You are here

“Apenas 1% dos desempregados beneficiaram de apoio ao empreendedorismo”

O esquerda.net entrevistou Adriano Campos e José Soeiro a propósito do lançamento do seu novo livro “A falácia do empreendedorismo”.
Capa do livro "A falácia do empreendedorismo", de Adriano Campos e José Soeiro.

Desde workshops de “empreendedorismo para bebés” a discursos culpabilizadores sobre a insuficiência ou falta de “espírito do empreendedorismo”, a ideia começou a rodear as nossas vidas. Adriano Campos, sociólogo e membro da direção da Associação de Combate à Precariedade - Precários Inflexíveis e José Soeiro, também sociólogo, ativista do Teatro do Oprimido e deputado pelo Bloco, analisaram os resultados da políticas públicas de apoio ao empreendedorismo para contar o outro lado da narrativa do ideal meritocrático. 

O livro foi publicado pela editora Bertrand, lançado na semana passada no Porto, com apresentação a cargo do Jovem Conservador de Direita (o vídeo está disponível aqui) e em Lisboa será apresentado amanhã, dia 30, às 18h30, na Feira do Livro por Mariana Mortágua e Adolfo Mesquita Nunes.

Como surgiu a ideia para este livro?

José Soeiro: Eu e o Adriano fomos assistir a uma conferência promovida pela Associação Nacional de Jovens Empresários sobre como criar o seu próprio emprego em tempos de crise e foi-nos revelada nessa sessão a fórmula do sucesso que era MET2, "mexam esse traseiro ao quadrado". Nessa altura começou a nascer a vontade de fazer este livro, que parte basicamente da constatação que o empreendedorismo se tem disseminado por todo o tipo de políticas públicas, não apenas no emprego, mas também na educação, nas escolas, nas políticas sociais.

O libro parte também do desejo de fazer uma reflexão crítica que possa desconstruir alguns dos aspetos dessa narrativa do empreendedorismo. E, por último, parte da intuição de que esta narrativa dominante do empreendedorismo não é apenas um aspeto das políticas de emprego, mas é mais global e visa construir uma ordem social baseada no princípio da competição individual e na lógica da responsabilização do indivíduo pelas suas circunstâncias. Nomeadamente da culpabilização dos desempregados por não terem emprego ou da responsabilização dos beneficiários de apoios sociais por não serem suficientemente empreendedores para se libertarem da tutela do Estado. Ou, no caso das escolas, na ideia que é insuflando o espírito de empreendedorismo que podemos ter uma solução para a crise. E apeteceu-nos fazer um livro que pudesse questionar essa narrativa.

A que conclusões chegaram, para que serve o empreendedorismo?

Adriano Campos: Na verdade, chegámos a duas conclusões gerais neste livro. Uma é que o empreendedorismo é, em si, um dispositivo que tem muita força na sociedade hoje em dia. Ou seja, a narrativa de que o Zé falava de culpabilizar os desempregados, de dizer aos precários que eles estão naquela condição por culpa deles e por mais nada na sociedade, ignorando as condições salariais, de herança, aquilo que são as políticas do governo e do Estado.

Esta narrativa tem muita força, tem essa capacidade de mobilizar instituições poderosas como a escola, como a segurança social mas, na verdade, é uma falácia. Porque, quando vamos aos números, quando analisamos, por exemplo, verificamos que apenas 1% dos desempregados beneficiaram das políticas públicas ativas de apoio ao empreendedorismo. E estas políticas são, em si, medidas discriminatórias. Hoje, em Portugal, quem não tem o ensino superior, não pode aceder a medidas ativas do chamado apoio ao empreendedorismo.

E esta falácia reflete, por um lado, também a fragilidade da economia portuguesa, na qual 90% das chamadas start ups, as empresas que tentam criar um novo mercado a partir da inovação, são trabalhadores independentes que não têm trabalhadores ao seu serviço. É um mecanismo que não serve à recuperação da economia de forma sustentada e, ao mesmo tempo, é uma falácia porque tenta encobrir desigualdades estruturais da nossa sociedade. 

Por último, há um debate muito interessante a nível internacional que tentamos abordar no livro, que é a pergunta afinal, neste capitalismo do século XXI, o que pesará mais, a herança, aquilo que recebemos dos nossos pais, ou o nosso esforço individual, a capacidade que temos de trabalhar? A verdade é que a herança cada vez mais tem contribuído para um congelamento da mobilidade social.

Portanto, o ideal meritocrático que é possível, pelo nosso esforço, pela nossa dedicação, subirmos no elevador social, na verdade encontra vários obstáculos. Desde logo, a questão do salário, dos impostos, da má distribuição a nível geográfico dos recursos, e estes são alguns dos pontos que tentamos demonstrar neste livro.

Que medidas deveriam ser tomadas?

José Soeiro: Se pensarmos nos milhões de euros que foram gastos nos últimos anos a financiar os "empreendedores de palco", a financiar pessoas que não criaram nenhum emprego, mas criaram o seu próprio emprego a fazer formações sobre o empreendedorismo, ou a fazer eventos sobre empreendedorismo, talvez não fosse má ideia canalizar esse dinheiro para políticas que sirvam mesmo para a formação de emprego. 

Depois, vale a pena também pensar que existem vários tipos de empreendedorismo, nem todo o empreendedorismo é o empreendedorismo de que estamos a falar, da criação de valor, no sentido capitalista do termo, centrado no indivíduo, há várias formas de empreendedorismo. Tudo o que seja promover iniciativas sociais, de economia social, cooperativas, etc, acho que são soluções interessantes. 

O que me parece essencial é termos um discurso crítico para não deixarmos que a narrativa do empreendedorismo se transforme numa forma de catequizar e de colonizar os nossos espíritos para aceitar o processo de precarização que está em curso. E isso, acho que é também importante intervir no domínio educativo e não deixar que grandes grupos económicos tomem conta de tempo curricular nas escolas para venderem uma determinada visão do mundo assente na competição e no princípio do mercado como princípio único das relações sociais.

A falácia do empreendedorismo | Entrevista a Adriano Campos e José Soeiro

Artigos relacionados: 

Termos relacionados Sociedade
Comentários (1)