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39 kg de cocaína ampliam descrédito internacional de Bolsonaro

O general Santos Cruz bem tinha avisado: “Todo o dia tem uma bobagem”, disse, em entrevista à revista Época, uma semana depois de ter sido demitido da Secretaria de Governo da Presidência.
Mas nem o próprio general, que presenciou de dentro o “show de besteiras” da gestão Bolsonaro, estaria à espera da cacofonia emitida por diversas fontes, todas oriundas do Palácio do Planalto, em torno do episódio da prisão, na terça-feira 25, de um sargento da Força Aérea do Brasil (FAB) com 39 quilos de cocaína, no aeroporto de Sevilha. O sargento, identificado como Manoel Silva Rodrigues, integrava a tripulação de um avião de apoio à viagem do presidente Jair Bolsonaro ao Japão.
A droga foi encontrada numa mala transportada pelo militar e “não estava nem mesmo escondida entre as roupas”, disseram fontes da Guardia Civil ouvidas pelo El País Brasil.
Ausência de rigor
A partir daqui, “nenhum relato exato sobre o que aconteceu em Sevilha está disponível”, constata o jornal Folha de S.Paulo.
O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou na manhã de quarta 26 que Manoel Silva Rodrigues fazia parte de uma tripulação que ficaria na cidade da Andaluzia para esperar Bolsonaro voltar do Japão.
O presidente Jair Bolsonaro, no Twitter, apressou-se a esclarecer que nada tinha a ver com o sargento-traficante: “Apesar de não ter relação com minha equipe, o episódio de ontem, ocorrido na Espanha, é inaceitável. Exigi investigação imediata e punição severa ao responsável pelo material entorpecente encontrado no avião da FAB.”
Ainda segundo a Folha, o presidente ficou agastado com a versão de Mourão de que o sargento iria embarcar no mesmo avião que ele nalgum momento da viagem.
Uma nota do Ministério da Defesa esclareceu que “o militar em questão não integraria, em nenhum momento, a tripulação da aeronave presidencial, uma vez que o retorno da aeronave que transporta o presidente da República não passará por Sevilha, mas por Seattle, Estados Unidos”.
Horas depois, Mourão recuou e declarou que o sargento não embarcaria no voo do avião presidencial no regresso ao Brasil. Mas até agora não foi possível saber quantos dos 21 integrantes da tripulação do avião de apoio à viagem presidencial desembarcaram em Sevilha, e por que motivo.
Pela quantidade de droga que o cara tava levando, ele não comprou na esquina e levou, né? Ele estava trabalhando como mula
Mourão disse ainda que “pela quantidade de droga que o cara tava levando, ele não comprou na esquina e levou, né? Ele estava trabalhando como mula. Uma mula qualificada, vamos colocar assim”.
Entretanto, soube-se que depois do episódio, o avião presidencial mudou a rota e em vez de fazer escala em Sevilha, parou em Lisboa. O gabinete de imprensa do presidente não explicou o motivo da alteração do plano de voo.
A tentativa de Bolsonaro traçar um cordão sanitário à sua volta em relação ao sargento falhou em poucas horas: ainda na quarta-feira, a revista Veja divulgou que o mesmo Manoel Silva Rodrigues acompanhara o presidente em viagem de Brasília a São Paulo, em 27 de fevereiro, após a segunda cirurgia a que foi submetido devido à facada de que foi vítima durante a campanha.
“Aerococa”
A imprensa internacional reagiu com estupor a mais este episódio inconcebível envolvendo o governo Bolsonaro. Sob o título “Brésil : Bolsonaro secoué par l’affaire de l’« Aerococa », après la découverte de 39 kg de cocaïne dans un avion officiel” (Brasil: Bolsonaro abalado pelo caso do «Aerococa», depois da descoberta de 39 kg de cocaína num avião oficial), o jornal francês Le Monde sublinhou que o sargento não fazia a sua primeira viagem presidencial, tendo acompanhado o presidente “várias vezes”. E reproduziu os “memes” que não demoraram a percorrer a net ironizando o episódio, como o que anunciaria a nova série do Netflix “Bolsonarcos”.
O The New York Times alinhou no tom irónico: “Pó branco, rostos vermelhos: a carga de cocaína a bordo do avião presidencial de Bolsonaro”, foi o título que escolheu.
Já o britânico Financial Times, em tom mais sério, não deixa de considerar a prisão do sargento “um golpe para o direitista sr. Bolsonaro, cujo governo está a tentar endurecer a legislação sobre drogas e que frequentemente elogia as Forças Armadas.” O diário recorda que o filho do presidente Eduardo Bolsonaro acusou recentemente o governo venezuelano de ser uma “narcoditadura” por fazer tráfico de drogas nos aviões militares. E regista que a detenção do sargento ocorreu no mesmo dia em que o ministro da Justiça e ex-juiz Sérgio Moro estava de visita à Drug Enforcement Agency dos Estados Unidos.
Marcelo Freixo: "ir para o andar de cima”
Para o deputado federal Marcelo Freixo, do PSOL, “o episódio é muito grave e precisa ser esclarecido, mas pode ser um caso isolado e não é possível responsabilizar o presidente”.
Mas Freixo aproveitou para insistir que o caso “mostra o erro de se insistir na política de guerra às drogas nas favelas brasileiras, vitimando os pobres. O tráfico de armas e drogas movimenta fortunas no mundo todo e envolve poderosos. É preciso seguir o dinheiro, ir para o andar de cima.”
Ministro do Turismo sob pressão
Entretanto, para não desmentir o general Santos Cruz citado no início deste artigo, o “show de horrores” continua para o governo. Com autorização da Justiça, a Polícia Federal deteve o braço-direito do atual ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antonio, e outros dois ex-assessores, acusados de montar o esquema dos “laranjas” do PSL, partido do presidente Bolsonaro, no estado de Minas Gerais. Candidatos laranjas são aqueles que apresentam formalmente a sua candidatura para receber dinheiro público; não fazem campanha e repassam a verba recebida para o partido, que o usa de outra forma. Neste caso, as laranjas foram todas candidatas mulheres, que recebiam verba devido à lei que impôs uma cota de mulheres nas candidaturas dos partidos.
A Polícia Federal deteve o braço-direito do atual ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antonio, e outros dois ex-assessores, acusados de montar o esquema dos “laranjas” do PSL em Minas Gerais
As prisões voltam a pôr pressão sobre o ministro, que parecia estar a conseguir escapar de uma possível demissão porque a investigação do caso não avançava. Em nota oficial, o PSL acusou a Polícia de fazer “uma investigação seletiva, com o objetivo de atingir o partido ao qual o presidente da República é filiado, embora ele não tenha nada a ver com isso.”
No país que mantém preso o ex-presidente Lula, e depois das recentes denúncias de parcialidade evidente e de cooperação ilegal entre o juiz Sérgio Moro e a acusação a Lula, falar de “investigação seletiva” ao PSL só pode ser uma piada de muito mau gosto.
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