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Alaa em greve de fome há 150 dias: "Gostava que a COP mostrasse o que está a acontecer no Egito"

Em entrevista a Inês Cortez, Sanaa El-Fattah fala sobre o seu irmão Alaa Abd-El Fattah, uma das vozes mais predominantes da Primavera Árabe, o ativismo internacional dedicado em libertar o escritor da prisão, e o regime do presidente Sisi.
Alaa Abd El-Fatah, foto Wikimedia.

Saana Fattah também estava na prisão quando ouviu pela primeira vez que um grupo de pessoas se juntou para reunir em livro dez anos de pensamentos escritos pelo seu irmão, Alaa. Não imaginava que passaria de uma edição pequena. Estava habituada à oscilação das esperanças. Mas a coletânea daquilo que o ativista Alaa Abd-El Fattah escreveu entre 2011 e 2021 vai já na terceira edição, foi prefaciado pela jornalista canadiana Naomi Klein, e catapultou os esforços diplomáticos pela sua libertação e o fim das prisões políticas no Egito. Alaa Abd-El Fattah é um dos mais de 60 mil presos políticos no Egito, o terceiro do mundo que mais prende jornalistas. "Faz-nos não sentir tão 'à toa'. Pelo menos, as ideias dele agora estão cá fora. O que nós passámos está cá fora. Talvez outros aprendam com isso, e não parecerá uma derrota tão triste. Faz-me sentir que os nossos sacrifícios não são por nada", diz Saana.

Alaa, encarcerado ilegalmente, sujeito a maus tratos e tortura, está em greve de fome desde 2 de abril de 2022. Escritor, programador, ativista, revolucionário, este cidadão egípcio-britânico passou a maior parte da última década atrás das grades. Desde os anos 2000, documentou, com a companheira Manal Bahey El-Din Hassan, os abusos da ditadura egípcia, tornando-se uma figura central do ativismo político do país. Pelo seu papel na Primavera Árabe e na Revolução da Praça Tahrir, as autoridades egípcias tentaram silenciá-lo, à sua família e a dezenas de milhares de outros ativistas que contestam a repressão. O regime autoritário do presidente Abdul Fattah Al-Sisi fá-lo de forma sistemática. Em 2021, Alaa foi condenado a cinco anos de prisão sob acusações de disseminar notícias falsas.

No ano em que a COP27 vai realizar-se no Egito, o país tem recebido pressão internacional para limpar a sua imagem no que toca a direitos humanos. Ativistas de todo o mundo têm pressionado políticos para exigirem a libertação de Alaa e de outros prisioneiros políticos. Manifestações para libertar Alaa já aconteceram em países como o Reino Unido e a Alemanha, e vai acontecer em Lisboa no dia 5 de setembro, às 18h30, no Largo do Intendente.

Para quem não o conhece, o que gostava que as pessoas soubessem sobre o seu irmão?

Alaa é uma figura pública, escritor, e programador de software. Começou o seu ativismo em 2006. Ele tinha um grande interesse em tornar mais ferramentas informáticas disponíveis em árabe. Depois da Primavera Árabe e da Revolução na Praça Tahrir, Alaa tornou-se uma pessoa eminente. É também pai de um rapaz de dez anos, é o meu irmão mais velho, e uma pessoa muito generosa, dedicada a fazer coisas para empoderar os outros.

Porque é que Alaa está preso e o que o levou a começar esta greve de fome?

Fomos derrotados na Primavera Árabe. Alaa foi talvez uma das vozes mais predominantes nesse movimento. Depois seguiu-se o golpe militar. O regime vê pessoas como Alaa como um símbolo e um exemplo. Por isso, Alaa tem estado na prisão desde 2013. Ele cumpriu cinco anos por causa das manifestações, depois foi solto e preso novamente. Agora [em 2021] foi condenado a cinco anos de prisão por espalhar “notícias falsas”, uma acusação que basicamente se baseia num post do Facebook – mas isto é irrelevante para o sistema legal no Egito. Sabemos que as decisões são políticas e que a ideia é manter pessoas como Alaa na prisão para servir de exemplo para todos.

O Alaa não é a primeira pessoa da sua família a ser presa. O que é que esta última década significou para vocês?

O meu pai foi advogado de direitos humanos e uma das primeiras pessoas a abrir um escritório de direitos humanos no Egito. Como advogado, defendia toda a gente, desde islamistas a pessoas LGBTQ+. Ele era uma figura predominante, tal como Alaa. Eu também já fui presa. Passei o meu 21.º aniversário na prisão. Tudo isto foi um abalo para a minha família. O meu pai desenvolveu problemas de coração e teve um ataque cardíaco quando eu e o Alaa estávamos na prisão. O que mudou foi que Alaa passou a ser o “símbolo” da família.

