A 4 de Abril de 1949, Portugal juntava-se a outros 11 estados e tornava-se membro fundador da NATO (North Atlantic Treaty Organization). Como não poderia ser de outra forma, o tratado fundador foi assinado em Washington, o pólo geopolítico e militar que na ressaca da II Guerra Mundial media forças com Moscovo. No preâmbulo deste documento registava-se, para memória futura, que os países signatários estavam determinados na salvaguarda da liberdade, suportada nos princípios da democracia1. Naqueles anos, Portugal vivia há mais de duas décadas debaixo de um regime autoritário e os princípios da liberdade e da democracia apodreciam no Tarrafal. A mesma receita sofística estendeu-se a outros membros como a Grécia e a Turquia, que também atravessaram períodos de ditadura militar, e que se juntaram à NATO mais tarde.
As contradições da Aliança Atlântica surgiram no primeiro minuto da sua existência e perduram até hoje. No caso português, o grande trunfo operacional chamado base aérea das Lajes, nos Açores, um imenso porta-aviões no meio do atlântico Norte, a meio caminho entre os E.U.A. e a Europa, foi o suficiente para superar qualquer dúvida que pudesse existir sobre o regime salazarista relativamente ao seu compromisso com a liberdade e a democracia. A decisão de adesão por parte de Oliveira Salazar não foi imediata e originou alguma relutância2, pois quebrava a tradição de isolacionismo e de neutralidade do regime e abria novos compromissos diplomáticos com estados que tinham concepções democráticas demasiado avançadas, mas a pressão norte-americana para uma tomada de posição ideológica marcadamente anti-comunista sob um contexto de forte bipolarização, acabou por precipitar a decisão.
Em Abril de 1974, Portugal saía desse regime totalitário com mais de 40 anos e a revolução colocava como uma das principais exigências o fim da guerra em África. O povo e uma parte significativa das forças armadas, soldados e oficiais mais novos, não aceitavam a guerra e nas ruas gritava-se “nem mais um só soldado para as colónias”. Nos meses que se seguiram à revolução, que reivindicava claramente o socialismo, sendo por isso uma ameaça dentro da zona de influência da aliança militar, os EUA, através dos serviços secretos, mantiveram as forças da NATO em prontidão para intervir caso a deriva à esquerda se consolidasse. Esta tensão foi imediatamente aliviada por Mário Soares, na conferência da NATO no Canadá em Junho de 1974, com um compromisso de fidelidade à organização e de manutenção dos acordos anteriores em matéria de política externa. Por outro lado, ou do mesmo lado, o PCP, apesar do seu discurso anti-imperialista contra os EUA e o seu juramento com o Pacto de Varsóvia, nunca defendeu, e continua a não defender, claramente a saída de Portugal da Aliança Atlântica. Assim, a tranquilidade instala-se e o 25 de Novembro encerra o caso.
O muro caiu e a NATO seguiu
A NATO, até ao início dos anos 90, serviu como contra-peso à aliança militar sediada em Moscovo e que se acantonou atrás da Cortina de Ferro. Os equilíbrios da Guerra Fria foram feitos com base nestas duas alianças lideradas pelas duas potências imperialistas. Foram quatro décadas de corrida ao armamento, de investimento público sem limite no complexo militar industrial, todo ele ultra-concentrado em poucas empresas privadas, e de desenvolvimento da capacidade nuclear com fins militares.
A meio dos anos 90, pela primeira vez na sua história, a NATO intervém militarmente, despoletando a Guerra nos Balcãs sob o comando de Javier Solana. Foi a primeira vez que um território Europeu (Belgrado) voltou a ser bombardeado desde o final da II Guerra Mundial.
Portugal participou com os seus aviões e pilotos da Força Aérea, tendo ficado para a história a polémica com as bombas de urânio empobrecido que foram descarregadas naquela zona da Europa. Se alguma oposição interna havia, que se manifestava nas ruas contra Milosevic, ela desapareceu após os bombardeamentos. Escolas, centrais eléctricas, pontes, estradas, as infra-estruturas fundamentais de um país, foram reduzidas a escombros, obrigando a Jugoslávia a recuar 50 anos no seu desenvolvimento e a população a unir-se em torno do déspota. Esta foi a forma que os EUA, com o seu braço-armado, encontraram para garantir o controlo geoestratégico de uma zona tão bem posicionada entre a Europa e o Médio Oriente.
Em 2001, o bloco militar atlântico invoca pela primeira vez o artigo 5º, de defesa dos estados aliados, e justifica a intervenção no Afeganistão. Surge assim o novo inimigo: o terrorismo. O novo elemento agregador da Aliança e da nova ordem mundial dirigida pelos E.U.A. e que justifica a política da guerra infinita de George W. Bush.
Com a chegada ao poder de Barack Obama, em 2009, o discurso político sofre uma viragem. Mas esta alteração centra-se por um lado no plano retórico, oposto ao discurso jihadista e ultra-radical dos neo-cons, e por outro no plano estratégico, reorientado para o multilateralismo e para a constituição de parcerias. Esta inflexão de rumo, que no entanto mantém o mesmo destino, visto que Obama acolhe na sua administração Robert Gates, o secretário de estado da defesa de G.W.Bush, é premiada 9 meses depois com uma atribuição do prémio Nobel da Paz. Mas a breve ilusão pacifista desvanece-se logo depois com a declaração de envio de um reforço de 30 mil soldados para o Afeganistão e com a aprovação do maior orçamento de defesa da história dos EUA, 533,7 mil milhões de dólares, que já foi alvo de novo reforço de 130 mil milhões3. O Afeganistão tornou-se o novo atoleiro de guerra dos EUA e da Nato, e Portugal está igualmente comprometido neste desastre. O orçamento do Ministério da Defesa português para 2010 foi de 2.200 milhões de euros, quase dez vezes superior ao consignado para a Cultura, e com um incremento em relação ao ano anterior de 15%. A presença de Portugal na NATO e nos cenários de guerra justifica a loucura destes orçamentos e a obscenidade da compra de material militar em tempo de crise e de austeridade, como os dois submarinos no valor de 500 milhões de euros cada e todo o restante equipamento envolto na obscuridade da corrupção e do crime.
