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Angela Davis - Imaginar Novos Mundos

Angela Davis é uma das mais relevantes feministas críticas contemporâneas. A sua história biográfica e política, a partir da qual escreve, tem um potencial metodológico e epistemológico poderoso e disruptivo. Este texto tem, pois, esse propósito: regressar às ideias, perceber e refletir sobre o seu potencial subversivo e transformador. Por Andrea Peniche.
Foto de Oregon State University, Flickr.

Todos os que até hoje venceram participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no chão. (…) Nunca houve um monumento da cultura que não fosse também um monumento da barbárie.

Walter Benjamin1

 

Introdução

Uma das formas de neutralizar ideias subversivas é fetichizar quem as propõe. A história está cheia de exemplos, de Che Guevara a Frida Khalo. Neste processo, paradoxalmente, conjugam-se forças contraditórias. Se, por um lado, ao capitalismo este esvaziamento político é vantajoso, por outro lado, a esquerda mostra-se, tantas vezes, incapaz de resistir à idolatria. Pelo caminho, esquecem-se as ideias.

Angela Davis não escapa a este processo e tem vindo a ser transformada num ícone da cultura pop. Não é raro, por isso, vermos, por exemplo, ativistas reclamando Davis através de merchandising, ao mesmo tempo que clamam pelo aumento de molduras penais e por penas de prisão efetiva, esquecendo que Davis é uma das mais sonoras vozes do movimento abolicionista carcerário, que defende a extinção do atual modelo de resolução de conflitos e a sua substituição por estratégias conciliatórias e preventivas.

Angela Davis é uma das mais relevantes feministas críticas contemporâneas. A sua história biográfica e política, a partir da qual escreve, tem um potencial metodológico e epistemológico poderoso e disruptivo. Este texto tem, pois, esse propósito: regressar às ideias, perceber e refletir sobre o seu potencial subversivo e transformador. Centrar-me-ei no livro Are prisons obsolete?2, porque me parece que o atual momento político que vivemos reclama uma leitura atenta dele.

Em 2022, neste país, no contexto de uma campanha eleitoral, a direita e a extrema-direita trouxeram para cima da mesa uma discussão anacrónica e absurda: o regresso da pena de prisão perpétua. À esquerda, não pode haver tibiezas. É preciso romper com o paradigma que conjuga justiça como vingança e pena como castigo. O punitivismo é a doutrina que interpreta as penas como castigos e que crê que estas devem ser cumpridas, preferencialmente, em privação de liberdade. No entanto, justiça não é vingança. À esquerda, o compromisso tem de ser com uma justiça justa, e ela será tanto mais justa quanto mais preventiva, reparadora e reabilitadora for.

Pela mão da história

Em Are prisons obsolete?, Davis analisa criticamente o sistema prisional dos EUA, desde meados do século XVIII até ao início do século XXI, e as suas consequências económicas e sociais, nomeadamente para as comunidades negra, latina e indígena. Apesar de centrar boa parte da sua análise no sistema prisional estado-unidense, que se construiu como uma continuidade histórica do sistema escravocrata, aduz argumentos a um debate mais amplo sobre justiça e punitivismo que vale a pena acompanhar e considerar.

Na Europa, as prisões surgem no século XVIII ligadas às ideias iluministas e ao movimento contra as penas capitais e outras punições físicas. Nos EUA, a prisão como instituição de punição e reabilitação surge aquando da Revolução Americana e pretendia substituir as penas capital e corporal, executadas publicamente, herdadas do colonialismo britânico, por penas de encarceramento. Antes da emergência dos direitos individuais, a crueldade das penas tinha um propósito mais dirigido a quem assistia à sua execução do que à própria pessoa alvo da punição. Porque as penas eram executadas publicamente, o aprisionamento não se confundia com a pena, era antes um momento pré-pena (as pessoas eram encarceradas até ao cumprimento da pena). Neste quadro, o encarceramento foi uma reforma progressista, pois era encarado como reabilitador, e a prisão foi concebida com o objetivo de «proporcionar aos condenados as condições para refletirem sobre os seus crimes e, pela penitência, reformarem os seus hábitos e até as suas almas» (p. 26). «É, portanto, importante compreender que a prisão como a conhecemos hoje não surgiu no palco histórico como a forma superior e definitiva de punição. Foi simplesmente — embora não devamos subestimar a complexidade desse processo — o que fazia mais sentido em determinado momento da história» (p. 43).

