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Alguns de nós são comunistas

Tantos anos a assustar com os comunistas que nos tirariam as casas e, no final de contas, provou-se que foram os bancos privados, que nos roubaram a casa, o trabalho e o futuro das nossas famílias. Artigo de Alberto Garzón.
"Sempre que existir capitalismo como sistema existirá o comunismo como ideia, movimento e alternativa". Fotografia: Alberto Gárzon. Créditos: IU José Camó (Flickr)

O comunismo está na moda. Não como previram Marx e Engels no Manifesto Comunista, mas de uma forma tal que fez com que as tertúlias políticas, nos grandes meios de comunicação social ou fora deles, se voltou a debater esta tradição política. E mais, três partidos políticos – PP, Cidadãos e PSOE – agitam agora a bandeira do anticomunismo com o objetivo de atacar as posições políticas da aliança entre o Podemos, a Esquerda Unida e as confluências. É uma grosseira e recorrente manobra para usar o medo como arma eleitoral, mas este regresso às velhas fórmulas reacionárias não deixa de ser sintomática.

Há uns anos, a filósofa Jodi Dian escreveu que o ressurgir da ameaça comunista se devia ao fracasso dos mercados. O que me parece correto. O anticomunismo emerge como forma de defesa perante os próprios falhanços, os do sistema de mercado e os do capitalismo. De facto, não deixa de surpreender que após décadas de neoliberalismo e da mais grave crise económica desde a Grande Depressão, se volte a agitar o fantasma do anticomunismo. Afinal de contas, o desemprego, os despejos e o medo de passar fome multiplicaram-se como resultado natural do capitalismo e das suas crises. Tantos anos a assustar com os comunistas que nos tirariam as casas e, no final de contas, provou-se que foram os bancos privados, protegidos e representados por homens trajados de negro, que nos roubaram a casa, o trabalho e o futuro das nossas famílias.

O geógrafo David Harvey insiste com frequência de que o interesse pelo marxismo e pela economia política retrocedeu durante os anos sessenta e setenta porque as preocupações da sociedade, e especialmente da esquerda, se tinham movido para as questões culturais. Existia um crescente interesse sobre os temas ligados à alienação e sobre as possíveis causas que fizeram com que a classe operária não quisesse fazer a revolução socialista, deixando-se de lado a análise económica. E mais, a maioria dos marxistas ocidentais eram filósofos e muito poucos atendiam à questão económica, como evidenciou o clássico estudo de Perry Anderson sobre o marxismo ocidental. Naquele contexto sócio-histórico típico do fordismo e do consumo de massas uma obra como O Capital, que descreve friamente o capitalismo nos seus fundamentos mais elementares, parecia afastada dos problemas políticos da época. Mas isso, insiste o próprio Harvey, mudou nas últimas décadas. E está certo. Hoje, uma obra como O Capital explica com surpreendente precisão por que é que e como nos baixam os salários, nos despedem, nos cortam na Segurança Social e na educação ou nos obstaculizam a organização em sindicatos. Hoje, o capitalismo está bem mais a nu, e é fácil ver como a racionalidade económica do capital inunda as nossas vidas e nos obriga a emigrar, a lutar por migalhas ou a aceitar salários de subsistência como se fossem privilégios. Hoje, o marxismo tem, de facto, mais atualidade do há quarenta anos.

É natural, aceitando o que está para trás, que estejamos perante um ressurgir do comunismo como propunha Dean, ainda que não se expresse com as mesmas roupagens e ferramentas conceptuais de sempre. Na verdade o marxismo sempre foi assim, aberto e diverso. De facto, só o catecismo ortodoxo que emanava dos manuais da URSS pôde congelar, assim fora parcialmente, um instrumento tão vivo como o marxismo. Fossilizou-o, e com um enorme custo. Mas, ninguém poderá negar que o próprio Lenine foi um heterodoxo, de tal forma que Gramsci esteve bem em definir a Revolução de 1917 como uma revolução contra O Capital. Algo semelhante se passou em toda a América Latina com os movimentos revolucionários, onde se destaca o cubano. A própria Rosa Luxemburgo foi, de facto, uma teórica particularmente fértil e crítica com a racionalização que a direção soviética fazia dos acontecimentos históricos. Mas não é só no que diz respeito à análise que o marxismo é aberto e versátil, mas também no que respeita à prática política e à estratégia discursiva. Recorde-se que a fórmula socialmente aglutinadora da revolução soviética foi paz, pão e terra e não qualquer símbolo fetichizado que limitasse a sua capacidade à mera autocomplacência dos revolucionários porta-estandartes. No movimento republicano passou-se o mesmo com Robespierre, a sua tão famosa expressão sobre o direito á existência resumiu sem quebra-cabeças o eixo central dos direitos humanos.