Cimeira de Lisboa e o novo conceito estratégico
A NATO está bloqueada no Afeganistão e quer reestruturar-se para os próximos dez anos, tal como o fez no final da década de 90. Pretende com a cimeira de Lisboa definir um novo conceito estratégico (NCE) que agilize e facilite a sua acção à luz da nova ordem mundial. O documento que será discutido e aprovado na cimeira foi coordenado pela ex-secretária de estado (1997-2001) de Bill Clinton, Madeleine Albright, que justificou os bombardeamentos da NATO nos Balcãs como uma “intervenção humanitária”, o que clarifica à partida grande parte do seu conteúdo. O NCE surge perante a urgente necessidade de justificar as alterações estratégicas da NATO que ocorreram após o fim da Guerra Fria e em particular desde a coroação dos EUA como potência imperial hegemónica. O objectivo é claro. Apoiar legalmente as actuais operações da NATO e permitir, justificando-as, novas intervenções militares em qualquer ponto do planeta. É a fundamentação ideológica e operacional para o controlo imperial. Este programa-agenda assume três eixos fundamentais para a reformulação dos princípios fundadores da organização:
- Intervir globalmente – o NCE pretende que os membros da NATO reconheçam as limitações do Tratado assinado em 1949, nomeadamente do Artigo 5, que refere que “um ataque armado contra um ou mais dos membros na Europa ou América do Norte deve ser considerado um ataque contra todos”, na medida em que os “perigos e ameaças” são agora mais abrangentes e que surgem dentro da zona do eixo Atlântico mas sobretudo fora dessa zona. A NATO tem de se preparar para intervir em qualquer ponto do globo. A intervenção no Afeganistão ou o patrulhamento de controlo anti-pirataria no Índico são a prática que exige esta fundamentação. Este é um ponto iniciado na revisão do conceito estratégico da NATO de 1999, mas agora aprofundado. A capacidade de intervenção é também reforçada com a instalação de um escudo anti-míssil no coração da Europa, que na prática é a reformulação do projecto inicialmente liderado pelos EUA, mas que agora passa a ser formalmente da responsabilidade da NATO com a transferência de custos para os orçamentos dos estados membros.
- Novas “ameaças” – a implosão da Cortina de Ferro e o desmembramento do bloco soviético impunham o fim da Aliança Atlântica, por isso o NCE adapta-se aos novos tempos e redefine os novos “perigos” que ameaçam o globo. O terrorismo, a criminalidade organizada internacionalmente, os ataques ao ambiente e as alterações climáticas, as armas de destruição em massa, a segurança alimentar e garantia de rotas comerciais, os ciber-ataques, a segurança energética, etc., passam a fazer parte da lista de justificações para uma operação militar ou para medidas de controlo social, como foi o Patriot Act nos EUA durante a era G. W. Bush. O abandono do processo de desarmamento nuclear é por isso definitivo, embora com um apelo ingénuo à sua continuidade, porque as novas ameaças assim o justificam. Todos estes temas encaixam na nova estratégia militar de controlo global e voltam a assentar que nem uma luva na operação do Afeganistão apresentada ao mundo como “a guerra contra o terror”.
- Multi-parcerias – a estratégia de potenciar a criação de parcerias com outras organizações, como a União Europeia, Nações Unidas ou a OSCE, ou países tradicionalmente fora da Aliança Atlântica como a Rússia, Ucrânia ou a Geórgia. No caso da UE chega a referir a necessidade de “reconhecer que o Tratado de Lisboa foi concebido, entre outros propósitos, para reforçar as capacidades militares e de comando da Europa” e que a NATO deve usar esta parceria abrangente de forma rentável (cost-effective). Dito de outra forma, a União Europeia investirá no sector militar e esses recursos devem ser partilhados com a NATO. Cria também uma nova figura, os “parceiros operacionais”, que são os países que não sendo da Nato, participam nas suas operações, o que na prática já existe, veja-se a Austrália (um dos maiores contingentes de tropas no Afeganistão), Nova Zelândia, Coreia do Sul ou até a própria China em acções de patrulhamento anti-pirataria. O documento defende também que os processos de decisão, tradicionalmente por consenso entre todos os 28 membros, devem ser agilizados e que devem ser atribuídos novos poderes ao secretário-geral ou aos chefes militares dos países membros. A necessidade de mandato da ONU para as operações militares é definitivamente afastada, tal como a revisão do conceito estratégico de 1999 já tinha avançado com essa possibilidade.
A cimeira de Lisboa não decidirá apenas sobre o futuro da Aliança Atlântica e dos seus membros. A nova reorganização mundial está também em cima da mesa, com grande relevância para os estados que não fazem parte NATO como a China e a Rússia, mas também o Brasil e a Índia. Os equilíbrios mundiais pós-crise financeira, e a recuperação económica dos principais actores falidos, jogam-se também, e decisivamente, na força militar e no controlo geoestratégico. Por isso reinventam a NATO para reinventar a guerra.