"Os feminismos precisam de uma memória. Construir essa memória, transmitir uma história dos feminismos é um desafio político e historiográfico".
Foi desta forma que a historiadora Anne Cova terminou a sua comunicação na sessão de abertura do seminário evocativo dos 80 anos do I Congresso Feminista e da Educação, que se realizou de 4 a 6 de Maio de 2004 em Lisboa.
O significado histórico deste seminário merece, todavia, uma especial reflexão.
Artigo de Manuela Tavares, publicado na Revista História n.º 70.
1. CONSTRUIR UMA MEMÓRIA HISTÓRICA
"Os feminismos precisam de uma memória. Construir essa memória, transmitir uma história dos feminismos é um desafio político e historiográfico".
Foi desta forma que a historiadora Anne Cova terminou a sua comunicação na sessão de abertura do seminário evocativo dos 80 anos do I Congresso Feminista e da Educação, que se realizou de 4 a 6 de Maio de 2004 em Lisboa e sobre o qual a revista publicou uma síntese no seu número de Junho último.
O significado histórico deste seminário merece, todavia, uma especial reflexão. Pelas comunicações realizadas, pelas características plurais da iniciativa, pelo facto de termos tido connosco, pela última vez, o referencial de mulher e de figura política que foi Maria de Lourdes Pintasilgo, este seminário evocativo ficará na memória de quem nele participou, como mais um marco histórico dos feminismos em Portugal.
1.1- Anos 20 do século passado - "anos de ouro dos feminismos"
Segundo João Gomes Esteves, na comunicação proferida no seminário, "a década de 20 é a época de ouro dos feminismos em Portugal", por diversos motivos: a consolidação do CNMP (Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas) e a sua maior projecção internacional; a adesão de uma nova geração de feministas. Os anos vinte teriam marcado a ruptura com a década anterior do feminismo republicano pelo facto de terem surgido novos rostos dos feminismos como foi o caso de Elina Guimarães um nome incontestável do feminismo português, capaz de fazer a ponte entre várias gerações e matizes de feminismos. É também nesta década que surgem outros três congressos - os congressos abolicionistas de 1926 e de 1929 e o segundo congresso feminista em 1928. Foi o êxito do congresso de 1924 que permitiu avançar com estas iniciativas.
Organizado pelo Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, "fundado em 1914, por Adelaide Cabete, como uma secção portuguesa do International Council of Women",[2]aquele Congresso teve um enorme impacto a nível nacional e internacional. "Durante a semana em que decorreram os trabalhos, o Conselho recebeu mensagens de adesão e apoio de destacados organismos e figuras públicas dos meios intelectuais e políticos"[3].A sua grande amplitude expressou-se pela adesão de organizações e figuras destacadas do feminismo mundial[4]e pelo grande leque de comunicações nas áreas do feminismo e da educação. Ao decidir realizar aquele Congresso, no mesmo ano do seu 10º aniversário, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas marcou uma etapa importante na história do feminismo português, promovendo, pela primeira vez, em Portugal, uma realização que visava "discutir e propagar as ideias feministas"[5]O feminismo era então assumido na palavra e na acção das primeiras mulheres que lutaram, nas primeiras décadas do século XX, pelos direitos das mulheres. De forma corajosa, desafiando o preconceito e o conservadorismo, como se destaca de uma das frases da intervenção de abertura de Adelaide Cabete: "Àqueles timoratos que perguntam onde irá o Feminismo parar responder-lhes-emos: o Feminismo terminará onde acabam todas as ideias de Progresso e toda a esperança generosa, terminará onde acabam todas as aspirações justas"[6].
Segundo Zília Osório de Castro,[7]a feminista Aurora de Castro Gouveia na comunicação ao congresso afirmava que o feminismo era um aspecto essencial da democracia. A dignificação da mulher passava pela sua participação política e social, pelo reconhecimento dos seus direitos, entre os quais o direito ao voto. Ainda, sobre esta mesma comunicação, Helena Costa Araújo[8]refere que Aurora de Castro Gouveia aborda o feminismo como essencial para uma república democrática, sendo que esta democracia não podia ser apenas construída ao nível do Estado, mas também no local de trabalho e na família, argumento próximo das análises contemporâneas sobre as questões da cidadania.
