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Reforma das leis laborais: um balanço provisório

Foi concluída a apreciação na especialidade, no grupo de trabalho parlamentar, da reforma das leis laborais. Na próxima semana, se for cumprido o que está previsto, será feita a respectiva votação final e global em plenário da AR.
Um processo acidentado e o episódio final sobre a “remissão abdicativa”
É de relevar que esta fase final dos trabalhos parlamentares foi fortemente marcada pela polémica verificada quando, na passada quarta-feira, o grupo parlamentar do PS deu mostras de querer recuar na eliminação da chamada “remissão abdicativa”, cedendo à exigência pública do presidente da CIP em carta aos empresários e convergindo com uma proposta do PSD que destruiria o importante avanço verificado com a proposta do BE, aprovada também pelo PS e PCP. Essa proposta, de inclusão no artigo 337º de um novo nº 3, eliminava a “remissão abdicativa” dos créditos devidos ao trabalhador no processo de cessação do contrato de trabalho.
Este novo nº 3 constitui um dos mais aspectos mais positivos e significativos desta reforma laboral, já que acaba com a validade legal da clássica exigência e pressão dos patrões de obrigarem o trabalhador a assinarem um documento abdicando de quaisquer créditos adicionais, se quiserem receber a compensação proposta no ato da cessação. A assinatura desse documento, até agora, tem significado a desistência de quaisquer créditos a que tenham direito (remissão abdicativa).
A direita e a CIP tinham brandido a questão de que a norma aprovada poria em causa acordos sobre créditos que fossem firmados em tribunal, o que era falso, já que a norma pretendia proteger os créditos legítimos do trabalhador, fossem ou não reconhecidos pelo empregador, e não limitava ou impedia o que, em sede judicial, as partes acordassem.
A enorme polémica e oposição que este incidente de última hora suscitou conduziu, ao contrário do que pretendiam PSD e CIP, não à liquidação deste significativo avanço legislativo, mas ao recuo do PS na intenção de convergir com a direita e à sua apresentação de uma adenda que produz uma melhor clarificação jurídica do que fora aprovado com o novo nº 3, mantendo integralmente o direito já aprovado. O texto final do nº 3 do artigo 337º, aprovado com o voto do PS, BE e PCP, que incluiu essa adenda (ver sublinhado no texto), acabou por se saldar numa derrota da direita dos interesses e consolida e aumenta de facto a segurança jurídica da norma:
Artigo 337º, nº 3 – Os créditos de trabalhador, referidos no n.º 1, não são susceptíveis de extinção por meio de remissão abdicativa, salvo por meio de transacção judicial.
Esta adenda mantém assim a força protectora da norma já aprovada com o novo nº 3 do artigo 337º, ao mesmo tempo que clarifica e distingue o tempo da relação de trabalho e o tempo do acordo judicial.
Notas para um balanço crítico preliminar desta reforma
O processo legislativo de reforma das leis laborais que está prestes a ser concluído foi marcado pela permanente e insistente pressão da direita dos interesses e da direita política para contrariar tudo o que significassem avanços nos direitos dos trabalhadores e pela recusa do PS em acolher propostas apresentadas pelos partidos à sua esquerda, em áreas muito importantes que significariam um progresso qualitativo na protecção dos direitos dos trabalhadores e no maior equilíbrio das relações individuais e colectivas de trabalho.
Foi o caso da negação, em geral em convergência com o PSD, de ir mais longe na recuperação de direitos liquidados pela governação da troika. Na eliminação da inaceitável disposição do Código do Trabalho que torna irreversível o despedimento quando aceita o pagamento da compensação. Na redução do tempo de trabalho, quando a lei das 40 horas já foi aprovada há quase 30 anos. Na necessária reposição do princípio do tratamento mais favorável ou na reposição do princípio de que uma convenção colectiva deve suceder a outra convenção, sem vazios provocados pelo cutelo patronal da caducidade. Na limitação, regulação e protecção mais exigentes e limitadoras do trabalho em laboração contínua, nocturno e por turnos.
Este processo foi também caracterizado por vários e significativos episódios em que o Governo e o PS vacilaram e tiveram avanços e recuos, num contexto de intensa pressão dos grandes interesses económicos, de que são exemplo as quatro versões sucessivas apresentadas da regulação do trabalho em plataformas ou a cedência verificada à pressão patronal (que ameaçou romper o Acordo de Rendimentos caro ao Governo), quanto à entrada em vigor da alteração da compensação por despedimento magramente aumentada de 12 para 14 dias por ano de trabalho (a proposta era que fosse aplicada retroactivamente aos contratos desde 2014 e acabou emendada para só ser aplicada a partir deste ano).
