Está aqui
Parentalidade e Masculinidades Cuidadoras

Em 2009, o Decreto-Lei nº 91/2009, de 9 de Abril, introduziu a possibilidade de um mês de bónus no tempo total de licença parental inicial, em caso de partilha da licença entre a mãe e o pai. Para além de revogar as anteriores licenças por maternidade e por paternidade, substituindo-as por uma terminologia neutra do ponto de vista do género – licença parental (licença parental inicial exclusiva da mãe; licença parental inicial exclusiva do pai e licença parental inicial), a nova legislação veio incentivar a participação do pai a solo nos cuidados ao filho pequeno após o regresso da mãe ao trabalho (licença parental inicial partilhada). A intenção é que cada vez mais homens passem pela experiência e assumam como sua a tarefa de cuidar dos filhos no quotidiano, numa lógica de corresponsabilidade e autonomia. Neste sentido, a licença parental inicial passa a ter a bonificação de um mês, bem remunerado, sempre que a mãe e o pai partilhem, pelo menos, 30 dias de licença (seguidos ou interpolados).
Um novo ideal de paternidade que contrasta com a visão do pai herdeira do passado; o pai como figura secundária ou mero ajudante materno
A adopção e aplicação em Portugal de uma política de licenças cada vez mais inclusiva do pai é uma medida de promoção da igualdade de género e da conciliação família-trabalho. A partir dos anos 90 do século XX tornou-se evidente que a conquista da igualdade por parte das mulheres exige o envolvimento dos homens. Neste sentido, não basta que as mulheres prossigam os seus estudos e estejam representadas no mercado de trabalho em condições análogas às dos homens, é necessário trazer os homens para o espaço privado da família, fazendo-os partilhar com as mulheres as tarefas domésticas e os cuidados aos filhos. O objectivo é evitar que o ónus das responsabilidades familiares e da conciliação família-trabalho recaia sempre sobre as mulheres, dificultando a sua plena realização profissional e pessoal. Para além disso, ao incentivar a partilha da licença parental inicial através da introdução de um bónus, a nova lei veio promover a paternidade envolvida, cuidadora, autónoma e corresponsável. Um novo ideal de paternidade que contrasta com a visão do pai herdeira do passado; o pai como figura secundária ou mero ajudante materno.
A aspiração à paternidade cuidadora está assim no epicentro das novas masculinidades - as masculinidades cuidadoras. Estas podem ser vistas como identidades masculinas que excluem a dominação e abraçam as dimensões afectivas, relacionais e emocionais associadas ao cuidado (Elliott, 2016). Trata-se de uma forma de resistência à masculinidade hegemónica (Connell, 1995) e de promoção da igualdade de género que surge na vida dos homens sempre que estes assumem no quotidiano práticas de cuidar (Scambor, Wojnicka and Bergmmann, 2013). Falamos em masculinidades cuidadoras no plural porque o cuidado compreende áreas tão distintas como o cuidar familiar (ou seja, o cuidar dos outros que nos são próximos – filhos, pais, irmãos, cônjuge, etc.), o cuidar de si próprio ou auto-cuidado (cuidados de saúde; prática de exercício físico; alimentação saudável, etc.), e o cuidar profissional (sempre que os homens desempenham profissões ligadas ao cuidar como é o caso dos enfermeiros e dos educadores pré-escolares).
E qual tem sido a adesão dos portugueses à partilha da licença parental inicial entre a mãe e o pai? De acordo com os dados da Segurança Social, apresentados no último relatório do Observatório das Famílias e das Políticas de Família (OFAP), a partilha da licença parental inicial atingiu, em 2017, 34% do total de subsídios parentais iniciais atribuídos e a maioria dos casais escolhe o período mais longo da licença (180 dias) (Leitão, 2019). Trata-se de um resultado bastante expressivo tendo em conta o carácter facultativo da medida. Para além disso, os resultados do ISSP 2012 (Ramos, Atalaia e Cunha, 2016) evidenciam que o uso das licenças parentais por parte do pai tem efeitos positivos (com níveis de concordância superiores a 80%) a vários níveis: na relação da criança com o pai; no bem-estar da criança; na relação do casal; na igualdade entre homens e mulheres na vida familiar; na manutenção do emprego da mãe; no bem-estar do pai. E são sobretudo os indivíduos mais jovens e os mais qualificados que mais concordam com a protecção e promoção de uma paternidade precocemente envolvida. Menos positivo é o efeito que o gozo das licenças parentais tem na forma como os outros homens vêem o pai (nível de concordância igual a 55,5%) e na manutenção do emprego do pai (nível de concordância igual a 48,4%). Os inquiridos revelaram assim uma preocupação com a percepção que os outros, em particular, os empregadores, têm da participação dos homens na vida familiar, o que remete para a ausência de uma cultura organizacional na generalidade das empresas portuguesas de apoio ao envolvimento dos homens na vida familiar.