No primeiro congresso feminista e da educação, segundo o trabalho de Albérico Afonso,[9]a comissão organizadora era constituída por dois homens e dez mulheres, destacando-se os nomes de Adelaide Cabete, Aurora de Castro Gouveia, Laura Corte Real, Maria O'Neill e Deolinda Lopes Vieira. Foram apresentadas 25 teses sobre diversas áreas temáticas, destacando-se as seguintes: reivindicações políticas da mulher portuguesa; a mulher na administração dos municípios; a nacionalidade da mulher casada; a situação da mulher casada nas relações matrimoniais; a mulher como educadora; educação sexual e influência dos espectáculos públicos na educação; assistência educativa à infância desvalida; a influência da mulher na extinção de mendicidade; assistência e trabalho; protecção à mulher grávida; abolicionismo; luta anti-alcoólica; a mulher naturista. O congresso mereceu referências na imprensa da época em jornais como o Diário de Lisboa, o Rebate, A Batalha e o Século tendo este último realizado uma cobertura diária das sessões.
1.2- Evocadas figuras históricas dos feminismos: Adelaide Cabete, Maria Veleda, Maria Lamas e Elina Guimarães
O seminário evocou algumas mulheres com papel histórico nos feminismos em Portugal.
Adelaide Cabete (1867-1935), principal promotora do I Congresso Feminista e da Educação e que, no dizer de Joaquim Eduardo,[10]foi, para além de médica, uma professora feminista, tendo proferido o discurso inaugural do congresso e apresentado três teses. Mulher de forte personalidade, estilo simples, foi ainda republicana e maçom, tendo representado as mulheres portuguesas em congressos internacionais, nomeadamente no Congresso Internacional Feminista realizado em Roma, em 1923 e no Congresso Feminista de Washington em 1925. Era presidente do CNMP e sua fundadora em 1914 e, segundo Elina Guimarães, "foi das primeiras mulheres a declarar-se publicamente feminista, numa sociedade onde as atitudes desassombradas são raras".[11]
Maria Veleda (1871-1955) foi outra das mulheres evocadas por via da comunicação de Natividade Monteiro[12] que a apresentou como "uma personalidade multifacetada, emergindo no espaço público como escritora, educadora, feminista, republicana, livre pensadora e espiritualista". A grande tenacidade de Maria Veleda foi referida nos seguintes termos: como uma mulher que "saiu da penumbra da domesticidade, enfrentou a luz do palco, quebrou o silêncio, revelou-se ao público, exibiu a sua singularidade e gerou conflitos, porque falava, escrevia e actuava de forma diferente, destoando das normas instituídas. Em consonância com outras mulheres, reivindicou a sua inclusão na comunidade nacional, como cidadã de pleno direito, a fim de poder participar mais activamente nas decisões políticas do país. Apesar dos poderes constituídos não concederem às mulheres a igualdade de direitos, Maria Veleda ousou exercer efectivamente a cidadania, tentando ultrapassar as limitações impostas ao seu sexo".[13]
Maria Lamas (1893-1983) cujo percurso de vida como "jornalista, feminista e intelectual portuguesa do século XX" foi apresentado por Maria Antónia Fiadeiro[14], exerceu a sua profissão de jornalista durante mais de vinte e cinco anos (1925-1950). Maria Lamas destaca-se como uma mulher "que proclama, como as mulheres republicanas, a cidade pertence-nos, e consequentemente, exige todos os direitos cívicos decorrentes do estatuto de mulheres livres e independentes, que reivindica politicamente o pleno uso dos direitos e uma cidadania consciente e inteligente, exigindo a educação e profissão como condições fundadoras da sua dignidade".[15]Maria Lamas integrou em 1936 o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. Ainda, segundo Maria Antónia Fiadeiro, a sua luta pelos direitos e dignidade das mulheres traz a marca das modernas reivindicações da primeira metade do século XX, consubstanciando também uma das principais características do feminismo português - a reivindicação intelectual.