O Ministro do Interior decidiu usar o funeral do meu pai para propósitos de relações públicas. Como um gesto humanitário, permitiu dois presos no funeral. Naquela altura [em 2014], não havia manifestações no Egito, porque tinha havido um grande massacre meses antes e as pessoas tinham medo. O funeral do meu pai foi grande e popular. O regime estava à espera que servisse de exemplo, mas teve o efeito contrário. A comunicação social começou a falar mais sobre nós, e depois foi uma bola de neve. A minha mãe e a minha irmã foram assediadas e detidas algumas vezes, mas nunca foram, de facto, para a prisão. A minha mãe é matemática e professora na Universidade de Cairo, por isso é muito mais difícil pôr alguém com um perfil como o dela na prisão, mas eu e o Alaa estivemos presos várias vezes.

O que isto diz sobre as milhares famílias que enfrentam situações semelhantes no Egito e do tipo de trauma que a prisão cria intencionalmente?

Especialmente agora que ganhamos a cidadania britânica, muitas pessoas têm esperança que haja uma solução para Alaa. O caso dele ganhou muito destaque, falam dele na comunicação social e os governos estão a negociar. Se não houver esperança de que Alaa saia, que esperança pode haver para outros que são mais desconhecidos?

É muito difícil defender os presos no Egito, porque os números são muito altos. A estimativa é de cerca de 60.000 presos políticos. Portanto existem milhares de famílias em que os seus familiares presos não são conhecidos. Eles olham para casos como o de Alaa e veem se há esperança para eles ou não. Alguns ficam em desespero.

O advogado de Alaa foi preso e encarcerado por o defender. Qual é a mensagem para os trabalhadores de direitos humanos?

Acho que é uma mensagem dupla. Primeiro, é uma mensagem de esperança que mostra que qualquer forma de solidariedade com pessoas como o Alaa é necessária. Mas também é uma mensagem para a comunidade de direitos humanos. Apesar da repressão, ainda existem dois principais grupos que conseguem trabalhar dentro do Egito. Em 2019, o regime começou a expandir os seus ataques e começou a atacar advogados. Por exemplo: às vezes os presos não têm visitas  da família, às vezes a família nem sabe onde fica a prisão.

Alaa disse que a sua greve de fome é inspirada nos prisioneiros palestinianos mantidos nas prisões israelitas na Palestina ocupada. Como relaciona a luta pela libertação na Palestina e no Egito, bem como outras nações que enfrentam opressão estrutural?

A princípio, as pessoas assumem que há uma diferença entre presos políticos e presos de “escolha criminosa”, mas quando as condições são desumanas, são desumanas para todos. Quando a questão é de injustiça, ela afeta a todos. Então, a luta dos prisioneiros é a mesma. Quando és privado de todas as ferramentas, mas ainda tens o teu corpo, podes usá-lo.

Claro que encontramos uma grande inspiração no movimento palestiniano, mas também tenho aprendido sobre o movimento abolicionista nos EUA. Os nossos opressores também aprendem uns com os outros. No Egito, muitos meios que são usados contra nós são também usados nas prisões israelitas e nas prisões norte-americanas. Precisamos de ligar as nossas lutas cada vez mais, porque os nossos opressores já o fazem melhor do que nós.

O livro de Alaa “You have not yet been defeated”, em muitos aspectos, narra os seus últimos anos como pai, intelectual e preso político. O livro tornou os seus pensamentos muito mais acessíveis para quem está fora do Egito, especialmente para quem não fala árabe. Qual foi o impacto na criação de solidariedade com o movimento #FreeAlaa?

É muito impressionante e emocionante o que aconteceu com o livro. Estávamos a pensar que deveríamos reunir os escritos de Alaa num livro, e em algum momento, talvez, devêssemos traduzi-lo para inglês, mas não tínhamos certeza se haveria um público interessado.

Nós, como família, estamos tão focados em tentar apoiá-lo que nunca chegamos a esse projeto, mas um grupo de apoiantes decidiu seguir por conta própria e fazê-lo. Estes apoiantes decidiram ficar anónimos, para protegerem as suas identidades, mas também para dar voz a Alaa.

Nunca imaginei que o livro chegasse onde chegou. Achei que faríamos algo que ficaria para o futuro, mas não pensei que fosse realmente lido. E todo o processo foi realmente inspirador, desde a Naomi Klein ter concordado em fazer a introdução do livro, até como ele foi aceite em muitos lugares.

Com Alaa, nunca nos preocupamos com sair o “tiro pela culatra” porque a situação já está tão má que não tem como piorar. Tudo o que nos basta é tentar o nosso melhor. O livro empoderou-nos e tornou-se numa ferramenta poderosa que abriu portas que não sabíamos que existiam.

Faz-nos não sentir tão “à toa”. Pelo menos, as ideias estão cá fora. O que nós enfrentamos está cá fora. Talvez outros aprendam com isso, e não parecerá uma derrota tão triste. Faz-me sentir que os nossos sacrifícios não são por nada.