De facto, persiste na sociedade portuguesa uma visão do que é ser mulher e do que é ser homem alicerçada em estereótipos de género, que dificultam a afirmação das masculinidades cuidadoras e, ao mesmo tempo, remetem para a centralidade da figura materna nos cuidados aos filhos, sobretudo quando estes são pequenos. Esta visão de que compete à mãe, enquanto mulher, a tarefa de cuidar dos filhos, remetendo o pai para um lugar secundário, de apoio à parentalidade materna, constitui um dos principais obstáculos à consolidação das masculinidades cuidadoras em Portugal (Cunha, Rodrigues, Correia, Atalaia e Wall, 2018), com consequências a diversos níveis. Nas famílias e nas escolas, por via da socialização dos rapazes para as formas de masculinidade dominantes em detrimento do aprendizado das competências cuidadoras.
o uso das licenças parentais por parte do pai tem efeitos positivos a vários níveis: na relação da criança com o pai, no bem-estar da criança, na relação do casal, na igualdade entre homens e mulheres na vida familiar, na manutenção do emprego da mãe e no bem-estar do pai
No mercado de trabalho, por via do ideal de trabalhador totalmente comprometido com o trabalho e sem responsabilidades familiares, incompatível com as novas formas de masculinidade. E nas políticas públicas, por via da prossecução de medidas que resistem em reconhecer os homens como cuidadores de primeira linha. Com efeito, embora inovador, o actual desenho da política de licenças parentais em vigor entre nós continua a privilegiar a mãe, em detrimento do pai, atribuindo-lhe mais tempo de licença parental.
Não obstante, os resultados de um estudo comparativo entre 18 países da União Europeia (Cunha e Atalaia, 2019) sobre o número de horas semanais gastas por mulheres e homens (18-64 anos de idade) a viverem em casal com, pelo menos, um dependente, revelaram que as mulheres portuguesas gastam em média 18,8 horas semanais a cuidar de familiares (média UE18 = 31,6 horas), enquanto os homens gastam em média 16,4 horas semanais (média UE18 = 17,1 horas), verificando-se uma assimetria de 2,4 horas a desfavor das mulheres, o valor mais baixo no conjunto dos países analisados (média UE18 M-H = 14,5 horas). Pelo contrário, a análise do número de horas semanais despendidas em tarefas domésticas revelou que as mulheres portuguesas despendem, em média, mais 8,9 horas semanais do que os homens em tarefas domésticas (média UE18 M-H = 9,3 horas), um valor em linha com a média dos países analisados. Isto significa que, em Portugal, a entrada dos homens na vida familiar tem-se realizado, sobretudo, por via da sua participação nos cuidados familiares, onde se incluem os cuidados aos filhos, e não através da partilha das tarefas domésticas entre os membros do casal.
Com efeito, Portugal destaca-se dos seus congéneres da Europa do sul por apresentar um padrão de alocação de tempo ao trabalho pago das mulheres próximo dos países escandinavos, como é o caso da Suécia, ao mesmo tempo que apresenta do ponto de vista das tarefas domésticas uma aproximação cultural face aos países da Europa do sul e do leste, apoiada num padrão de domesticidade feminina (Aboim, 2010). O facto de, hoje em dia, cada vez mais homens, sobretudo os mais jovens e também os mais qualificados, participarem na vida familiar através dos cuidados aos filhos, constitui um sinal inequívoco do impacto das medidas de política adoptadas em matéria de igualdade de género e conciliação família-trabalho no comportamento dos portugueses.
Susana Atalaia é socióloga, investigadora auxiliar no ICS-ULisboa e membro do Observatório das Famílias e das Políticas de Família (OFAP).
Referências
Aboim, S. (2010). Género, família e mudança em Portugal. In Wall, K. ; Aboim, S. & Cunha, V. (Eds.), A Vida Familiar no Masculino: Negociando Velhas e Novas Masculinidades (pp. 39-66). Lisboa: Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego.
Connell, R. W. (1995). Masculinities. Sydney: Allen & Unwin.
Cunha, V., Atalaia, S. (2019). The gender(ed) division of labour in Europe: patterns of practices in 18 EU countries. Sociologia, problemas e práticas, 90, 113-137.
Cunha, V., Rodrigues, L. B., Correia, R., Atalaia, S., Wall, K. (2018).Why are caring masculinities so difficult to achieve? Reflections on men and gender equality in Portugal. In S. Aboim, P. Granjo, A. Ramos (Eds.), Changing societies: legacies and challenges. Vol. 1. Ambiguous inclusions: inside out, outside in, pp. 303-331. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
Elliott, K. (2016). Caring masculinites: theorizing an emerging concept. Men and Masculinities, 19 (3): 240-259.
Leitão, M. (2019).Relatório 2016-2017. Principais desenvolvimentos das políticas de família em Portugal. Relatório do Observatório das Famílias e das Políticas de Família. Lisboa: Observatórios do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
Ramos, V., Atalaia, S., Cunha, V. (2016). Vida familiar e papéis de género: atitudes dos portugueses em 2014 (Research Brief 2016). OFAP - Observatório das Famílias e das Políticas de Família / ICS-ULisboa.
Scambor, E., Wojnicka, K., Bergmmann, N. (Eds.) (2013). The Role of Men in Gender Equality. European Strategies & Insights (study prepared for the European Commission, DG Justice – Unit D2 Gender Equality). Luxembourg: Publications Office of the European Union.
Adicionar novo comentário