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África: a influência das antigas e novas potências coloniais e a desinformação

O grupo mercenário russo Wagner e as tropas francesas no Burkina Faso e no Mali, a pré-campanha presidencial no Senegal, o FMI e a China na Zâmbia, os trabalhadores do ChatGPT que ganham uma miséria no Quénia, as mortes de defensores dos direitos humanos em vários países. Um roteiro por várias questões de Carlos Bajo Erro.
Tropas francesas no Burkina Faso. Foto do Ministério da Defesa Francês.
Tropas francesas no Burkina Faso. Foto do Ministério da Defesa Francês.

Pode ser que seja apenas mais um passo e nesta altura talvez até seja esperado. A influência antiga da França no Sahel está a diluir-se irremediavelmente e esse não é um processo que tenha começado agora. Mas nos momentos em que a tensão aumenta, veem-se mais as estratégias paralelas como a desinformação que acompanha isto. No Senegal, a temperatura do discurso político chegou a níveis pouco sustentáveis. “Ou nos mata ou matamo-lo nós”, chegou a dizer o principal candidato da oposição ao referir-se ao atual presidente perante um comício multitudinário. E falta ainda um ano para as eleições.

Ultimato às tropas francesas no Burkina Faso

No sábado, dia 21 de janeiro, espalhou-se pelas redes sociais, uma informação atribuída à Junta Militar do Burkina Faso e supostamente distribuída por meios oficiais, através da qual se anunciava o cancelamento do acordo de cooperação militar do Burkina Faso com França e se reclamava a saída das tropas gaulesas do Sahel no prazo de um mês.

As conversas nos meios digitais alimentaram-se destas informações incertas e durante dias manteve-se uma certa confusão acerca da sua veracidade. Até o presidente francês, Emmanuel Macron, reclamou prudência face à falta de uma confirmação por parte do próprio governo militar. Contudo, as dúvidas dissiparam-se na segunda-feira quando o porta-voz do executivo do Burkina Faso, Jean-Emmanuel Ouédraogo, deu uma entrevista à RTB, a televisão pública do país, na qual ratificou ponto por ponto as primeiras informações e insistiu na saída do contingente francês, conhecido como força Sabre, do território.

Não é a primeira vez que informações de certa importância surgem em primeiro lugar de maneira aparentemente informal e apenas depois de alguns momentos de maturação na opinião pública são assumidas com total naturalidade pelas autoridades do país. Este último episódio aconteceu no contexto de uma nova onda de manifestações nas ruas de Ouagadougou nas quais se exigia explícita e categoricamente o repatriamento dos militares franceses e o encerramentos das bases gaulesas.

A França parece ter aceita a retirada dos 400 soldados das forças especiais que mantinha em solo burquinês e, de facto, começou-se imediatamente a falar da nova estratégia da presença francesa na região.

A deslocação destes soldados para o Níger parece estar a ser trabalhada como a solução mais imediata enquanto se esperam mudanças mais profundas. Este último episódio confirma a tendência de acantonamento da influência francesa nesta área da África Ocidental, sobretudo a partir da expulsão mais abrupta do contingente gaulês no Mali, que era aliás um gesto mais simbólico já que multiplicava por seis o número de efetivos colocados no Burkina Faso. A rutura de algumas ligações, ainda que no caso do Burkina Faso não se tenha falado da interrupção das relações diplomáticas como aconteceu no Mali está relacionada com a intensificação das relações destes países com a Rússia e, sobretudo, com o seu apoio militar através dos efetivos do controverso grupo Wagner. Precisamente, a conversa nas redes sociais sobre a medida da junta militar do Burkina Faso coincidiu com a difusão de alguns vídeos especialmente simbólicos. Trata-se de uns vídeos de animação que circulam pelo Facebook e Twitter. Num deles, o que se transmitiu mais intensamente na plataforma de microblogging pode-se ver um soldado maliense (com uma grande parecença com o presidente, o coronel Assimi Goita) que luta contra um exército de esqueletos marcados com a bandeira francesa e quando se encontra mais em apuros, aparece um mercenário do Grupo Wagner que lhe oferece armas e o seu apoio para vencer a ameaça que, segundo o discurso, tentava apoderar-se do país. Ambos vão depois oferecer a sua ajuda a um soldado burquinês (com grande semelhanza física com o presidente, o coronel Ibrahim Traoré) que se está a defender de uma serpente gigante com as cores do Hexágono. De novo, as armas e o apoio do mercenário da Wagner e o soldado maliense, permitem um êxito, cujo passo seguinte, segundo o guião do vídeo é a Costa de Marfim.

