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Amos Oz e a violência dos fanáticos

Amos Oz, um dos mais conceituados autores israelitas, e recentemente falecido, foi uma voz incómoda em Telavive. Defensor dos direitos dos palestinianos a um Estado independente e muito crítico do Estado israelita, foi/é um protagonista fundamental do pensamento sobre o conflito israelo-árabe.

Em Caros Fanáticos, publicado pela primeira vez em 2017 (Shalom Lakana'im) e em Portugal em 2018 pela D. Quixote, Amos Oz reuniu três ensaios sobre “questões controversas” de Israel, algumas das quais “de vida ou de morte”.

O livro abre com o ensaio que dá título ao volume e baseia-se numa série de conferências que o autor deu na Universidade de Tübingen, Alemanhã, em 2002. E começa bem, com uma pergunta que, pela interjeição, parece vir de forma casual: “Então, como se cura um fanático?” (p. 15).

O ensaio centra-se no fanatismo islâmico, da Al-Qaeda ao Daesh, “uma guerra entre fanáticos convencidos de que os seus objetivos santificam todos os meios e todos os outros, para os quais a vida é um objetivo e não um meio” (p. 16).

Escrevi já que Amos Oz foi uma voz incómoda em Telavive. Neste ensaio, o autor mostra de que forma o governo de Israel instrumentaliza a existência do fanatismo islâmico para “enfiar a luta do povo palestiniano pelo direito a libertar-se do jugo da ocupação israelita no mesmo “caixote do lixo” indigno do qual emergem sem cessar assassinos muçulmanos fanáticos que cometem atrocidades em todas as partes do mundo” (p. 16-17).

A figura do fanático aparece aqui como o autómato que vive através da relação de alteridade que demoniza o outro. Repare-se: “O fanático não discute. Quando algo lhe parece mau, quando se convence de que algo é mau aos olhos de Deus, o seu dever é exterminar imediatamente a abominação mesmo que para isso seja necessário matar o seu vizinho ou quem quer que se encontre a seu lado” (p. 17).

Isto será particularmente importante nos contextos em que não apenas o Islão político não tem pudores ou pruridos em assassinar cruamente quem diferir da sua visão de mundo, mas também neste com o qual Amos Oz tem uma relação mais pessoal, directa, geográfica: a colonização da Palestina e os crimes cometidos por Israel de forma a fazer uma limpeza étnica no território que clama como seu.

O fanatismo será, por isso, simplista: “basta eliminar o que está a mais, apontar o demónio certo para cada um de nós e depois matá-lo” (p. 19), diz Amos Oz, referindo-se a exemplos tão díspares e semelhantes quanto “genocídios, jihad, cruzadas, Inquisição, gulag, campos de morte e câmaras de gás, câmaras de tortura e atentados terroristas sem distinção” (p. 18). Pela sua violência, e pela simplicidade a preto e branco, rasurante, com que apresenta as posições – suas ou de outros –, o fanático não admite a mudança porque não admite questionar o que afirma defender: traidor será por isso o que tiver a ousadia de mudar.

Amos Oz refere-se ainda à “necessidade de seguir a maioria e o desejo de pertencer à multidão” (p. 29) como terrenos férteis para os fanáticos, em parágrafos que trazem à memória Uma casa em Mossul, de Paulo Moura, em que o autor português fala da adesão ao ISIS como necessidade de pertença (sobre esta obra, também escrevi este texto).

A ideia do fanatismo nasce ainda como teórica forma de salvar o outro, mas é prepotência apenas. O fanatismo vem como auto-legitimação, auto-sublimação, ataca o outro lado, deslegitima-o, inferioriza-o, humilha-o. Primeiro moralmente, depois fisicamente. Não tem por isso qualquer contributo a dar num debate intelectual nem na construção de uma sociedade mais sólida, mais humana, mais incapaz de aprender com os erros que o entulho da História foi deixando.

No segundo ensaio, “Luzes e não uma única luz”, Amos Oz reflecte sobre o judaísmo enquanto cultura e não apenas como religião, ou nação. Nele, traça a distinção entre os tempos em que a cultura do povo judeu era de “questionamento e de polémica” (p. 57), em que os judeus, que “não ergueram pirâmides, não construíram catedrais espetaculares, não erigiram a Muralha da China ou o palácio de Taj Mahal”, “criaram textos e leram-nos em conjunto em família, nas refeições de festa e diárias” (p. 59), no que lhes permitia terem “luzes e não uma única luz. Crenças e ideias e não uma única crença e uma única ideia” (p. 75). Ou seja, o autor rememora aquilo que foi o cerne da cultura judaica, que o sionismo parece ocultar na sua ânsia fanática, e coloca o ênfase na importândia do estudo, do pensamento, da crítica e do questionamento como forma de alterar e melhorar o mundo.

O terceiro ensaio, “Sonhos de que Israel se deve libertar rapidamente”, é uma reflexão sobre a possibilidade de erguimento de “uma ditadura de judeus fanáticos, uma ditadura com caraterísticas raciais, que subjugará com mão de ferro quer os árabes quer os seus opositores judeus” (p. 114). Aqui, Oz teoriza os direitos e os reconhecimentos dos direitos; um direito não é aquilo que se quer ou se sente como seu, antes o que é reconhecido pelos outros como tal. E por isso distingue o que é imaginado como direito sionista de dever religioso de possuir a terra inteira.

Amos Oz defende uma ideia de Israel que em muito difere da versão que o Estado de Israel apresenta do país. Este livro é importante na medida em que pensa o fanatismo que tomou conta do Estado, impedindo-o de sopesar acções, forçando-o a agir imoralmente numa perene relação de alteridade. Numa época em que as identidades se forjam a aço e sonegam debates e os fanatismos crescem e se espraiam, diferindo no formato mas igualando-se na essência, a leitura deste pequeno livro de Amos Oz é um contributo de peso para pensarmos o mundo, o nosso lugar nele e as nossas obrigações morais e intelectuais perante o outro.

Sobre o/a autor(a)

Doutorada em Literatura, investigadora, editora e linguista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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