Elina Guimarães (1904-1991) foi evocada através de um filme sobre a sua vida, cedido pela RTP e apresentado por Fernanda Rilho e Maria Antónia Palla.[16]Destacada jurista e feminista portuguesa Elina Guimarães participou, desde muito jovem, em congressos internacionais de mulheres e interessou-se pela construção da memória histórica dos feminismos escrevendo em 1930 (Julho a Outubro) diversos artigos na revista Civilização sobre "A História do Feminismo em Portugal" e o "Movimento Feminista Universal", destacando a importância do feminismo como corrente de pensamento e acção.[17]Elina Guimarães cuja memória histórica deveria ser ainda mais valorizada no ano em que se completam os 100 anos do seu nascimento (1904-2004), foi uma figura interveniente e atenta às reivindicações feministas que percorreram todo o século XX.
1.3- Obstáculos à afirmação feminista e a oposição ao Estado Novo
Sobre os obstáculos à afirmação dos ideais feministas na primeira metade do século XX, uma interessante comunicação de Ana Vicente[18]corporizou o que designou por "antifeminismo activo" em três grandes grupos: os políticos e pensadores activos, incluindo neste grupo alguns republicanos e os construtores do Estado Novo; a Igreja como instituição, referindo aqui não apenas as encíclicas mas também textos escritos por católicos e católicas (a exemplo: as teses de 1943 da União Noelista Portuguesa ou as actas do I congresso nacional dos homens católicos em 1950, publicados pela Acção Católica Portuguesa); ainda, as próprias mulheres, muitas delas ligadas à aristocracia, numa grande resistência à mudança, procurando preservar o "status-quo". Classificando a qualidade do pensamento e acção feminista, quer de mulheres, quer de homens, na primeira metade do século XX, em tudo semelhante ao que se verificava em outros países europeus, é, contudo, na dimensão e força dos obstáculos colocados de forma muito activa à afirmação das mulheres, que a situação se torna bem distinta.
Caracterizando a ideologia salazarista como antifeminista, Irene Pimentel[19]mostrou a forma como o regime mascarou o seu interesse pelas mulheres em torno de uma valorização segundo a sua função biológica. A ideologia salazarista ao não se pautar pelos conceitos de Cidadania, Igualdade e Liberdade, incluiu o princípio da diferença sem igualdade em vez da igualdade na diferença. Esta diferença sem igualdade foi mascarada com uma aparente valorização social da função feminina, reservando às mulheres uma esfera própria de actuação privada e pública, sem atribuir ao espaço feminino um valor igual ao masculino. O voto feminino tinha sido decretado por Salazar não porque o considerasse um direito mas porque, se as mulheres votassem, segundo o entender do regime, Salazar ganharia sempre. "Ao criar, em 1936 e 1937, as organizações estatais de enquadramento das mulheres e da juventude, Obra das Mães pela Educação Nacional e Mocidade Portuguesa Feminina, o Estado Novo começou por permitir a actuação do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (CNMP, criado em 1914) e da Associação Feminina Portuguesa para a Paz (AFPP, criada em 1936), que lutavam pelo direito das mulheres ao voto, pela profissionalização e educação femininas, por remunerações equitativas do trabalho e pela protecção materno-infantil. Mas, quando considerou que estas duas organizações tinham alargado demasiado a sua esfera de influência e que as reivindicações feministas estavam relacionadas à luta pela democracia, o regime salazarista proibiu-as, respectivamente, em 1947 e 1952". [20]
Respondendo ao desafio que lhe tinha sido colocado no sentido de caracterizar a oposição ao Estado Novo em termos de uma oposição feminina ou feminista, Vanda Gorjão[21]concluiu que nem sempre a oposição feminina foi feminista, apesar de considerar ser possível identificar uma pluralidade de circunstâncias de aproximação e de contágio entre as duas, "resultantes da complexidade inerente ao estatuto de sujeitos políticos que as mulheres assumiram". Alertou, ainda, para não se cair na inadvertida associação da intervenção da oposição feminina com a consciência das discriminações sexuais. Nem sempre a intervenção das mulheres na oposição criticou ou alterou modelos convencionais e tradicionais. Destacando o papel das mulheres em comissões femininas de movimentos unitários contra o regime ou em campanhas presidenciais como a do general Norton de Matos, considerou que muitas das suas reivindicações se inseriam nos princípios do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas e que algumas mulheres dessas comissões se consideravam feministas, apesar do termo "feminismo" nunca aparecer nos documentos, pois este era visto como um "radicalismo contra os homens".