Na sequência, o encarceramento transformou-se na pena em si. Esta alteração está relacionada com a ascensão do capitalismo e da burguesia como classe dominante, «cujos interesses e aspirações favoreceram novas ideias científicas, filosóficas, culturais e populares» (p. 43). Do mesmo modo, o estudo e aperfeiçoamento dos modelos arquitetónicos das prisões (o panótico de Bentham, por exemplo), destinados a introduzir e maximizar a vigilância e a disciplina da população prisional, respondiam a uma necessidade da classe dominante da época, a de criar uma classe trabalhadora disciplinada. Todavia, havia nesta reforma uma matriz regeneradora, independentemente do balanço que hoje dela possamos fazer. Esta ideia marca, ainda hoje, uma separação de águas entre quem defende penas como castigos e quem defende penas como possibilidades de reparação e reabilitação.

O complexo industrial-prisional

Ele conhece a sentença?” “Não”, respondeu o oficial (…). “Não conhece a sentença?” “Não”, repetiu o oficial. (…) “Seria inútil comunicar-lha. Ficará a sabê-la sobre o seu próprio corpo”.

Franz Kafka3

A prisão faz hoje parte da realidade das sociedades que habitamos, estando a sua existência perfeitamente naturalizada. O termo Complexo Industrial-Prisional, surgido nos anos 1950 nos EUA, «foi introduzido por ativistas e académicos para contestar a crença predominante de que o aumento dos níveis de criminalidade era a principal causa do crescimento das populações prisionais» (p. 84), sublinhando, ao invés, a perigosa aliança estabelecida entre os mundos empresarial e prisional. Refere-se, pois, ao conjunto das relações políticas e económicas que, através da proliferação de prisões privadas, conduziu ao aumento substancial da população prisional, particularmente nos anos 1980, sob a Administração Reagan. No entanto, «a construção de prisões e o impulso para ocupar essas novas estruturas com corpos humanos foram guiadas por ideologias racistas e pela busca do lucro» (p. 84), suscitando perturbadores paralelos entre o sistema de servidão penal do século XIX e as prisões privatizadas a partir do século XX.

O racismo é, pois, para Davis, uma característica endémica ao sistema carcerário. Antes da abolição da escravatura, 99% da população prisional estado-unidense era branca. Pouco tempo depois, as leis aprovadas transformaram as pessoas que tinham sido escravizadas em criminosas, face à ausência de um plano de inserção social e de respostas aos problemas concretos que enfrentavam, nomeadamente a falta de emprego e de acesso à habitação. Juntamente com a 13.ª Emenda, que legalizou o trabalho forçado para a população prisional, em pouco tempo, as pessoas negras passaram a constituir-se como a maioria da população prisional, numa espécie remake do regime escravocrata. «Assim, ex-escravos, que tinham sido recentemente libertados de uma condição de trabalho forçado perpétuo, podiam ser legalmente sentenciados à servidão penal» (pp. 28-29).

