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1968: Uma onda comum para além das especificidades nacionais

Este texto, em que se destaca que “uma internacional estudantil impetuosa emerge na cena mundial”, é a primeira parte do artigo “Maio de 68 no mundo”, de Gustave Massiah.
Manifestação de estudantes na Cidade do México, em agosto de 1968 - foto de Marcel·lí Perelló/wikipedia
Manifestação de estudantes na Cidade do México, em agosto de 1968 - foto de Marcel·lí Perelló/wikipedia

O Maio de 68 em França foi o epicentro de um período revolucionário que foi, em grande parte, mundial. Como todos os grandes acontecimentos, é registado em diferentes temporalidades; a sua  irrupção não é previsível e abre novas possibilidades. O período de 1965 a 1973 foi o das grandes convulsões. Inscreve-se num período mais extenso que vai do início dos anos 60, marcados pela descolonização, até ao início dos anos 80 com o triunfo do neoliberalismo que abre uma nova fase na mundialização. Este acontecimento leva-nos a rever o período precedente, reordena os factos e as suas interpretações, dá sentido ás evoluções que sofre e revela a sua carga subversiva.

Duas evoluções, inscritas na sua duração, unem-se em Maio de 68. Em primeiro lugar, um movimento social e societal de uma amplitude excecional. Este movimento combina uma internacional estudantil intempestiva que serve de detonador, consoante as situações, às lutas sociais e políticas, e um movimento de trabalhadores que ocupa sempre um lugar estratégico e que, na sua união com as lutas dos estudantes, vai dar sentido aos acontecimentos. Depois, a renovação do pensamento do mundo e das suas representações. Esta renovação entrelaça novas e poderosas correntes de ideias ; dá origem a uma intensa ebulição artística e cultural. Estas evoluções infletem a recomposição geopolítica do mundo que acompanha o fim da détente1. Organiza-se em torno dos sobressaltos da descolonização, da crise do império Soviético e da construção do novo bloco dominante composto pelos EUA, a Europa e o Japão.

O Maio de 1968 em França não rebentou de surpresa sob um céu sereno. Desde antes do Maio francês, várias universidades foram ocupadas em numerosos países. Tanto que, os debates e a renovação do pensamento estão em marcha desde 1960. É o resultado da convergência com as lutas da classe operária que vai marcar o caráter emblemático da situação francesa que só será comparável, deste ponto de vista, ao “Maio rampant”2 italiano. Nesta exposição, o movimento em França será abordado apenas por referência ao movimento internacional.

Uma internacional estudantil impetuosa emerge na cena mundial

Desde 1960 que um movimento estudantil, forma explícita de um movimento maior da juventude, emerge em diversas regiões e avança com diferentes novas questões. As guerras coloniais moldam estes movimentos, radicalizando-os. Elas agitam os países empenhados em intervenções que implicam o alistamento militar dos jovens, que passam vários anos no exército. Em França com a guerra da Argélia (de 1954 a 1962), nos Estados Unidos com a guerra do Vietname (desde os primeiros raides aéreos em 1965 até à queda de Saigão em 1975), em Portugal com as colónias portuguesas (até à “revolução dos cravos” em 1974). Em cada um destes países, os movimentos contra a guerra são apoiados por grandes fatias da juventude e restabelecem os laços intergeracionais. Em numerosos outros países, a solidariedade para com os movimentos contra a guerra contribuem para expandir um movimento estudantil internacional. Estes movimentos partem da compreensão daquilo que representa o movimento histórico da descolonização. Radicalizam-se no confronto com as forças da ordem, cujas intervenções endurecem as contradições entre as instituições universitárias e as autoridades políticas. Estes movimentos carregam também uma crítica crescente à evolução das sociedades caraterizadas como coloniais, autoritárias, hierarquizadas e moralistas.

O movimento estudantil luta pelo reconhecimento, pela independência e pelas suas orientações

Abarca a Europa e os Estados Unidos. Em França, por exemplo, desde 1962 que a UNEF procura um segundo fôlego ao recusar a seleção e a defesa da condição de estudante, após a radicalização excecional da luta pela paz na Argélia. A partir de 1965, a agitação estudantil alemã estende-se desde Berlim a toda a República Federal da Alemanha (RFA), denunciando as proibições de reunião e a limitação do tempo dos estudos. Em 1965, acontece em Madrid a marcha silenciosa contra o controlo governamental das eleições do sindicato oficial de estudantes. Em 1966, na Grã-Bretanha, tem lugar a criação da Radical Student Alliance contra a direção considerada reformista do sindicato de estudantes. Em dezembro de 1967, as manifestações de estudantes contra o encerramento da faculdade de ciências económicas de Madrid estende-se até Barcelona, Salamanca e ao resto da Espanha. Poderosas manifestações ocorrem em Londres e a Universidade de Leicester é ocupada em fevereiro de 1968, pondo em causa as formas de representação dos estudantes. Em março de 1968, o encerramento da Universidade de Sevilha provoca uma grande agitação em Madrid, Saragoça e até na Universidade da Opus Dei de Navarra, em Bilbau. Em abril, após 4 dias de tumultos em Madrid seguem-se Sevilha, Bilbau e Alicante. As barricadas em Madrid obrigam o governo espanhol a anunciar reformas.