1.4- As Novas Cartas Portuguesas em mesa redonda
A mesa redonda com a presença de duas das autoras das Novas Cartas Portuguesas (Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa),[22]de Maria de Lourdes Pintasilgo, de Ana Luisa Amaral e Isabel Allegro de Magalhães despertou o maior interesse, apesar do cansaço e da hora tardia. Não sendo a primeira vez que surgia o debate em torno deste livro, considerado por muitos (as) como uma grande obra literária, inspiradora também dos próprios ideais feministas, esta iniciativa constituiu uma oportunidade única de sentar à mesma mesa mulheres de tão grande valor intelectual.
Em tom pouco formal, como acontece normalmente nas iniciativas das mulheres, a conversa foi longa e muito rica em termos de reflexão teórica sobre o papel da literatura e dos feminismos. Experiências cruzadas naquela noite, para memória futura. Sorrisos, cumplicidades várias quando se recordava a apreensão do livro em 1972, as idas à PIDE, as solidariedades tecidas entre as mulheres, em especial entre as autoras, que nunca revelaram a autoria individual dos textos, apesar das muitas pressões da polícia política nesse sentido. A satisfação por uma obra que ultrapassou fronteiras, nem sempre "bem amada" em Portugal, mas alvo de uma grande divulgação e solidariedade internacional testemunhada por Maria de Lourdes Pintasilgo a quem se deveu o prefácio de uma das edições, silenciado por omissão do editor na última edição. Perda imperdoável quando "a mulher das cidades futuras" não está mais connosco.
2. UM OLHAR SOBRE O FUTURO
2.1- "Para onde vai este barco" ?
Teresa Joaquim,[23]na abertura do segundo dia do seminário, numa comunicação sobre os feminismos e os estudos sobre as mulheres lançava o desafio "para onde vai este barco"? As feministas de 1924, nossas contemporâneas pelas questões que levantaram, buscaram caminhos tal como hoje, pelos problemas que se colocam para os quais ainda não se encontram resposta(s), as feministas de 2004 questionam-se. Tendo claro o 25 de Abril como marco na democratização da sociedade portuguesa, não deixam, no entanto, de se preocupar porque as mulheres passaram de "um regime de invisibilidade para um regime de visibilidade indiferente" nas palavras de Teresa Joaquim. Estes 30 anos de mudanças, de avanços e recuos, trouxeram protagonismo e visibilidade aos estudos sobre as mulheres. Teresa Joaquim referiu três momentos caracterizadores desta problemática: antes do 25 de Abril, com o marco que constituiu a publicação das "Novas Cartas Portuguesas" em 1972; a criação da Comissão da Condição Feminina após 1974 ("feminismo institucional"); a constituição de associações, o surgimento de revistas, de mestrados e de cursos versando a área dos estudos sobre as mulheres, na década de 90. Teresa Joaquim lançou ainda o desafio de se criarem redes para a divulgação do que se está a produzir assim como potenciar o que está a ser feito nas diferentes instituições e na comunidade científica, através da articulação dos centros existentes.[24] Considerando que nesta área de estudos tem sido feito um trabalho imenso, há que enfrentar os paradoxos dos percursos atribulados deste barco, com confiança e sem medo.
2.2- Desafios que se colocam
Os mecanismos de exclusão das mulheres no acesso às ciências deverão levar as feministas a fazer uma reflexão sobre a própria ciência. Porque ela não é inodora, nem incolor, nem assexuada. Sendo a ciência uma construção humana, há que questionar o modo como as mulheres estão nas ciências, as quais são construídas segundo modelos maioritariamente masculinos, segundo Clara Queiróz[25]na sua comunicação sobre Mulheres e Ciência.