Num sistema prisional privatizado, penas mais longas significam lucros maiores, não só pelo financiamento per capita, mas também pelo exército de mão de obra barata que fica disponível. No entanto, o ponto principal é que o lucro promove a expansão do encarceramento. As prisões converteram-se, pois, num negócio assente em pressupostos racistas e classistas, mas também de género, dando origem a uma lógica absolutamente perversa. São sempre necessários mais presos, as prisões precisam de estar cheias, para se poderem construir novas prisões, gerando um ciclo contínuo de lucro para as grandes empresas envolvidas no negócio. Ao mesmo tempo, as prisões transformaram-se em redutos de mão de obra barata e dócil: «Para as empresas privadas, a mão de obra prisional é um pote de ouro. Sem greves. Sem organização sindical. Sem seguros de saúde, subsídio de desemprego ou indemnização por acidente de trabalho. (…) Os prisioneiros carregam dados para a Chevron, fazem reservas telefónicas para a TWA, criam porcos, recolhem estrume, fabricam placas de circuito, limusines, colchões de água e lingerie para a Victoria’s Secret, tudo por uma fração do custo da “mão de obra livre”»4.

Na sua análise, Davis constata que a maior parte das pessoas encarceradas tinha baixos rendimentos e baixos níveis de escolaridade e que «a prisão funciona ideologicamente como um local abstrato em que os indesejáveis são depositados, aliviando-nos da responsabilidade de pensar sobre os problemas reais que afligem as comunidades das quais os prisioneiros são oriundos em números tão desproporcionais» (p. 16). Michel Foucault já tinha chamado a atenção para o viés ideológico do sistema prisional, referindo que as pessoas socialmente – e psiquicamente – mais vulneráveis se constituem como boas candidatas ao estatuto de criminosas, explicitando que «não há então natureza criminosa, mas jogos de forças que, segundo a classe a que pertencem os indivíduos, os conduzirão ao poder ou à prisão»5. Segundo Davis, à data de publicação do livro, no mundo, 9 milhões de pessoas vivem encarceradas em prisões. Nos EUA, a população prisional é de cerca de 2 milhões (em 1960 rondava as 200 mil pessoas), repartida por prisões, reformatórios e centros de detenção de imigrantes. «A gravidade desses números torna-se ainda mais evidente quando consideramos que a população dos Estados Unidos representa menos de 5% do total mundial, enquanto mais de 20% da população carcerária mundial pode ser reclamada pelos Estados Unidos. (…) Com exceção das grandes guerras, o encarceramento em massa tem sido o programa social do governo mais bem implementado do nosso tempo» (p. 11).

Angela Davis fala também de racialização do crime, isto é, da tendência de imputar atividades criminosas a determinadas etnias, ou, como dizia Frederick Douglass, de «imputar crime à cor»6. A história dos Estados Unidos está cheia de exemplos de racismo e violência policiais, de Rodney King a George Floyd, só para referir dois casos que a minha memória conserva. Todavia, o “perfil racial” não é uma especificidade dos EUA, extravasa largamente as suas fronteiras. Também em Portugal as minorias étnicas têm uma relação diferente com as polícias – e os tribunais. Do imaginário popular às práticas concretas, não estamos em posição igual perante as forças policiais nem perante a lei. “Um olho no burro, outro no cigano” é um dos adágios que ilustra bem o modo como somos ensinados a “imputar crime à etnia”. A comunidade cigana, muito particularmente, é olhada com desconfiança, como se a infração à lei tivesse por base a origem étnica e não as condições materiais – e mentais – concretas em que se vive e sobrevive. «São enviados para a prisão, não tanto por causa dos crimes que podem efetivamente ter cometido, mas principalmente porque as suas comunidades foram criminalizadas» (p. 113).

Patriarcado prisional

Apesar de, a nível global, o número de prisioneiros ser muito mais significativo do que o de prisioneiras, há uma tendência geral para as encarar como particularmente perigosas para a sociedade, em virtude de a criminalidade masculina ser tida como mais “normal”. Este viés patriarcal explica também por que razão as mulheres eram mais encarceradas em instituições psiquiátricas do que em estabelecimentos prisionais no século XIX: os homens delinquentes são criminosos, as mulheres delinquentes são loucas. Todas? Não, nem todas têm o mesmo estatuto: «Quando consideramos o impacto da classe e da raça, podemos dizer que, para as mulheres brancas e abastadas, esse nivelamento tende a servir como evidência para transtornos emocionais e mentais, mas, para as mulheres negras e pobres, indica criminalidade» (p. 67).

