em vez de uma verdadeira eleição democrática, saída de uma Assembleia Constituinte, promoveram uma apressada eleição presidencial antecipada, ao abrigo das leis eleitorais vigentes, responsáveis por um sem-número de fraudes, que levou à eleição de Abdelmadjid Tebboune (dezembro de 2019), um homem do regime que já fora ministro do governo Bouteflika e até, num curto período, primeiro-ministro.

Mas nenhuma destas medidas convenceu o povo, mobilizado no hirak, que a cada sexta-feira (e às terças, os estudantes) insistia na saída de todos os donos do poder ligados ao regime, afirmando a necessidade de um Estado civil, não o Estado militar que governava e governa o país.

Os militares e Tebboune tentaram fazer aproximações ao movimento popular, reivindicando a sua importância e elogiando os seus méritos; mas ficava evidente a vontade de transformá-lo num mero apêndice do poder. Quando as tentativas de aproximação se revelaram inúteis, o governo optou pela repressão. As prisões e os dispositivos policiais, porém, não atemorizaram os manifestantes, e as mobilizações das sextas-feiras prosseguiram por mais de um ano (56 consecutivas).

Governo aproveita pandemia para reprimir

Mas, em março de 2019, os próprios impulsionadores das mobilizações defenderam o cancelamento do movimento devido à pandemia de Covid-19. “O Hirak é uma ideia e uma ideia não morre. Mas os seres que perdemos não regressarão nunca”, alertavam professores de medicina e profissionais de saúde, num apelo divulgado nessa altura defendendo a suspensão dos protestos para evitar uma explosão do contágio.

O governo aproveitou a trégua para lançar uma vaga repressiva, processando e condenando à prisão ativistas e jornalistas. Num momento em que “todos os olhares, a nível nacional e internacional, escrutinam a gestão da pandemia de Covid-19, as autoridades argelinas dedicam o seu tempo a acelerar os processos contra militantes, jornalistas e partidários do movimento Hirak”, denunciou, então, a Amnistia Internacional.

Assim, quando se aproximou a data do segundo aniversário do Hirak, o movimento parecia morto e enterrado. Mas não estava. No dia 22 de fevereiro de 2021, o centro de Argel foi tomado pelos manifestantes que deram o recado: “Não viemos aqui para festejar, mas sim para vos mandar embora!” O movimento estava de volta, mantendo os mesmos objetivos. Em apenas uma semana, três manifestações tomaram as ruas de Argel, a capital, e das principais cidades do país. A primeira, no dia 22 de fevereiro, data do aniversário; a segunda, dos estudantes universitários, logo na terça; e a terceira no dia 26, retomando o hábito das manifestações às sextas-feiras.

Onda repressiva

O governo, porém, aproveitara a trégua proporcionada pela Covid-19 para se consolidar, resolver os seus conflitos internos, e desta vez enfrentou o movimento popular com uma política clara e sem hesitações: a repressão.

O governo Tebboune, na ausência de legitimidade democrática, de apoio eleitoral às novas instituições de uma Constituição referendada apenas por uma ínfima minoria da população, lançou mão da prisão de ativistas, dos ataques aos partidos de esquerda e às mobilizações sindicais.

Mais de 220 ativistas encontram-se atualmente presos. Uma lei prevê penas de prisão de até 20 anos para quem tente dissuadir as pessoas de irem votar (o que foi feito nos últimos três processos eleitorais por toda a oposição pró-Hirak). Os partidos que fazem parte do Pacto por uma Alternativa Democrática (entre eles o Partido Socialista dos Trabalhadores – PST) estão ameaçados de dissolução.

"Esta política repressiva obteve um grande triunfo ao conseguir impedir a realização das manifestações das sextas-feiras em Argel desde 14 de maio" - Foto DR
"Esta política repressiva obteve um grande triunfo ao conseguir impedir a realização das manifestações das sextas-feiras em Argel desde 14 de maio" - Foto DR

Esta política repressiva obteve um grande triunfo ao conseguir impedir a realização das manifestações das sextas-feiras em Argel desde 14 de maio. O governo proibiu a manifestação e o contingente muito reforçado da polícia impediu qualquer ajuntamento, por menor que fosse. O mesmo cenário ocorreu noutras cidades. Atualmente, apenas na Cabília as manifestações de sextas-feiras continuam a ocorrer, especialmente em Tizi Ouzu e Béjaia.

Para o PST, a tarefa do momento é construir uma frente contra a repressão, que agrupe todas as forças dispostas a resistir. “As liberdades são preciosas, para os trabalhadores, para o campo popular”, alerta o partido, insistindo na denúncia de um governo sem qualquer legitimidade.

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