Maria José Magalhães[26]salientou a emergência de um novo sujeito feminista, um sujeito plural e multifacetado e de uma agência das mulheres que não se restringe à acção individual, mas perspectiva a ligação aos movimentos sociais. Assumindo que a política não pode ser vista como algo que apenas diga respeito ao espaço público - porque o pessoal é político - a acção política numa perspectiva feminista tem de equacionar o público e o privado, o pessoal e o institucional, a incorporação da temporalidade, da corporeidade e da dessincronia do poder. Há que passar de uma solidariedade mecânica para uma solidariedade inclusiva. Se formos capazes de construir uma solidariedade que entenda as nossas diferenças, que dê espaço e reconhecimento à individualidade de cada uma de nós, a "sororidade em arco-íris", estaremos mais aptas a trabalhar em conjunto as causas comuns e as preocupações políticas que constituem a nossa agenda feminista.
Também do futuro nos falou Maria do Céu Cunha Rego, ex-secretária de Estado para a Igualdade, enfatizando as novas respostas do Direito para a concretização da Igualdade de Género: "O Direito que proclama a Igualdade tem que criar condições para que as duas metades da humanidade que garantem a continuação da espécie tenham o mesmo nível de participação nas decisões que moldam as suas vidas". Maria de Belém Roseira, ex-ministra da Igualdade desejou que o próximo seminário pudesse ter uma participação paritária de mulheres e homens, dado que a "agenda feminista" é um problema da humanidade. Helena Pinto, presidente da UMAR, reclamou mesmo a "abertura de uma porta para o futuro" nos caminhos do feminismo. "É excelente dizer que o feminismo é uma causa actual quando todas as evidências o demonstram. É preciso passá-lo para a prática política. O desafio está aí."(...) "Chegámos a um ponto em que a Igualdade enquanto referência não basta"(...) "Uma das questões que atravessou este seminário foi a necessidade de um sujeito político feminista, que não tem vocação partidária, mas tem obviamente vocação política." "Temos falado na elaboração de um manifesto. Será um grande desafio o trabalho conjunto em diversas áreas: da educação ao trabalho, dos direitos às artes, dos direitos sexuais ao desporto e à cidadania, que afirme pensamento e acção feminista".
2.3 Reflexões sobre o presente
Reflectindo sobre o presente, o seminário reuniu um conjunto de comunicações de grande diversidade temática.
A evolução dos níveis de feminização de algumas profissões informáticas durante a década de 1990 e suas consequências, foi o tema abordado por Virgínia Ferreira do CES da Universidade de Coimbra. A propósito das mudanças operadas na situação social das mulheres ao longo das últimas três décadas, a socióloga do ICS Sofia Aboim Inglez procurou reflectir sobre a construção do género, enquanto sistema de diferenças socialmente codificadas, focando a articulação entre vida pública e vida privada. A socióloga do centro de estudos sociais - CESIS, Heloísa Perista reflectiu também sobre a partilha do privado numa perspectiva de género, partindo do questionamento do próprio conceito de trabalho e da falta de visibilidade do trabalho não pago, assumido de forma diferente por mulheres e homens. Das des(igualdades) na área do trabalho e das alterações legislativas falaram a sindicalista Graciete Cruz e a jurista Vera Adão e Silva.
Dos feminismos e lesbianismo, das rupturas e continuidades na luta pela legalização do aborto em Portugal registem-se as comunicações da investigadora do CES Ana Cristina Santos e de Manuela Tavares. Falou-se ainda de corpos desapropriados na história como têm sido os das mulheres (Helena Neves[27]), dos corpos das atletas apropriados pelos media (Isabel Cruz[28]) e de sexualidades e feminismos (Ana Campos[29]), já no terceiro dia de trabalhos. A violência sobre as mulheres foi focada em termos de uma abordagem feminista dos maus tratos sobre as mulheres na comunicação de Isabel Dias, professora da Universidade do Porto e na comunicação colectiva da equipa técnica da UMAR que trabalha na área da violência.[30]
Sobre a educação para além da comunicação de Helena Costa Araújo na abertura do seminário, Teresa Pinto[31]assinalou a fragilidade do movimento feminista português em relação às questões da educação denunciando o facto da Lei de Bases da Educação, recentemente aprovada no parlamento, não contemplar a igualdade de género. Dos Açores, Fátima Sequeira Dias trouxe-nos "os percursos das mulheres em terras insulares".