Se, com as transformações decorrentes do Iluminismo, nomeadamente a emergência do indivíduo, a reabilitação masculina se imaginava possível através de práticas de reflexão, estudo religioso e trabalho, para as mulheres não havia qualquer plano reabilitador consistente, já que eles violavam a lei legal e elas a lei moral. As reformas do sistema prisional produziram, contudo, mudanças nesta abordagem. Nos EUA, a reabilitação das mulheres passava, nos anos 1950, pela assimilação de comportamentos femininos considerados adequados, isto é, pela vida doméstica e respetivas atividades (cozinhar, limpar, costurar…). Esta abordagem patriarcal é, sem novidade, também racista e classista, porque o ideal de feminilidade era apropriável por algumas brancas, que eram reabilitadas para serem donas de casa; as negras e as pobres eram reabilitadas para serem empregadas domésticas das donas de casa brancas e abastadas.

O universo das prisões femininas funciona como uma espécie de continuidade da sociedade patriarcal, reproduzindo práticas inclusivamente consideradas opressivas e ultrapassadas no “mundo livre”, nomeadamente formas de violência sexual que algumas já enfrentavam em casa e nos relacionamentos conjugais e íntimos. A hipersexualização das prisioneiras, sobretudo das negras e latinas, é uma estratégia carcerária que serve para justificar, atenuar ou desvalorizar os abusos - coerção sexual explícita imposta pelos guardas e por outros funcionários e práticas como a revista corporal e o exame de cavidades corporais, por exemplo. Ou seja, independentemente do contexto, a vulnerabilidade ao abuso é o que permanece na vida das mulheres encarceradas. «Esses crimes, embora raramente sejam denunciados, são claramente entendidos como “crimes” pelos quais o indivíduo, e não o Estado, é responsável. Ao mesmo tempo que o Estado condena agressões sexuais “ilegais” por parte dos seus funcionários, na verdade usa a agressão sexual como forma de controlo»7. Este abuso atinge o grau máximo de perversidade quando se converte em prática eugenista. As mulheres negras, para os mesmos crimes, enfrentaram, não raras vezes, penas maiores do que as mulheres e os homens brancos. Por detrás desta prática estiveram também interesses eugenistas: mantê-las encarceradas durante o máximo tempo possível, de modo a passarem a maior parte dos seus anos férteis na prisão. «A combinação destrutiva de racismo e misoginia, por mais que tenha sido desafiada pelos movimentos sociais, pela academia e pela arte nas últimas três décadas, mantém todas as suas terríveis consequências nas prisões femininas» (p. 83).

Crime e castigo: A justiça como vingança e retaliação

Pensar na abolição do sistema prisional é um debate muito exigente, porque não se trata de humanizar um sistema desumano, mas de criar alternativas a ele. Fazê-lo num tempo em que a extrema-direita cresce, a imprensa tabloide floresce e as redes sociais se assumem como fonte de informação (não mediada) é uma responsabilidade acrescida e antecipadamente cheia de dificuldades. Sabemos que a estratégia da extrema-direita, um pouco por todo o lado, tem passado pela invenção e dramatização de questões securitárias, da crise dos refugiados à imigração, da criminalização de comunidades étnicas minoritárias à identificação dos refugiados/migrantes/minorias com criminosos, numa espécie de reinterpretação do mito do negro violador de que Davis fala em Mulheres, raça e classe (capítulo 11). Se olharmos para a Europa, percebemos que também cá temos um mito, servindo precisamente o mesmo propósito, que consiste na identificação dos homens de uma minoria étnica com agressores sexuais, com criminosos, de modo a criminalizar toda a comunidade; a diferença é que na Europa essa estratégia enquadra-se, em grande parte, na cruzada anti-Islão8. Sabemos também que, na comunicação social, as notícias e programas sobre crimes proliferam, distorcendo a realidade, alimentando a ideia de perigo iminente, criando uma dissonância entre perceção e realidade, que tem o seu corolário na reclamação de um sistema legal-carcerário punitivo, no sentido de castigador e vingativo.