As manifestações contra a guerra no Vietname endurecem e unem os movimentos estudantis

Elas põem diretamente em causa as autoridades americanas, nos Estados Unidos, depois na Europa, no Japão e no resto do mundo. No outono de 1964, o “Free Speech Movement” em Berkeley vai estar na origem do “Vietnam Day Commitee”. No início de 1965 começam as primeiras queimas de cédulas militares nos Estados Unidos e as primeiras manifestações em Washington, organizadas pela SDS (Students for a Democratic Society), fundada em 1962. No verão de 1965, as primeiras “teach in” ocorrem em Oxford e na London School of Economics e no verão de 1966, Bertrand Russel lança o Tribunal para o Vietname que reúne em maio de 1967 em Estocolmo em sessão plenária. Em 1966 têm lugar as primeiras grandes manifestações em Berlim. Em outubro de 1967, em Washington, os membros do sindicato de estudantes, o SDS, forçam as barricadas à volta do Pentágono. Apesar das flores colocadas pelos hippies nos canos das espingardas dos soldados, os militares dispersam violentamente os manifestantes. Em janeiro de 1968, os estudantes japoneses, ao apelo da Zengakuren, manifestam-se contra a escala do U.S. Entreprise e 300 de entre eles são presos. Em fevereiro de 1968, as manifestações antiamericanas ocorrem em mais de dez cidades da R.F.A. Em março de 1968, em Roma e em Londres, as marchas para a Embaixada dos EUA provocam confrontos violentos com a polícia. Alunos do secundário manifestam-se massivamente em Tóquio. Em Espanha, os estudantes manifestam-se pela paz no Vietname e contra as bases militares. Em abril de 1968, a ocupação da Universidade de Columbia em Nova Iorque alarga o espaço dos confrontos.

Os movimentos estudantis servem de detonadores, em função das situações, às lutas políticas e sociais

Os movimentos estudantis empreendem uma reflexão ativa e dinâmica que os leva da contestação às instituições universitárias e ao seu papel, para a tomada a cargo de uma critica radical à evolução das sociedades. Em diversas ocasiões ainda antes de 1968, os movimentos estudantis estão em confronto direto com as situações políticas e despoletam reações em cadeia que irão abalar os poderes sob as suas diferentes formas. É o caso em Praga, em Varsóvia e em Belgrado com a contestação ao sistema soviético. É o caso em Madrid, em Atenas ou em Lisboa, com a contestação aos regimes ditatoriais europeus. É o caso no México e em inúmeros países onde desvendam e evidenciam as relações entre os conflitos sociais e as subordinações geopolíticas. É o caso nos EUA com a convergência entre o movimento estudantil e o movimento contra as discriminações e o racismo. É o caso da junção entre os movimentos estudantis e as lutas dos operários particularmente em Itália e na França e, num grau menor, em Espanha. Depois de 1968, em inúmeros países, vão-se desenvolver movimentos que, a partir de situações específicas, se alargarão às diferentes causas que se tornam explícitas em 1968 : a primazia das lutas sociais e o questionamento das relações de poder e de dominação.

Os movimentos estudantis radicalizam-se e abordam de frente as questões políticas

Em 1962, nos Estados Unidos, a declaração da SDS versa sobre o mal-estar geracional, os países do Sul, a guerra fria e a bomba (atómica). Em 1965, é criada a FUNY (Free University of New York). Os protestos de estudantes africanos e alemães em Berlim Ocidental, contra um filme acusado de ser racista, são acompanhados de confrontos com a polícia. De 1965 a 1967, os “provos”3 libertam a imaginação em Amesterdão e exploram as múltiplas pistas ecológicas, feministas, libertárias, solidárias. Em 1966, tem lugar o primeiro seminário de estudantes entre a Associação de estudantes Alemães (AstA) e a FGEL (Federação Geral dos Estudantes de Letras) de França. Em julho de 1967, a AstA torna pública, na presença de Herbert Marcuse, uma “nomenclatura provisória dos seminários da Universidade crítica”. Em novembro de 1967 é criada a Anti-Universidade em Londres. Depois das manifestações violentas em Shinijuku, Tóquio, as grandes empresas japonesas anunciam que nenhum dos estudantes presos será contratado. Em novembro de 1967, em Itália, a ocupação das Universidades de Trento e de Turim, estendem-se a outras cidades. Em março de 1968, durante a ocupação das Faculdades de Belas Artes, os Guardas Vermelhos de Turim exigem a eleição dos professores.

