Entre os desafios societais do seculo XXI, o acesso a água (e saneamento) seguro corresponde a um dos desafios mais relevantes, dadas as transformações do território, as alterações climáticas, o crescimento populacional e expansão das cidades, as pressões nos recursos hídricos e os riscos naturais ou provocados a que se encontram sujeitos as origens de água.
Nos países desenvolvidos, tipicamente Países Europeus, Estados Unidos, Canadá e muitos outros, em que os sistemas de abastecimento de água evoluíram por forma a que grande parte dos alojamentos dispõem de acesso ao recurso “água”, os desafios colocam-se sobretudo ao nível da eficiência e sustentabilidade dos serviços. Nos países em desenvolvimento, sobretudo da Africa Subsariana, América do Sul e partes da Asia, a situação é muito diversa, com carências fundamentais no acesso a água e saneamento (“saneamento básico”). É muito comum, mesmo em cidades africanas importantes dos PALOP, mais de 90% da população urbana não dispor de água no domicílio nem de coletores para drenar os efluentes. Essa situação ocorre como resultado da grande maioria da população viver num ambiente peri-urbano (“cidade do caniço”, em Moçambique, ou “musseques”, em Angola), em bairros informais desestruturados e desorganizados, sem serviços mínimos adequados de comunicações, energia, água e saneamento. Nesses contextos, o abastecimento de água dá-se em regra por provedores informais (venda a retalho),com custos muito elevados, e com consumos frequentemente inferiores a 5 a 10l/( hab.dia), bem menores do que nos países desenvolvidos (em regra superiores a 100l/hab.dia). Nesses locais, o saneamento tem lugar a seco (“latrinas”). Nesse quadro, a expansão das infraestruturas e a mobilização de uma cadeia de serviços adequada, a custos controlados e compatíveis com o rendimento das populações torna-se absolutamente crucial. A tendência parece ser, no caso do saneamento, o da implementação de soluções técnicas descentralizadas, com enfase na eficiência e recuperação local de recursos, e com forte participação da população.
As atividades de abastecimento público da água, assim como as de saneamento (drenagem e tratamento de águas residuais urbanas), constituem pois serviços públicos de caráter estruturante (“life lines”) fundamentais para o bem-estar geral, a saúde pública e segurança coletiva das comunidades, o desenvolvimento económico e a proteção do ambiente.
Estas atividades obedecem a um conjunto de princípios que constam, em Portugal, nos Planos Estratégicos do setor, incluindo o da universalidade de acesso, o da continuidade e qualidade do serviço e o da proteção de valores ambientais.
O setor da água (e saneamento) constitui significativamente para o desenvolvimento económico e social do País, tanto pela capacidade de mobilizar e gerar atividade económica e criar negócio e emprego, como pela crescente melhoria que proporciona às condições de vida das populações.
O abastecimento de água e saneamento, compreendendo o transporte e distribuição de água e a drenagem e tratamento de águas residuais e pluviais, e de uma forma mais geral o setor da água caracteriza-se, em termos de recursos que absorve, como de capital intensivo e com períodos alargados de retorno de investimento. Esta situação resulta do elevado investimento necessário numa fase inicial, cujo retorno se verifica apenas no longo prazo, com a suavização das tarifas praticadas ao longo do período de vida útil das infra-estruturas, que em muitos casos ultrapassa os 40 a 50 anos.
Segundo o RASARP (2017) (Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal referente ao ano 2016) editado pela Entidade Reguladora dos Serviços de Águas e Resíduos (ERSAR), Portugal dispõe de cerca de 110.500 km de condutas de água (redes em “alta” e redes em “baixa”), cerca de 3470 instalações de tratamento de água (sendo 94% apenas de desinfecção e/ou correcção de agressividade e de pequena escala), cerca de 2360 estações elevatórias, cerca de 8720 reservatórios e cerca de 6160 captações). No âmbito do saneamento, cerca de 61.300 km de coletores, dos quais cerca de 9% se referem a infraestruturas geridas pelas entidades gestoras em alta, ou seja, fundamentalmente emissários e intercetores, e cerca de 91% se referem a infraestruturas de entidades gestoras em baixa, fundamentalmente coletores de redes de drenagem de águas residuais. Segundo o RASARP (2017), existe em operação no País um total de cerca de 5640 estações elevatórias e 4350 instalações de tratamento de águas residuais, das quais cerca de 2740 correspondem a Estações de Tratamento de Águas Residuais (ETAR) e cerca de 1610 a fossas séticas coletivas.
Relativamente ao futuro próximo, e apesar dos elevados investimentos já realizados, manter-se-á ainda a necessidade de investir na reabilitação de redes de água e saneamento, na construção de pequenas ETAR, na ampliação e afinação de sistemas de tratamento existentes, por razões diversas, incluindo como resultado de cumprimento de legislação normativa ou de diretivas europeias e para proporcionar eficiência, recuperação de energia e reutilização, num quadro de economia circular, em que os produtos de uma operação são matéria-prima de outras, com produção de valor.
