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Petro-Márquez, uma grande vitória eleitoral, mas ainda falta controlar o poder

A vitória eleitoral da fórmula presidencial Petro-Márquez nas recentes eleições presidenciais colombianas é um marco histórico, inimaginável até há pouco... mas a batalha ainda não está ganha. Artigo de Roberto Montoya
Gustavo Petro e Francia Márquez, presidente e vice-presidente eleitos da Colômbia com apoiantes, Colômbia, 19 de Carlos Ortega/Epa/Lusa
Gustavo Petro e Francia Márquez, presidente e vice-presidente eleitos da Colômbia com apoiantes, Colômbia, 19 de Carlos Ortega/Epa/Lusa

Foi um grande triunfo das e dos de baixo, que normalmente não contam, de quem após o resultado da primeira volta compreendeu que uma aliança na segunda volta de diferentes correntes da direita, que se tinham apresentado inicialmente separadas, podia impedir, como em 2018, a chegada de um governo de esquerda à Colômbia.

O colapso do uribismo, expressão máxima da conjunção dos interesses de latifundiários e grandes empresários sem escrúpulos, multinacionais, forças armadas, poderosos grupos narco-paramilitares e grupos mediáticos, não garantia por si só a derrota da direita.

A matemática permitia prever um claro triunfo da direita se conseguisse unir-se pontualmente em torno de um candidato tão peculiar como Hernández, que também foi capaz de recolher, graças ao seu discurso simplório e populista e evitando o confronto de programas, o voto de setores populares preconceituosos e temerosos, com Petro. Hernández, abençoado por Biden - apesar da semelhança deste candidato com Trump - aparecia assim como o candidato antiPetro ideal em eleições tão polarizadas.

Tal como aconteceu no Chile nas eleições de dezembro passado, os desacreditados partidos políticos tradicionais foram caindo pelo caminho e na reta final chegaram em troca personagens inesperadas ultradireitistas para enfrentar as candidaturas de esquerda, José Antonio Kast no Chile e Rodolfo Hernández na Colômbia. Embora com perfis muito diferentes, os dois tinham em comum certas caraterísticas importantes: populistas na forma, neoliberais na economia, ultradireitistas ideologicamente, como Javier Milei agora na Argentina, o economista e deputado com quem a extrema-direita conseguiu entrar pela primeira vez no Parlamento desde a última ditadura militar.

O grotesco magnata septuagenário Rodolfo Hernández é tão patético, tão pouco crível, como eram outros multimilionários conhecidos que saltaram para o mundo da política, como Silvio Berlusconi ou Donald Trump. No entanto, aquela situação patética não impediu nem Berlusconi nem Trump chegassem ao poder na Itália e nos EUA, respetivamente, nem impediu Jair Bolsonaro no Brasil.

O fenómeno Hernández foi fabricado em poucos meses e as diferentes famílias da direita agarraram-se a ele, após os resultados da primeira volta, numa tentativa desesperada para conservar a ordem estabelecida, a ordem de sempre.

Uma mobilização dos de baixo que derrubou as previsões

As e os de baixo, que normalmente não contam, entenderam o perigo e mobilizaram-se desde os lugares mais recônditos da Colômbia. Não é exagerado dizer que muitos caminharam ou andaram a cavalo durante dias, porque há testemunhos e vídeos suficientes disso; atravessaram montanhas e rios para chegar a assembleias de voto distantes para votar. Eles entenderam o que estava em jogo.

O programa do Pacto Histórico não foi tudo, nem o carisma e a experiência política de Petro, ex-alcaide [presidente da Câmara] da capital, alcaide de uma cidade de mais de sete milhões de habitantes como Bogotá.

A presença ao seu lado de uma lutadora social negra combativa e de longa trajetória como Francia Márquez, tão conhecida pela sua longa batalha a favor das minorias sociais, foi de vital importância para mobilizar camponeses e indígenas, as e os ambientalistas que todos os dias arriscam a vida na luta contra a deflorestação, contra as macrominas a céu aberto, defendendo a terra contra os abusos dos latifundiários e os seus grupos armados. Márquez conseguiu animar e mobilizar a comunidade LGBTI+ e também o movimento feminista. Com a sua inquestionável valentia e o seu historial, conseguiu transmitir esperança aos setores sociais que o discurso de Petro ainda não tinha conseguido convencer.