A propaganda russa torna-se cada vez mais intensa e mais agressiva e, por exemplo, a analista Niagale Bagayoko recordou nos últimos dias, como se difundem como boatos e até teorias da conspiração à volta da atividade francesa no Sahel que, apesar de aparentemente descabeladas, vão influenciando o estado de opinião das sociedades da região.

Continua a aumentar a tensão pré-eleitoral no Senegal

Ainda falta mais de um ano para as eleições presidenciais no Senegal mas a tensão da atualidade política aumenta a um ritmo que será dificilmente sustentável. O desafio dos últimos comícios geral um nível de empenho praticamente tão elevado como o da crispação. Ao próprio objeto da eleição, o controlo da cadeira presidencial, soma-se, nesta ocasião, a um desafio acrescido que é a ameaça de que o atual presidente, Macky Sall, tente ganhar um terceiro mandato. Trata-se de uma opção que a Constituição proíbe expressamente de maneira que se Sall o tentar fazer é provável que o faça em tensão perigosa com a instituições do Estado e a saúde da democracia senegalesa.

Com esta pulsar como pano de fundo, sucedem-se momentos de alvoroço, gesticulações e grandes discursos. Em qualquer caso, esta crispação já vai produzindo consequências como a agressão da deputada da coligação governante Amy Ndiaye Gniby ou a recente proibição de uma manifestação convocada por diversas organizações sociais partidos da oposição para alertar sobre irregularidades na gestão dos fundos anti-Covid. Ao mesmo tempo que Macky Sall evita pronunciar-se abertamente e de forma inequívoca sobre a sua participação nas eleições, o discurso dos políticos da oposição e em especial de Ousmane Sonko, o pretendente com mais apoio social, sobe de tom.

No passado dia 22 de janeiro, Sonko e o Pastef, o partido que lidera, deram uma mostra definitiva de aposta forte. O aspirante teve um autêntico banho de multidão na periferia de Dakar. Face a um público massivo e fervoroso, Sonko deu o tom do que se irá desenvolver nesta longuíssima campanha eleitoral: “Fui visitar a tumba do meu pai em Ziguinchor. Depois, fui a pedir à minha mãe que rezasse por mim. Já fiz o meu testamento e estou pronto para enfrentar Macky em todas as frentes. Se não retroceder, ou nos mata ou matamo-lo”, assegurou Ousmane Sonko. Com o cair da noite, as imagens do comício iluminado com as lanternas de milhares de telemóveis tornaram-se um símbolo dessa força.

O candidato e a sua participação nas eleições está ameaçado por um julgamento complicado no qual tem de responder a uma acusação de violação e de ameaça de morte. Uma ameaça que mobilizou ainda mais os seus apoiantes e que pontua a sua narrativa de líder político perseguido e censurado.

Uma luta diplomática sobre a dívida externa

A dívida externa dos países africanos tem sido tradicionalmente um assunto controverso, carregado de matizes e, sobretudo, de desigualdades e de abusos. A sombra da dívida ilegítima ou odiosa provocada pelas decisões de governantes pouco democráticos em proveito, amiúde, de instâncias do Norte global e o rasto do serviço da dívida para o qual não tem sido encontrada uma saída razoável e sustentável e que não hipoteque o futuro dos países, marcam a visão desta obrigação mas também os mecanismos de denúncia e resistência das organizações sociais. Agora mesmo, a Zâmbia é cenário para uma tentativa de repensar esta dívida.

O país foi o primeiro a ver-se obrigado a suspender o pagamento de algumas das suas obrigações durante a pandemia e inaugurou um ciclo que ameaçava levar à quebra muitos outros Estados do continente. Neste momento, a China, que é o principal credor de vários destes países, anunciou uma estratégia ampla para facilitar a reestruturação da dívida, tendo com isto melhorado consideravelmente a sua posição diplomática. Mas esta fórmula não se concretizou por diferentes motivos. Nos últimos tempos, a China pediu que a dívida de credores particulares seja incluída também nestes planos, o que aumenta as dificuldades. Paralelamente, o Fundo Monetário Internacional elogiou as medidas tomadas na Zâmbia para sair das suas dificuldades e pediu compreensão e compromisso aos credores.

No cenário da Zâmbia, o FMI e a China negoceiam como o país vai ter que continuar a devolver os empréstimos recebidos; ao mesmo tempo, há um braço de ferro a propósito da influência internacional; mas também poder ser um primeiro passo para a redefinição destas obrigações.