De forma dramática, os acontecimentos nos Estados Unidos vão servir de referência constante à agitação internacional. Desde agosto de 1965, os tumultos rebentam no bairro de Watts em Los Angeles. Em outubro de 1966, a criação dos “Black Panthers” em Oakland abre uma fase de revolta frontal. Os dirigentes dos Black Panthers são presos em janeiro de 1968 em São Francisco. O assassinato de Martin Luther King a 5 de abril de 1968 deixa o mundo inteiro estupefacto; é seguido de tumultos em cento e dez cidades americanas provocando milhares de feridos e dezenas de mortos. O dia 13 de maio de 1968 é marcado pela chegada da “marcha dos pobres” a Washington.

O questionamento, concomitante, do sistema soviético nas suas periferias europeias, vai acentuar o caráter universal da contestação. Outubro de 1967 é marcado por uma manifestação de estudantes espontânea em Praga. Em janeiro de 1968, em Varsóvia, 50 estudantes são presos e Adam Michnik é expulso da universidade por se ter manifestado contra a proibição de uma peça considerada antissoviética. Em março, as manifestações de estudantes em Varsóvia ampliam-se; as universidades polacas entram em greve e os confrontos violentos com a polícia estendem-se até Cracóvia e Posnan. A ocupação da Escola Politécnica de Varsóvia sublinha a centralidade do movimento. Em junho de 1968, em Belgrado, a ocupação das faculdades de filosofia e sociologia proclama: “Estamos fartos da burguesia vermelha”. É na Checoslováquia que o movimento ganha toda a sua amplitude. Em março de 1968, uma assembleia de 20.000 jovens aprova o manifesto da juventude de Praga. O seu significado é sublinhado em abril, no artigo «sobre a oposição» de Vaclav Havel. Em Praga, no 1º de maio, um imenso desfile marca o apoio a Alexandre Dubcek e ao secretariado do partido comunista. A 20 de agosto de 1968, a Checoslováquia é invadida ; os tanques soviéticos impõem a normalização.  O abalo da primavera de Praga e das suas reivindicações democráticas provocam fissuras profundas no bloco soviético.

Em abril e maio de 1968, o movimento vai acelerar-se, estender-se e aprofundar-se na Europa Ocidental. As ocupações das universidades são numerosas e virulentas. Em abril de 1968, Rudi Dutschke, dirigente do SDS alemão, é ferido num atentado; o alargamento do movimento engloba os alunos do secundário e os trabalhadores jovens. Tumultos violentos ocorrem em Berlim Ocidental, Hamburgo, Munique, Hanovre. Em Itália, a agitação estende-se a Pisa, Milão, Florença, Roma, Nápoles, Veneza, Catânia, Palermo e Trento. Os acontecimentos em França a partir do 13 de maio irão estimular o movimento internacional.

A 29 de maio de 1968, em Roma, são construídas barricadas com carros virados. Em Bruxelas o reitorado é ocupado. Em novembro, as ocupações multiplicam-se na Grã-Bretanha. A 24 de janeiro de 1969, em Madrid, é proclamado o estado de emergência devido à crise universitária.

O teatro europeu não é o único que está em causa. O México vai ter um papel importante. Em julho de 1968, enquanto se preparam os jogos olímpicos, uma manifestação favorável a Cuba, organizada por estudantes, é reprimida com violência. Em agosto, 300.000 estudantes manifestantes desfilam no México. Em setembro, 3.000 pessoas são presas e a polícia ocupa a Cidade Universitária e a Universidade Autónoma. São erigidas barragens em Tlatelolco, na “Plaza de las Três Culturas”, com a solidariedade da população. A 2 de outubro, os tanques fazem o assalto, os mortos elevam-se ás dezenas. É amplamente difundido um apelo ao boicote aos jogos olímpicos, com o apoio de Bertrand Russel.

Os confrontos multiplicam-se em inúmeros países. No Egito, as manifestações de abril e maio de 1968, centradas sobre a Palestina vão prolongar-se até ao movimento de estudantes de 1972 que irá interpelar a política de Sadate. No Paquistão, as manifestações estudantis ganham amplitude. Em Argel, os estudantes vão provocar a reorientação das políticas de Boumediene. No Senegal, há manifestações de estudantes desde 1968. Omar Blondin Diop, um dos fundadores do movimento de 22 de março em França, será assassinado em 1973, em Dakar, na sua cela.

Artigo de Gustave Massiah, publicado em Contretemps. Tradução de Kevin Tavares para esquerda.net, revisão de Carlos Santos

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