O fantasma do genocídio da União Patriótica

Em primeiro lugar, é preciso chegarem vivos a 7 de agosto, o dia marcado para Gustavo Petro e Francia Márquez assumirem os cargos de presidente e vice-presidente, respetivamente, e continuarem vivos depois disso.

Durante a última etapa da campanha eleitoral, Petro foi obrigado a anular várias reuniões públicas em locais controlados pelos narcotraficantes e paramilitares, tradicionais aliados do uribismo. Em outros atos teve que falar protegido por vidros à prova de bala. As ameaças de morte na Colômbia não devem ser tomadas de ânimo leve. Contratar um sicário é muito barato.

A Colômbia detém o recorde mundial de candidatos presidenciais assassinados a tiro: em 1987 Jaime Pardo Leal e em 1990 Bernardo Jaramillo Osa, os dois candidatos presidenciais pela União Patriótica. Nesse mesmo ano de 1990, foram assassinados também o candidato favorito, Luis Carlos Galán e Carlos Pizarro Leongómez, um dos principais líderes do M-19, a mesma guerrilha a que Gustavo Petro pertenceu quando era jovem. Em 1995, também foi assassinado o candidato presidencial Álvarez Gómez Hurtado, do MSN (Movimento de Salvação Nacional).

Para todos os militantes do Pacto Histórico, está presente mais do que nunca o fantasma da matança de membros da União Patriótica (UP), à qual pertenciam Pardo Leal e Jaramillo Osa. Este último foi assassinado por um sicário de 16 anos por ordem de Pablo Escobar. A UP foi uma coligação criada em 1984 pelas Forças Armadas Revolucionárias e pelo Exército Popular (FARC-EP), após os Acordos de Paz assinados por estes grupos armados com o Governo de Belisário Betancour.

Guerrilha e Governo assinaram então um armistício e a ilusão que isso provocou, em grande parte da população, fez com que muitos setores partidários da paz se juntassem à coligação e que, em 1986, conseguissem resultados eleitorais muito bons, entrando no Congresso dos Deputados e no Senado, obtendo 335 mandatos. Pardo Leal obteve 10 por cento dos votos. Quando essas eleições foram realizadas, cerca de 300 militantes da UP já tinham sido assassinados. Tinha conseguido romper pela primeira vez com o bipartidarismo no país, o que tinha feito disparar todos os alarmes nos poderosos da Colômbia e dos Estados Unidos.

Após esses resultados eleitorais, os assassinatos intensificaram-se ainda mais, os militantes e simpatizantes da União Patriótica tornaram-se alvos a abater por parte dos grupos narco-paramilitares de extrema direita, em cumplicidade com as forças de segurança e as forças políticas conservadoras. A cabeça de qualquer um dos seus membros valia muitos dólares. Os assassinatos de presidentes da Câmara, vereadores e os massacres de dezenas de ativistas ou de simples eleitores da UP em aldeias rurais intensificaram-se ainda mais, após as eleições municipais de 1988, quando a UP se tornou a terceira força política na Colômbia.

De acordo com um relatório de 20221 da Jurisdição Especial para a Paz, além dos dois candidatos presidenciais assassinados, a UP teve 5.733 vítimas; foram 4.616 assassinatos e o resto desaparecimentos forçados. O Estado acabou por reconhecer muitos anos depois que a UP tinha sido objeto de um genocídio. A grande maioria dos crimes ficaram impunes.

As FARC-EP declararam o fim da trégua e começaram uma grande ofensiva contra os líderes dos clãs do narcotráfico e dos paramilitares que foram os protagonistas desses milhares de crimes e a guerra retomou a sua plena intensidade. A UP foi proibida, mas recuperou o seu estatuto legal anos mais tarde, quando o Estado reconheceu que a sua militância havia sido objeto de genocídio. Com uma composição diferente da original, hoje a União Patriótica faz parte da coligação do Pacto Histórico que deu a vitória eleitoral à fórmula Petro-Márquez.

Garantias que não se implantará o comunismo

A pressão política, económica e mediática é tão brutal que Petro foi obrigado a dar garantias, publicamente e perante um notário - sim, perante um notário -, que não pretende acabar com o capitalismo, que não quer implantar o comunismo nem seguir o modelo cubano ou o modelo venezuelano, nem expropriar propriedades massivamente, nem acabar com a propriedade privada.