É difícil hoje imaginarmos uma ordem social que dispense o sistema prisional, exatamente porque fomos socializados na ideia de encarceramento como forma dominante – e justa – de punição. No entanto, o argumento que sustentou o florescimento deste modelo (e negócio) – e que ainda hoje campeia - baseava-se na ideia de que o aumento das detenções e as penas mais longas permitiriam comunidades mais seguras, que os direitos e liberdades estariam mais protegidos. Acontece que os estudos demonstram que esta estratégia fracassou: «(…) A prática do encarceramento em massa durante esse período [anos 1980] teve pouco ou nenhum efeito nas taxas oficiais de criminalidade. Na verdade, o padrão mais óbvio foi que populações carcerárias maiores não levavam a comunidades mais seguras, mas antes a populações carcerárias ainda maiores» (p. 12).

A assunção das penas como castigo é uma ideia que ainda hoje está, de certo modo, presente na administração da justiça e que, além do mais, vai ao encontro da expectativa social forjada nesse processo ideológico. Ela é, pois, uma prática, mas é também uma exigência social. Crime e castigo, uma ideia profundamente judaico-cristã, assume no imaginário social uma relação causal tomada como indiscutível e necessária. No entanto, o crime não é o criminoso, da mesma forma que o doente não é a doença. Se facilmente aceitamos que se deve combater a doença e não a pessoa doente, deveríamos aplicar a mesma lógica quando falamos de justiça e, consequentemente, começar a perguntar pelas condições que conduzem à violação da lei. Do mesmo modo, o castigo só é reconhecido como castigo se resultar em pena de prisão efetiva, em privação da liberdade, e quanto mais longa for a pena mais justa será considerada. Frequentemente, quando as penas para crimes com grande impacto social não são de prisão, mas de outra natureza, a indignação popular manifesta-se e é acompanhada, e mesmo instigada, pela imprensa tabloide. No entanto, talvez faça sentido imaginar um outro modo de administrar a justiça baseado na prevenção, reparação e reconciliação e não no punitivismo, isto é, no entendimento da pena como vingança e retaliação. A violação da lei deve ser entendida multidisciplinarmente, como algo que traumatiza e causa dano à vítima, afeta a comunidade e o próprio transgressor, o qual deve ser confrontado com o impacto real da sua atitude, no sentido da autorresponsabilização.

A ideia de que é possível uma sociedade sem violação da lei parece utópica e, na verdade, creio que o é. Mas precisamos de olhar os prisioneiros como aquilo que eles são, para evitarmos julgamentos morais e, sobretudo, precipitados: são pessoas que cometeram atos ilegais, como a maior parte de nós já o fez, mas que não escaparam às malhas do sistema judicial. E é preciso perguntar porquê que umas pessoas escapam e outras não escapam. É preciso perceber quem são estas pessoas e em que circunstâncias cometeram atos ilegais. E o que sabemos é que as prisões estão cheias de pessoas pobres, migrantes e de minorias étnicas9. Podemos embarcar no “mito do negro violador” e defender que há uma qualquer predisposição genética que torna estas pessoas particularmente propensas à violação da lei, como o faz a extrema-direita, mas, para isso, teríamos de recusar todo o conhecimento que o desmente, ou podemos determo-nos nas circunstâncias que as fizeram violar a lei.