Verifica-se, face a condicionalismos diversos, incluindo os decorrentes das alterações climáticas, como se teve ocasião de testemunhar, em Portugal, em 2015 e 2016, em particular na região Centro (zona de Viseu) e na região Sul, que se acredita que assumirá relevância crescente o “combate ao desperdício” e a necessidade de implementação de sistemas de reutilização de águas residuais tratadas designadamente para usos pouco exigentes, como os da limpeza urbana ou da rega agrícola ou paisagística, como tem lugar na ETAR de Viseu Sul (primeira ETAR em Portugal de larga escala para efluentes domésticos, com recurso a tecnologia de biomembranas, com produção de água desinfetada). No entanto, em Portugal, ainda são relativamente poucos os sistemas onde tem lugar reutilização. Os valores reportados para 2016 referem que apenas 1,1% da água residual recolhida foi reutilizada. Num quadro geral de sustentabilidade e eficiência, e em articulação com o POSEUR – Programa Operacional para a Sustentabilidade e Eficiência no Uso de Recursos e com o Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água, perspectiva-se o aumento progressivo de investimentos, através de linhas de financiamento, na reutilização de efluentes para usos compatíveis, na recuperação de energia em ETAR, nomeadamente através de co-geração, e em medidas de adaptação das infra-estruturas a alterações climáticas.
Ao nível da drenagem pluvial e controlo de inundações, advogam-se cada vez mais soluções de “controlo na origem” com técnicas diversificadas e distribuídas no território, com estreita ligação ao planeamento urbanístico, de retenção e infiltração (através de trincheiras filtrantes, poços absorventes, pavimentos reservatórios e bacias de retenção) e com potencial aproveitamento do recurso água e valorização do espaço urbano (“small is beautiful”). As infra-estruturas de abastecimento de água e de saneamento são maioritariamente enterradas, mas constituem uma parcela muito significativa do património público construído, de valor praticamente incalculável, e que consequentemente devem ser
geridas de forma a assegurar as necessidades da geração atual, sem comprometer as gerações vindouras. O expressivo crescimento do setor em Portugal, marcante nos últimos 40 anos não foi, no entanto, acompanhado por uma visão de futuro, colocando desafios acrescidos no que respeita à garantia da sustentabilidade dos serviços a longo prazo (Amaral, 2017).
Existe um enorme espaço para melhorias de desempenho e ganhos de eficiência na prestação dos serviços. O Plano Estratégico para o setor para o período 2014-2020 (PENSAAR, 2020) alerta, por exemplo, para o fato de que para as taxas de reabilitação atuais garantirem a sustentabilidade infraestrutural, seria necessário que as condutas e coletores tivessem uma vida útil média de, respectivamente, 100 a 200 anos, o que naturalmente não ocorre. Ou seja, para manter o valor geral dos ativos, as taxas de reabilitação deveriam, pelo menos, duplicar e triplicar, respectivamente para as condutas de água e para os coletores de águas residuais.
Face a este cenário, o desenvolvimento do PENSAAR 2020 foi norteado por um novo paradigma: “a estratégia deve estar menos centrada na realização de infra-estruturas para aumento da cobertura e focalizar-se mais na gestão dos ativos, seu funcionamento e na qualidade dos serviços prestados com uma sustentabilidade abrangente” (MAOTE, 2015). Esta estratégia atribui ao planeamento estratégico de investimentos e à gestão das infra-estruturas um papel de destaque na mudança de paradigma necessária para assegurar a sustentabilidade dos serviços, incluindo a redução das perdas de água (reais e aparentes) e a recuperação de recursos, nutrientes e materiais, deste modo com agregação de valor e mais valias às atividades do setor. Considera-se, assim, que o conhecimento, a inovação, a transparência e a participação pública como base da decisão, são cruciais para a consolidação e sustentabilidade dos serviços em Portugal, e para alicerçar competências que permitam apoiar os países de Língua Portuguesa na evolução dos seus desafios, e em relação aos quais Portugal tem deveres especiais de solidariedade.
Ao nível mundial, em 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou o acesso à água potável e ao saneamento um direito humano essencial. Mais recentemente, em Setembro de 2015, lideres mundiais adotaram uma agenda ambiciosa para o período 2015-2030, com vista à erradicação da pobreza e ao desenvolvimento económico, social e ambiental à escala global, conhecida como Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, com 17 Objetivos (ODS) quase todos eles relacionados de alguma forma com água e saneamento, referindo-se especificamente o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 6 à satisfação da disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos. Em dezembro de 2015 foi adotada, no âmbito da 21ª Conferencia das partes da Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, em Paris, um conjunto de compromissos que se traduzem também em desafios acrescidos para o setor.
O autor tem tido também, na última década, a oportunidade de participar em vários estudos e Planos de abastecimento de água e saneamento no exterior, nomeadamente em vários países de Africa, com abordagens e soluções não convencionais, a que dará relevo na apresentação oral.