"Não adoramos o capitalismo, mas primeiro temos que superar a pré-modernidade", repete Petro. Ele está consciente de que a coligação progressista que lidera juntamente com Francia Márquez obteve 50,4% dos votos, um resultado muito bom, mas que Hernández obteve 47,3%. A Colômbia está hoje dividida em dois grandes blocos e não será fácil tecer alianças e conquistar uma maioria suficiente no Congresso para poder realizar importantes reformas económicas, sociais e políticas. Petro já sofreu na própria carne a pressão dos poderes fáticos quando foi alcaide de Bogotá (2012-2015) e a Câmara Municipal da cidade o impediu de realizar várias das suas reformas mais importantes.

Num país com 39% de pobreza extrema, o maior produtor mundial de cocaína e um dos mais violentos do mundo, com uma infinidade de grupos armados, narcotraficantes, paramilitares, facções dissidentes das FARC e com o ELN ainda sem desmobilizar – mas já estendeu a mão ao novo governo - nada será fácil.

Especialmente quando a Colômbia é há décadas para os EUA uma plataforma fundamental para operações regionais numa grande área da América Latina e do Caribe. As suas poderosas forças armadas foram treinadas e armadas pelos EUA. A Colômbia alberga oito importantes bases militares dos Estados Unidos e é o único país da região que conseguiu o título de membro observador da NATO.

Os comandantes militares e policiais odeiam Petro e Márquez e tudo o que eles representam; são forças armadas que há décadas praticam uma brutal guerra suja, que incluiu, além da corrupção, tortura e execuções sumárias, práticas como a dos falsos positivos2 - o assassinato de mais de 6.000 jovens camponeses indígenas que foram mortos apenas para fazê-los passar por guerrilheiros mortos em combate e, assim, aumentar estatisticamente os êxitos militares do uribismo e cobrar recompensas económicas e promoções por isso. Não será fácil para Petro e Márquez renovar as cúpulas militar e policial e mudar radicalmente os seus objetivos e a forma de atuar, nem será fácil nomear um novo ministro da Defesa e novos cargos policiais e militares para impulsionar essa mudança.

A guerra suja mediática que Petro e Márquez têm tido que suportar nos últimos meses, com notícias disparatadas e montagens de áudios e vídeos, contaminou tanto a campanha que os levou a atuar defensivamente, tentando tranquilizar uns e outros, tentando, como também Boric fez no Chile, distanciar-se dos governos da Venezuela, da Nicarágua e de Cuba.

Apaziguar os mercados parece ser um dos objetivos de curto prazo de Petro, como o é para Boric. Mas como apaziguar alguns mercados, alguns poderosos empresários agroexportadores e da indústria petrolífera e mineira com um programa de governo que propõe acabar com o extrativismo, descarbonizar o país, mudar radicalmente a política fiscal e a distribuição da riqueza ou ter uma Universidade livre?

Petro não propõe abrir um processo constituinte, como Chávez, Correa ou Morales fizeram nos anos 2000, nem nacionalizar os hidrocarbonetos como fez Morales, nem expropriar milhões de hectares improdutivos, como fez Chávez, mas ainda assim, o seu programa é apresentado pela direita nacional e internacional como um perigo para a democracia e para o sistema.

Petro e Márquez herdarão uma avultada dívida pública, uma das maiores da história da Colômbia, uma aguda desigualdade social; uma situação de emergência social que exige medidas rápidas de curto prazo, mas também será necessário a médio e longo prazo empreender uma grande reforma estrutural, uma reforma do sistema, uma mudança de modelo que se apresenta como uma tarefa titânica.

O Pacto Histórico é uma coligação com muitas almas que precisará de se consolidar para enfrentar uma oposição hoje dividida, mas ainda assim poderosa, e terá que manter e ampliar a sua base social, conquistar aquela parte do eleitorado intoxicado e preconceituoso que teme a mudança, que teme o comunismo, sobre o qual a direita, os poderes fáticos, continuarão a tentar apoiar-se, para impedir que Gustavo Petro e Francia Márquez consigam efetivamente controlar o poder real na Colômbia.

Artigo de Roberto Montoya, jornalista e escritor, membro do Conselho Consultivo de Viento Sur, publicado em Viento Sur. Tradução para português de Carlos Santos para esquerda.net

Notas:

1 Caso 06 – Victimización de miembros de la Unión Patriótica, Jurisdição Especial para a Paz, abril 2022, disponível em https://www.jep.gov.co/especiales1/macrocasos/06.html

(...)

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