Alarme devido a ataques aos defensores dos Direitos Humanos

Nos últimos dias, as denúncias públicas dos assassinatos do ruandês John Williams Ntwali, o suazi Thulani Rudolph Maseko e o camaronês Martínez Zogo chamaram a atenção para a vulnerabilidade dos defensores dos direitos humanos em África. O jornalista e ativista Jeffrey Smith transmitiu a gravidade dessa acumulação de ataques em várias mensagens: “A semana passada, num prazo de 72 horas, três das luzes mais brilhantes pela liberdade de África foram assassinadas: John Williams Ntwali ( #Rwanda ), Thulani Maseko ( #eSwatini ), Martínez Zogo ( #Cameroon ). Os meus pensamentos sobre o impacto e os seus legados estão publicados no The Africa Report”, dizia numa destas mensagens.

Os crimes aconteceram, ou pelo menos foram conhecidos, a 20, 21 e 22 de janeiro. Primeiro foi a notícia da morte de John Williams Ntwali, um jornalista crítico que se tinha tornado uma das vozes mais incómodas do Ruanda, onde cada vez há menos dissidentes livres ou vivos, apesar da imagem internacional que Paul Kagame projeta. Ntwali morreu num acidente de viação que não foi esclarecido. As suspeitas estão tão difundidas que uma centenas de organizações da sociedade civil exigiram uma investigação independente para clarificar os detalhes do acidente. Entre elas encontram-se a Human Rights Watch, o Committee to Protect Journalists ou inclusive a UNESCO.

A 21 de janeiro, Thulani Rudolph Maseko foi assassinado a tiros na sua casa durante a noite, na presença da sua família. Maseko era um conhecido advogado defensor dos direitos humanos e um dos mais destacados opositores à monarquia absolutista de Esuatini. Muitos observadores assinalaram a relação entre o assassinato do ativista e a efervescência pro-democrática que vive o país e que está a ser duramente reprimida pelo regime.

O último desta macabra série foi o jornalista camaronês, cujo corpo foi encontrado à beira da estrada com evidentes sinais de violência e num estado de descomposição. Zogo tinha revelado escândalos de corrupção através da rádio que dirigia e o seu assassinato foi condenado tanto por organizações dos direitos humanos como por diversos estados europeus. Alguns consideram que se trata de uma mensagem clara para a imprensa crítica do país.

A face oculta do glamour digital

O título de uma investigação exclusiva do jornalista Billy Perrigo para a revista Time é suficientemente claro: “OpenAI usou trabalhadores quenianos por menos de dois dólares por hora para fazer com que o ChatGPT fosse menos tóxico”. Contudo, a interpretação da notícia é mais ilustrativa. O ChatGPT é possivelmente um dos desenvolvimentos tecnológicos mais deslumbrantes do momento, para os meios de comunicação social e para o discurso mais ligeiro é a demonstração do potencial da tecnologia e como o mundo inteiro à sua volta tem de adaptar-se (a educação ou a comunicação, por exemplo). E também é um dos exemplos de quão lucrativos se podem tornar os negócios digitais. Porém, a realidade é muito mais mundana. Essa pretensa inteligência artificial é uma sequência de comandos construída por seres humanos que requer outros seres humanos para moldá-la e treiná-lae,como já aconteceu em muitos outros contextos históricos esses seres humanos que sustentam as inovações tecnológicas, os que fazem o trabalho sujo, costumam levar a cabo o seu trabalho muito longe do glamour e em muitas ocasiões nos países do Sul global.

Quando o ChatGPT começou a ganhar popularidade e a ser dissecado, começaram a surgir algumas deficiências e certas limitações, entre elas um risco potencial (devido aos seus antecessores) de reproduzir enviesamentos. Para o evitar, os seus criadores incorporaram uma espécie de detetor de conteúdos tóxicos mas esse detetor também devia ser treinado, precisamente, com esses conteúdos tóxicos. A reportagem assinala que trabalhadores quenianos que cobravam entre 1,32 dólares a 2 dólares por hora foram encarregues deste trabalho. Não é a primeira ocasião em que o lado oculto da inovação tecnológica, os trabalhos mais cinzentos necessários para sustentar estes desenvolvimentos, se apoia em trabalhadores quenianos a preços ridículos, como já foi denunciado no caso da moderação de conteúdos em algumas plataformas de comunicação social. Em alguns casos, a economia digital demonstrou a sua falta de originalidade ao reproduzir dinâmicas enraizadas no colonialismo.


Carlos Bajo Erro é jornalista na Wiriko, Associação Cultural para a Divulgação e Promoção das Artes e Cultura africanas.

Texto publicado originalmente do El Salto. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

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