2.4Feministas na viragem do século
"Autoras feministas na viragem do século" foi o título de uma outra mesa redonda moderada por Conceição Nogueira[32]e onde Ana Gabriela Macedo,[33]Fernanda Henriques,[34]João Oliveira[35]e Virgínia Ferreira[36]abordaram respectivamente as escritoras e investigadoras Donna Haraway, Elisabeth Badinter, Anne Fausto-Sterling e Iris Young.
Falando de novas cartografias do feminismo Ana Gabriela Macedo transportou-nos ao ciberfeminismo não identificado com um pós feminismo num sentido liberal redutor, mas de uma terceira vaga dos feminismos, irreverente retomando a premissa do território e do corpo. Projecto nómada que invade fronteiras e espaços. Falou-nos, ainda, da recusa da bipolarização essencialista e da conquista da polifonia das mulheres. Para Fernanda Henriques, Elisabeth Badinter é uma pensadora moderna, herdeira de Simone de Beauvoir que se posiciona pela igualdade entre os sexos e não pela diferença que ameaça a igualdade de direitos e pode conduzir ao primado da biologia. Filósofa, autora de várias obras onde procura sempre a descontrução da naturalização das mulheres, como é o caso de "Amor Incerto (1980)", publicou em 2003 um livro bastante polémico em França, "La Fausse Route". Crítica de Sylviane Agacinsky e da sua "Política dos sexos" posiciona-se contra a paridade e busca um universal possível onde o masculino seja pensado a partir do feminino e não o contrário. Desconstrói a ideia de que o patriarcado é natural, classificando-o como contingente. Chama a atenção para as consequências da crise económica e a pressão dos poderes para fazer regressar as mulheres a casa e opõe-se à visão americana da vitimização e fragilidade das mulheres. Alguns traços do pensamento da filósofa americana Iris Young foram apresentados por Virgínia Ferreira, realçando as cinco condições a partir das quais se pode falar de opressão: marginalização, exploração, ausência de poder, violência gratuita e imperialismo cultural, características que encontramos na situação vivida por muitas mulheres. Questionando o actual modelo redistributivo equaciona outras formas de injustiça que não decorrem só da desigual distribuição de bens materiais. A forma como as estruturas estão organizadas produzem decisões que geram injustiças. João Oliveira falou sobre o pensamento de Anne Fausto-Sterling como bióloga e feminista, que assumiu essa dupla pertença no próprio processo de construção do conhecimento científico ao centrar a sua reflexão sobre a forma como a biologia tem tratado, ao longo dos tempos, as diferenças entre mulheres e homens.
2.5 Em jeito de balanço
Coube a Lígia Amâncio[37]fazer o balanço do seminário com um olhar sobre o futuro. Intervenção feita com a reflexão e o sentimento de três dias vividos plenamente.
Da realização do seminário destacou, em primeiro lugar, a capacidade das feministas portuguesas em assumir a historicidade da sua trajectória, a liberdade e a autonomia do pensamento feminista que ficaram patentes nos três dias dos trabalhos, salientando, em seguida, a diversidade convergente para um projecto comum das pessoas, associações e instituições que participaram na organização do seminário.[38]
Quanto ao futuro, e retomando a ideia de um novo sujeito feminista, propôs que a ética subjacente a esse projecto assentasse na transmissão da memória, no reconhecimento, na reivindicação do saber e na solidariedade inclusiva.
2.6 Maria de Lourdes Pintasilgo - a última conversa
Foi seu desejo que a conferência anunciada para a parte final do seminário se transformasse numa conversa com a jornalista Anabela Mota Ribeiro. No primeiro dia do seminário também procurou estar connosco na mesa redonda sobre "As Novas Cartas Portuguesas", como se pressentisse que o tempo escasseava. E fê-lo com a maior das simpatias, com o seu sorriso aberto de menina e com aquele brilho nos olhos de quem se entusiasma pelas grandes causas. À autenticidade nas palavras juntava-se a grande clareza política, o gesto simples e afável.