Embora o caso específico de Alaa tenha recebido atenção especial, provavelmente há mais de 60.000 presos políticos no Egito em situações semelhantes. Um dos pedidos recentes de Alaa centrou-se na libertação dos presos nas prisões da Agência de Segurança Nacional, aqueles que foram condenados inconstitucionalmente e aqueles com casos não defendidos. Qual é a importância desta exigência para a luta pela libertação dos prisioneiros do Egito?

A forma como ele escreve as suas exigências é muito inteligente. Agora que o regime de Sisi está numa má situação económica, ele está à procura de fazer relações públicas para melhorar a sua imagem. Ele também precisa de mais apoio porque o Egito vai receber a COP27 em novembro. Ainda não vimos ninguém a ser libertado, vemos uma discussão sobre os critérios para libertar. Um dos que é falado é a libertação de todos os presos que não participaram em violência, porque uma das acusações do regime é que somos terroristas. Eu, por exemplo,  fui acusada de terrorismo, nunca com uma acusação de violência de facto, mas porque espalhei, segundo eles, notícias falsas com o objetivo de trazer instabilidade ao país e que, por isso, era terrorismo. Essas supostas notícias falsas eram sobre a pandemia e sobre  o governo não tomar as medidas necessárias.

Ou seja, se o critério for a violência, ficam de fora milhares de pessoas que são inocentes, mas acusadas de serem terroristas. Por isso é que Alaa colocou  exigência: pessoas acusadas em casos que não fizeram vítimas.

A outra exigência foi sobre as pessoas em instalações de Segurança Nacional – estas são agências secretas do Ministério do Interior, e por isso não existem oficialmente. Ora, se estas instalações não existem, os seus prisioneiros também não. As pessoas entram num desaparecimento forçado. Ninguém, nem a comissão parlamentar ou o conselho de direitos humanos do Egito, ou outro destas entidades que afirmam estar a trabalhar numa solução com o regime, reconhece a existência destes lugares. Os familiares só sabem dos seus filhos depois da libertação  ou quando encontram os corpos. Toda a gente evita falar sobre o assunto, e esta agência secreta está a crescer.

À medida que a Conferência do Clima da ONU se aproxima, as autoridades egípcias estão a ser acusadas de silenciar ainda mais as vozes dos cidadãos. Como é que a resistência se manifesta no Egito? O que gostaria de ver globalmente da campanha de greenwashing de Sisi?

Dentro do Egito, é como se o regime tivesse que ser normalizado. É como quando os palestinianos nos pedem para não normalizar a ocupação, mas eles têm que normalizar. Não há como evitar lidar com o regime. O que fazemos, basicamente, é tentar documentar o que está a acontecer. Alguns jornalistas e advogados, estão a tentar apoiar a luta do povo. Então, há lutas muito básicas a acontecer e o trabalho principal é documentar.

A COP27 é um momento para Sisi mostrar internamente, não apenas internacionalmente, que tem interesses em comum com as forças internacionais. É um momento de relações públicas para ele, mas também para os cidadãos, porque é menos provável que o desafiem se virem que todos os grandes governos o apoiam cegamente.

Gostaria que usássemos isso como uma oportunidade. Os holofotes estarão no Egito por algum tempo – podemos destacar o que está realmente a acontecer a muitos níveis: económicos, direitos humanos, liberdade dos prisioneiros, o quão perigoso é o país. Mas gostava que quem vai à COP pudesse usar isto como uma oportunidade para realmente ver o que está a acontecer no Egito. Tudo o que os ativistas climáticos vão ver em Sharm El-Sheikh será fortemente filtrado, é um produto turístico, isolado do resto do país, inacessível para as pessoas comuns. Eu gostava de ver esse golpe de relações públicas de Sisi não funcionar.

Como é que as pessoas podem ajudar?

Realmente depende de onde as pessoas estão. Podem seguir a campanha, usar #FreeAlaa, assinar a petição em change.org, mas também a melhor ação é o protesto. Para quem está no Reino Unido, Alaa é um cidadão britânico, então há muito que o governo do Reino Unido pode fazer. Principalmente agora que a COP está para começar, as pessoas podem entrar em contato com quem vai. Pressionem quem vai, para que condicionem a sua participação. Neste momento, há uma oportunidade para Sisi fazer melhorias, mesmo que estéticas. É muito provável que quem vá à COP que vá de qualquer maneira, mas podem pôr condições para essa participação – que os prisioneiros sejam libertados, por exemplo. É o mínimo para pedir. Claro que não libertaremos os 60.000, mas podemos tirar milhares. Já tivemos centenas fora por momentos muito menores. Eu fui perdoada em 2015 entre cem pessoas, porque Sisi ia à ONU nos EUA. Agora que toda a gente está a vir para o Egito, este é um bom momento para pressionar e cada um usar o seu governo, e as suas delegações. Muitos grandes políticos estão sob pressão da comunicação social internacional para não irem e simplesmente participarem cegamente.


* Inês Cortez pertence à organização da manifestação pela libertação de Alaa Abd-El Fattah que terá lugar em Lisboa no dia 5 de setembro, às 18h30, no Largo do Intendente.

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