Neste sentido, Harvey está entre os que defendem historicamente a junção dos ideais do Manifesto Comunista aos expressos na Declaração dos Direitos Humanos. Esta é uma via que permite voltar a juntar o socialismo à tradição republicana e que, ao mesmo tempo, permite voltar a situar o foco político nos problemas das pessoas e não em debates litúrgicos e cerimoniais próprios das religiões.

Falar de direitos humanos e vinculá-los ao marxismo não é casual. Por dois motivos. Em primeiro lugar, porque o socialismo foi a única tradição política que manteve viva o lume dos direitos humanos desde 1794 até 1948, e graças à qual se conquistaram os direitos políticos e sociais que caracterizam as nossas sociedades democráticas modernas. Em segundo lugar, porque a agressão do capitalismo é tão brutal e selvagem que, sob as atuais condições históricas, defender os direitos humanos é impugnar o próprio sistema capitalista.

Insistimos muito nisso durante as mobilizações do 15-M ao sublinhar que não somos antissistema, o sistema é que é anti-nós. Não é verdade que durante aqueles dias de 2011 o medo tivesse mudado de lado, pelo menos não tanto como gritávamos. Mas, o que sim mudou de lado foi o senso comum. No meio da agressão neoliberal defender uma habitação, cuja conquista como direito se sobrepunha como fazendo parte do senso comum, convertia-se num ato revolucionário e, na verdade, ilegal. Hoje também é fácil de ver isto quando assistimos que a própria Constituição de 1978 e as suas garantias sociais se convertem em nada perante a suposta realidade imodificável, a saber, a superestrutura europeia e o próprio sistema capitalista.

Diz o professor catedrático de literatura Juan Carlos Rodríguez que «o que deveria ser mais surpreendente é no entanto o que menos surpreende». Refere-se ao facto de que nos deveríamos revoltar perante um sistema que é capaz de deixar sem trabalho mais de um milhão e meio de lares e sem casa centenas de milhar de famílias, para citar dois exemplos. No entanto, naturalizamos estes dramas estruturais. Dizemos que é assim a vida e seguimos para outra. Mas não é a vida, é esta vida. Concretamente esta vida sob o capitalismo. Debaixo de um sistema regido por um princípio básico de maximização dos lucros e que mercantiliza tudo à sua volta, desde os objetos até aos seres vivos e aos recursos naturais. Um sistema, chamado capitalismo, que nos escraviza, um novo Deus chamado mercado que opera com caprichosos e flutuantes desejos de rentabilidade.

Daí o marxismo aspirar a despir esta suposta normalidade e demonstrar como é tão impiedosa. Desmitificar as estratégias discursivas dominantes é, de facto, parte da ação política. Por acaso, será verdade que somos todos iguais na nossa condição de cidadão como insistem em dizer dia após dia? Quando passeamos pelo centro comercial, sugeria Jean Baudrillard, produz-se uma espécie de equiparação em que todos nos pensamos iguais. Ricos e pobres, ficamos aparentemente indiferenciados na nossa nova condição de cidadãos consumidores. Nada mais longe da realidade, dessa realidade que apalpamos nas nossas ruas. Porque é aí onde averiguamos que não só há ricos e pobres mas também trabalhadores e capitalistas, e que por muito que a estrutura social das nossas sociedades modernas se tenha complexificado não deixamos de nos dividir em função de uma diferente dependência das nossas próprias capacidades e corpos.

Efetivamente, alguns precisam de se oferecer no mercado mundial para ganhar o pão, e outros vivem do trabalho alheio. Isso, no essencial, não mudou.

Este é o assunto mais incontestável a respeito da atualidade do comunismo. Onde existir exploração, terá luta, e onde existir opressão, terá resistência. Não importarão as etiquetas, nem a diversidade dos sujeitos. Onde a exploração derivar em miséria, desigualdade, despejos, carências básicas e outros obstáculos ao desenvolvimento de uma vida em liberdade, terá contestação. Em breve, sempre que existir capitalismo como sistema existirá o comunismo como ideia, movimento e alternativa.


PS: O título do presente artigo é, por assim o pretender, idêntico ao que utilizou Carlos Fernández Liria os poucos dias do 15-M para dizer, aproximadamente, o mesmo que eu digo agora.

Artigo de Alberto Garzón Espinosa, deputado e dirigente da Esquerda Unida.


Tradução de Fabian Figueiredo para esquerda.net

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