Neste seu último gesto público de querer participar no seminário evocativo dos 80 anos do I Congresso Feminista e da Educação, Maria de Lourdes Pintasilgo mostrou a sua preocupação de mais de três décadas com a causa das mulheres. Por esse facto e pelas suas qualidades humanas, recebeu em 1990 o doutoramento honoris causa da Universidade de Louvaine-la-Neuve. Referencial para muitas mulheres portuguesas e de outras partes do mundo por onde andou Maria de Lourdes Pintasilgo foi a primeira e única mulher primeira-ministra (1979/80) em Portugal e ousou candidatar-se à Presidência da República em 1986. Mulher à frente do seu tempo, batia-se por grandes causas sem receios que a considerassem utópica. "Engenheira de utopias", assim lhe chamou Natália Correia. Pela nossa parte, queremos recordá-la como a cidadã cuja inteligência activa e lúcida foi um referencial para muitas feministas em Portugal. Nos "Novos Feminismos", escrito em 1980, Maria de Lourdes Pintasilgo afirmava: "O feminismo é a luta das mulheres pela sua autodeterminação; é o processo de libertação de uma cultura subjugada; é a conquista do espaço social e político onde ser mulher tenha lugar. Luta, libertação e conquista que significam necessariamente uma maior riqueza para tudo o que é humano".[39]Parafraseando Maria João Seixas,[40]sejamos credoras da sua voz e tentemos merecer o legado da sua herança.
Artigo Publicado na Revista História, nº 70, Outubro de 2004. Disponível no site da UMAR http://www.umarfeminismos.org/
[1] Mestra em estudos sobre as Mulheres pela Universidade Aberta; doutoranda na mesma área com o tema "Feminismos na segunda metade do século XX em Portugal".
[2] COVA, Anne, "O conceito de feminismo numa perspectiva histórica", in Estudos sobre as Mulheres, Universidade Aberta, CEMRI, 1998, pp.157-176.
[3] GORJÃO, Vanda, A reivindicação do voto no Programa do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas (1914-1947), Lisboa, CIDM; 1994, p.33.
[4] Conselho Nacional das Mulheres Francesas, Elena Arizmendi, fundadora da Liga Internacional das Mulheres Ibéricas e Hispano-Americanas, Anna Becker, secretária geral do Conselho Internacional das Mulheres, Círculo arenal de Barcelona, Conselho Nacional das Mulheres Belgas, Conselho Nacional das Mulheres da Suécia, entre muitos outros citados pelo estudo de Luisa Esmeralda Santos, publicado pelo Boletim nº 2 da CIDM, Abril, Junho de 1982.
[5] SANTOS, Luisa Esmeralda, "O primeiro Congresso Feminista em Portugal", in Boletim da CIDM, nº 2, Abril/Junho de 1982, pp. 26-38.
[6] TAVARES DA SILVA, Regina, Mulheres Portuguesas, Vidas e Obras celebradas- Vidas e Obras ignoradas, Ditos e Escritos, nº1, CIDM, p.76.
[7] Professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa, directora do Centro de Estudos sobre a Mulher: Faces de Eva e da respectiva revista realizou uma intervenção na sessão de abertura do seminário evocativo do I Congresso Feminista e da Educação, Fundação Calouste Gulbenkian, 4 de Maio de 2004.
[8] Doutorada em Sociologia da Educação, presidente da APEM- Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres fez uma das comunicações de abertura do seminário evocativo centrando-se sobre a Educação um dos temas fundamentais do Congresso de 1924.
[9] Trabalho elaborado no âmbito do mestrado de História Contemporânea da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, 2000: "O 1º Congresso Feminista e da Educação de 1924".
[10] Mestrando em Estudos sobre as Mulheres, apresentou no seminário uma comunicação sobre "Adelaide Cabete - uma professora feminista" baseada na sua tese de mestrado na Universidade Aberta
[11] GUIMARÃES, Elina, "A História do Feminismo em Portugal," in Elina Guimarães-Movimento Feminista, CML, 2002.
[12] Mestranda em Estudos sobre as Mulheres, apresentou comunicação baseada na sua tese de mestrado na Universidade Aberta.
[13] Do resumo apresentado por Natividade Monteiro e que constou das pastas do seminário evocativo.