A experiência obriga-nos a reconhecer que o acesso à justiça e a forma como ela é administrada pelos tribunais não são necessariamente justos, que a justiça e o acesso a ela são atravessados por discriminações de classe, género e raça. No entanto, parece haver uma maior sensibilidade e capacidade crítica para a justiça classista do que para a justiça racista e machista. A própria imprensa ajuda a consolidar esta sensibilidade. Tudo parece confirmar a perceção popular da desigualdade de classe no acesso à justiça (vejam-se os casos Dias Loureiro, Ricardo Salgado, João Rendeiro, entre outros). Quanto à justiça de viés racista e machista, raramente é considerada um problema estrutural, nem pela imprensa, nem, e decorrentemente, pela perceção popular.

Se a maior parte dos crimes registados (em Portugal) são contra a propriedade10, precisamos de perguntar sobre a distribuição do trabalho disponível, a redistribuição da riqueza e as políticas salariais. Se o crime de violência doméstica, apesar de ter diminuído num quadro de diminuição da criminalidade geral e da criminalidade violenta e grave, continua a ser a tipologia criminal mais participada, precisamos de perguntar sobre os planos de ação de combate à violência machista. Se 13% dos reclusos condenados o foram por crimes associados a tráfico e pequeno tráfico de estupefacientes, precisamos de perguntar sobre descriminalização das drogas. Se 21 reclusos (19 homens e duas mulheres) se suicidaram, em 2020, precisamos de perguntar pelas condições de saúde mental nas prisões. Se a taxa de reincidência ronda os 51%11, precisamos de assumir que este modelo não está a funcionar e que é necessário repensar o paradigma. O que não precisamos de fazer é de reforçar a retórica da extrema-direita. Não precisamos de reclamar o aumento das molduras penais, de exigir penas de prisão efetiva ou penas exemplares, porque a justiça à la carte, a justiça de exceção (sem equilíbrio, proporcionalidade, ponderação e comparação) está vinculada a projetos políticos autoritários, ao lucro das empresas e às representações mediáticas do crime, servindo apenas o populismo. O aumento das molduras penais e a reclamação de penas de prisão efetiva para crimes de violência de género, por exemplo, que tantas vezes ouço e leio, não resolve o problema da justiça machista, mas alimenta e legitima as visões de justiça da direita e da extrema-direita populistas. Não precisamos e não devemos contribuir para esta retórica justiceira e vingativa, pelo contrário, e muito menos podemos fazê-lo em nome do feminismo ou com um pin da Angela Davis ao peito sem perceber que incorremos numa profunda contradição.

Mas como tratar as pessoas que violam os direitos e os corpos de outras pessoas? «O crime precisa ser definido em termos delito de natureza civil e, em vez de direito criminal, deve haver um direito reparador. (…) [O transgressor] não é um homem ou uma mulher mal-intencionado, mas simplesmente um devedor, uma pessoa responsável, cujo dever humano é assumir a responsabilidade pelos seus atos, assim como o dever de reparação», diz Davis citando Herman Bianchi12 (pp. 113-114). A mudança para um novo paradigma – preventivo, reparador, reabilitador – e o abandono do paradigma da pena como castigo resultaria numa nova formulação da pessoa infratora, que passaria a ser entendida como alguém que precisa de ser responsabilizada pela sua falta e que tem o dever de reparar os seus atos (numa perspetiva individual e numa perspetiva comunitária).

O exercício que Angela Davis nos propõe é muito exigente, mas é uma luz que se abre sobre um tema tão complexo e difícil. O desafio não é o da desvalorização do crime, mas de como devem as sociedades responder a ele. E uma das ideias fortes é precisamente a de percebermos as penas como castigos, para as passarmos a entender como o início de um processo reparador e reabilitador.

Em jeito de conclusão

A jornalista Ana Cristina Pereira publicou um conjunto de reportagens e podcasts, no jornal Público13, que possibilitam um retrato das mudanças no sistema de reinserção e serviços prisionais em Portugal. Mas fazem mais do que isso. Dão voz a pessoas silenciadas, o que nos permite começar a ensaiar a resposta ao desafio de Walter Benjamin da epígrafe inicial, o de conhecer, contar e considerar a história dos vencidos. Olhemo-la, pois, ao arrepio da tradição e tenhamos a ousadia de imaginar novos mundos.