Mas importa também reconhecer, em balanço sumário, duas coisas:
- Esta reforma, pela primeira vez em muitos anos, não inclui eliminação ou enfraquecimento de direitos dos trabalhadores, o que, dado o histórico, deve ser assinalado, embora falhando numa ambição reformista mais exigente e necessária para reequilibrar as relações de trabalho. De facto, a crítica maior é ao que não está e devia estar e à oportunidade assim perdida de se ir mais longe, como era necessário e possível, dada a forte maioria política e social que era possível assegurar para isso.
- Contém avanços positivos, mesmo que insuficientes, num conjunto vasto de matérias, de que apenas elencamos algumas e que foram em geral fruto do voto conjunto, do diálogo e da convergência estabelecidos à esquerda:
- a nova regulação do trabalho em plataformas digitais, assente na presunção de um contrato de trabalho entre prestador da actividade e plataforma (embora não excluindo por inteiro a figura do operador intermediário, embora subalternizada);
- a eliminação já explicada da remissão abdicativa dos créditos na cessação do contrato de trabalho;
- as medidas de limitação e de mais apertada regulação do trabalho temporário;
- os trabalhadores outsourcing passam a ter os mesmos direitos dos trabalhadores da empresa onde realizam a sua actividade;
- o aumento da compensação devida pela caducidade dos contratos a termo e a maior limitação da sucessão dos contratos a termo
- a fixação no contrato individual e nas convenções colectivas do valor da compensação devida ao trabalhador pelas despesas adicionais em teletrabalho;
- as medidas de exigência de fundamentação da denúncia das convenções, de criação de um tribunal arbitral para a julgar com poder deliberativo e de aplicação em último recurso da arbitragem necessária, a requerimento de uma das partes, para desbloquear processos de negociação colectiva, configurando no seu conjunto um sistema legal que, não eliminando a caducidade, limita mais o seu uso abusivo e confere mais ferramentas de defesa (e de prolongamento do processo) aos sindicatos;
- o direito de intervenção dos sindicatos nas empresas onde não existam sindicalizados;
- o alargamento do direito de reunião nos locais de trabalho à sua convocação e realização online;
- Os direitos de informação e de exigência de transparência no uso de algoritmos e de inteligência artificial nas relações de trabalho, incluindo a obrigação de informação às CT e sindicatos;
- Os trabalhadores com subordinação económica (que prestem trabalho em mais de 50% a uma entidade), embora sem subordinação jurídica, passam a ser abrangidos pela negociação colectiva e podem ser representados por associações sindicais e CT;
- É melhorado o regime legal e os direitos do trabalho doméstico, com aplicação supletiva do Código do Trabalho, e sendo o seu horário limitado a 40 horas como para os demais trabalhadores;
- É reforçado o papel da ACT, que pode requerer ao Ministério Público a suspensão de despedimentos que considere ilícitos e é estabelecido o cruzamento de dados entre ACT, AT, Segurança Social e IRN, indispensável para uma fiscalização mais eficiente
- É criminalizado o trabalho não declarado
- São reforçados os direitos e a protecção da parentalidade
- Igualmente dos trabalhadores cuidadores.
O dia seguinte ou os próximos passos
Importa agora que a conclusão do processo da reforma, com a votação final e a fixação definitiva do texto das normas aprovadas, confirme o que foi votado, sem mais acidentes de percurso, nem recuos.
Depois, impõe-se que o mundo do trabalho organizado, as forças de esquerda e o Governo encarem, cada um na sua circunstância, a pesada e responsável agenda que é preciso cumprir para concretizar o edifício desta reforma das leis laborais e as suas implicações.
A lei dos TVDE terá que ser alterada e adaptada. Além do importante avanço na regulação do trabalho nas plataformas digitais vai ser certamente necessário produzir uma regulamentação específica. Os serviços da Administração Pública, em especial os ligados ao trabalho, como é o caso da ACT, da DGERT, do GEP, da Segurança Social e da AT, precisarão de adaptar a sua acção e recursos às novas exigências legais. Os novos instrumentos de controlo do uso e abuso da caducidade terão de ser preparados, de modo a suportarem o embate do número expressivo de denúncias patronais de convenções colectivas de trabalho que marcam passo à espera do próximo fim da moratória. E será certamente necessário vencer, pela pressão da acção colectiva, muita inércia e rotina e muita resistência patronal à concretização do que são avanços laborais nas normas aprovadas.
Finalmente, e não menos importante: as organizações sindicais e as CT, com a responsabilidade aumentada de representação de novas categorias de trabalhadores e com as mudanças legislativas aprovadas, carecem certamente de se prepararem com uma indispensável análise cuidadosa das implicações desta reforma laboral nas relações de trabalho, na sua actividade e orientação futuras. Sem desistirmos de exigir e ir mais além.
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