[14] Maria Antónia Fiadeiro é Mestre em Estudos sobre as Mulheres na Universidade Aberta e publicou como resultado da sua tese: "Maria Lamas- biografia", Lisboa, Quetzal, 2003. Apresentou uma comunicação sobre "Maria Lamas, jornalista. feminista, uma intelectual portuguesa do século XX".
[15] Do resumo apresentado e que constou das pastas do seminário.
[16] Fernanda Rilho está a elaborar, na Universidade Aberta, uma tese de mestrado sobre Elina Guimarães e Maria Antónia Palla foi a autora do filme.
[17] Estes artigos foram publicados em 2002, numa brochura da Câmara Municipal de Lisboa, intitulada "Elina Guimarães - movimento feminista", no âmbito do projecto "Mulheres século XX: 101 livros", dinamizado por Maria Antónia Fiadeiro.
[18] Investigadora na área de Estudos sobre as Mulheres, foi presidente da CIDM - Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres entre 1992 e 1996.
[19] Irene Pimentel é Mestre em História Contemporânea e investigadora do Instituto de História Contemporânea; está a preparar o seu doutoramento com o tema PIDE/DGS- 1945/1974. A sua comunicação no seminário foi sobre "O enquadramento histórico do feminismo no Estado Novo".
[20] Do resumo apresentado nas pastas do seminário.
[21] Doutoranda em sociologia política no ISCTE fez o mestrado com o tema : "Mulheres em tempos sombrios - oposição feminina ao Estado Novo", publicada pelo ICS em 2002. Colaborou no seminário com uma comunicação sobre "Oposição feminina (?), oposição feminista (?) ao Estado Novo".
[22] Maria Isabel Barreno não conseguiu estar presente por se ter deslocado a Paris nessa altura.
[23] Teresa Joaquim é professora na Universidade Aberta e coordenadora do Mestrado em Estudos sobre as Mulheres. Fez parte da Comissão Organizadora do seminário.
[24] Texto produzido na base da síntese feita por Almerinda Bento relatora do painel III do seminário sobre "Feminismos na viragem do século".
[25] Investigadora do Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa.
[26] Professora na Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto fez uma comunicação sobre "A agência das mulheres e o sujeito feminista". Está a terminar o doutoramento em Ciências da Educação.
[27] Professora na Universidade Lusófona, investigadora na área de história das mulheres.
[28] Mestra em Estudos sobre as Mulheres na Universidade Aberta com uma tese nesta área.
[29] Mestra em Sexologia pela Universidade Lusófona com tese de mestrado relacionada com o tema.
[30] Elisabete Brasil, Alexandra Dourado, Maria Bibas Pereira e Dina Nunes.
[31] Mestra em Estudos sobre as Mulheres a preparar doutoramento na área dos feminismos e da educação.
[32] Professora auxiliar do departamento de psicologia da Universidade do Minho.
[33] Professora associada da Universidade do Minho.
[34] Doutorada em Filosofia, professora na Universidade de Évora.
[35] Psicólogo social, investigador na área de estudos de género e teoria feminista, doutorando no ISCTE.
[36] Socióloga. Professora auxiliar da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.
[37] Professora catedrática no ISCTE e membro da Comissão Organizadora do seminário evocativos do I Congresso Feminista e da Educação.
[38] Comissão Organizadora do seminário: APEM - Associação Portuguesa de Estudos sobre as Mulheres, - Associação Portuguesa de Investigação Histórica sobre as Mulheres, Associação Portuguesa de Mulheres Juristas, Associação Portuguesa Mulheres e Desporto, Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais-Universidade Aberta, Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Centro de Estudos sobre a Mulher: Faces de Eva, Universidade Nova de Lisboa, GRAAL, ISCTE, Mestrado em Estudos sobre as Mulheres da Universidade Aberta, Núcleo de Estudos História das Mulheres da Universidade de Évora, Estudos de Género da Universidade do Minho, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, UMAR - União de Mulheres Alternativa e Resposta.
[39] PINTASILGO, Maria de Lourdes, Os Novos Feminismos, Lisboa, Moraes Editores, 1980, p.23
[40] Texto de Maria João Seixas no Público de 11 de Julho de 2004.