«Carlos é aquilo a que, na prisão, se chama um “cadastrola”. Foram anos de bebidas alcoólicas, drogas ilícitas, assaltos à mão armada. Esteve uma, duas, três vezes preso. Entrou aos 21, saiu aos 26. Reentrou aos 28, saiu aos 37. Tornou a entrar aos 44, saiu aos 59. No último assalto, feriu uma bancária com um tiro. “Prometi às vítimas, em tribunal, que ia deixar aquela vida”. Tornar-se-ia abstémico, coisa que não fizera na sequência das penas anteriores. “O que as pessoas sofreram, eu não vou sofrer tanto para deixar isto...”, terá dito a si mesmo vezes sem conta. A equipa médica da prisão ajudou-o a libertar-se da dependência.»

O que quis propor com este texto foi um início de conversa, uma reflexão sobre o modo como olhamos a justiça e a sua administração, como olhamos as pessoas que transgridem a lei e as pessoas que são vítimas dessa transgressão, como nos mobilizamos enquanto sociedade, que valores e que políticas defendemos e a que propostas damos eco. É um debate em aberto. Façamo-lo.


1 Walter Benjamin (1940), “Sobre o Conceito de História”, Tese VII.

2 Angela Y. Davis (2003). Are prisons obsolete? Nova Iorque: Seven Stories Press.

3 Franz Kafka (1914/2021). Na colónia penal. Lisboa: Relógio d’Água, p. 14.

4 Linda Evans e Eve Goldberg, “The prison Industrial Complex and the global economy”, cit. por Davis, p. 84.

5 Michel Foucault (1975/2010). Vigiar e Punir. O nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, p. 274.

6 Philip S. Foner (ed.) (1955/2021). The Life and Writings of Frederick Douglass. Reconstruction and After (vol. 4). Nova Iorque: New York International Publishers, p. 379.

7 Amanda George, “Strip Searches: Sexual Assault by the State”, cit. por Davis, p. 82.

8 Sara R. Farris (2017). In the name of women rights. The rise of femonationalism. Durham: Duke University Press.

9 Na verdade, a afirmação não é rigorosa, corresponde antes a uma intuição de raiz empírica, já que a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais não fornece, nos seus documentos públicos, dados étnico-raciais. A caracterização da população prisional assenta nas variáveis instrução, sexo, escalão etário e nacionalidade. Segundo os dados que apresenta nas estatísticas anuais, no final de 2020 existiam 11 412 reclusos em Portugal. Destes, 93% são homens e 7% mulheres; 15.4% do total de reclusos são estrangeiros (1590 homens e 174 mulheres), 54% provenientes do continente africano.

10 RASI 2020: «Os crimes contra o património constituem a categoria criminal com maior número de participações. Representam 51.1% de toda a criminalidade participada e registaram a diminuição de 11.4%» (p. 9).

11 Os dados são contraditórios e as fontes pouco rigorosas. Os técnicos que trabalham na área, indicam uma taxa de reincidência de cerca de 75%, mas os dados da Provedoria de Justiça, de 2003, indicam 51%. Cf. https://www.dn.pt/edicao-do-dia/26-nov-2019/75-dos-reclusos-regressam-ao...

12 Herman Bianchi (1986), “Abolition: Assensus and Sancturay, in Herman Bianchi e René Swaaningen (eds.), Abolitionism: Toward a Non-Repressive Approach to Crime, Amsterdão: Free University Press, p. 117.

13 Ana Cristina Pereira, “Dentro. Entre grades o mundo também muda”. https://www.publico.pt/grades

Sobre o/a autor(a)

Editora, ativista feminista, membro do coletivo feminista A Coletiva
Termos relacionados Esquerda com Memória, Sociedade
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