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O mal-estar da Universidade

Esta é a realidade de toda uma geração: a precarização dos Assistentes Convidados, dos Bolseiros, dos Investigadores. Aliciados pelas promessas dos ganhos futuros, iludem-se continuamente enquanto lubrificam as engrenagens da sua própria máquina de exploração. Por Pedro Levi Bismarck, Arquiteto e Docente Precário na Universidade do Porto

Num encontro de investigadores, promovido pelo centro de estudos a que pertenço (CEAU - FAUP), foi pedido que apresentássemos o conjunto dos nossos interesses e projectos de investigação. A este enunciado contrapus uma pergunta que visava interrogar as condições materiais e objectivas capazes de tornarem possíveis esses tais interesses e projectos de investigação. O carácter aparentemente inoportuno desta pergunta (como foi, aliás, apontado no dito encontro) é, na verdade, a sua oportunidade, porque ela dá conta, uma e outra vez, de um lugar invisível dentro da Universidade: o lugar daqueles que não têm lugar. Um lugar que é, hoje, uma ampla fractura que divide a Universidade e, simultaneamente, anuncia a Universidade do futuro. Quem não percebeu o impacto e a generalização da precariedade no funcionamento de uma Universidade cada vez mais desigual, ainda não percebeu nada.

Durante quatro anos fui Assistente Convidado na FAUP com um contrato a tempo parcial – como tantos outros docentes – com percentagens entre os 17% e os 21% e remunerações que variaram entre os 266€ e os 291€. Esta fortuna correspondia a três horas lectivas por semana, que incluíam a preparação de aulas e o acompanhamento de trabalhos, para além de todo um outro conjunto de tarefas. Três dias por semana eram geralmente dedicados a actividades lectivas. Posso dizer que se seguisse à risca os termos do contrato, jamais poderia ter exercido de forma competente a minha actividade docente.

A não renovação do contrato foi comunicada por carta sem qualquer contacto pessoal prévio. Quando inquiri os serviços da Faculdade sobre o direito à indemnização, foi-me avisado que isso não constava do contrato. E, no entanto, esta é uma obrigatoriedade definida por lei. Esta posição é grave, mas é apenas natural, porque os contratos a tempo parcial foram considerados ilegais pelo próprio MCTES, devido à fórmula de cálculo das percentagens de serviço. Devo, aliás, referir que é precisamente esta contabilidade das percentagens que me exclui de qualquer direito a um subsídio de desemprego, por não cumprir o número mínimo de horas de trabalho exigidas pela Segurança Social. Concluindo: quatro anos de docência numa instituição celebrada da UP, a receber 279€ mensais, sem direito a subsídio de desemprego e (aparentemente) sem indemnização.
Mas esta é a realidade de toda uma geração: a precarização dos Assistentes Convidados, dos Bolseiros, dos Investigadores. Aliciados pelas promessas dos ganhos futuros, iludem-se continuamente enquanto lubrificam as engrenagens da sua própria máquina de exploração, incorporando os mandamentos da nova Universidade Neoliberal em formato empresa: a competição, a produtividade, a inovação, o sentido de oportunidade para farejar o dinheiro aí onde ele nunca está. Estes são um imenso exército de reserva, sempre pronto a responder às necessidades e aos caprichos das Universidades: docentes contratados e dispensados ano após ano; investigadores que acabam a dar aulas gratuitamente; disparidade salarial gigantesca entre docentes que dão o mesmo número de horas e a mesma cadeira. Exige-se doutoramento aos Assistentes Convidados, mas sem oferecer qualquer estabilidade – há pessoas que pagaram mais em propinas de doutoramento do que receberam da Universidade em ordenados.
No caso específico da instituição que conheço, alguém há-de fazer o bestiário das medidas que se tomaram em nome da sustentabilidade financeira e que não fizeram mais do que a conduzir à penúria moral e intelectual. A história desta Faculdade é, aliás, o desperdício e a desvalorização das mentes mais brilhantes que já tive a oportunidade de conhecer.

A precariedade não é um momento passageiro, mas um modelo de relacionamento laboral e social em implementação. A promessa de uma vida empreendedora cheia de oportunidades maravilhosas acaba sempre em ansiedade, depressão e burnout. Estas são as doenças dos precários, como sabemos pelos inúmeros estudos realizados. À dificuldade natural de perseguir um projecto de investigação próprio, soma-se a ausência de estabilidade social, emocional e de futuro. A erosão do Estado Social é a erosão de uma geração que vive pior que os seus pais. E é a erosão da democracia enquanto promessa de ascensão social.

No entanto, a precariedade não traz apenas a desigualdade extrema para dentro da Universidade, ela reproduz um modelo cujo horizonte é a sua própria desqualificação. A autonomia da investigação não é senão uma miragem. Os critérios de avaliação da FCT exigem o retorno financeiro imediato dos projectos de investigação, tal como a Reitoria exige que as Faculdades recorram a receitas próprias e aos privados para garantir as condições básicas do seu funcionamento. A obsessão pelo financiamento privado não atravessa apenas a gestão corrente, ocupou de forma ambígua e problemática o ensino e a investigação: conferências e workshops realizados em nome de um conteúdo pedagógico ou científico revelam-se, frequentemente, acções de promoção de marcas. Iniciativas conduzidas cada vez mais à medida das oportunidades que surgem do que projectos consistentes. No entanto, a profissionalização da investigação corresponde à profissionalização de um ensino reduzido à aquisição de competências técnicas. As linguagens empresariais do empreendedorismo e do branding tomaram conta do quotidiano universitário, ao mesmo tempo que os processos de participação democrática foram depauperados. Os professores vendem produtos e os alunos são clientes, diz-se com orgulho, quando o que está em jogo é a sua mercantilização: os primeiros precarizados e os segundos endividados pelo peso da propina.
Os centros de investigação são laboratórios de experimentação de todos estes mecanismos de financiamento, de empresarialização e de proletarização absoluta de uma mão-de-obra altamente qualificada. A produção de conhecimento é uma indústria. O critério é a quantidade. As fraudes e a banalidade das acções multiplicam-se. É irónico e trágico ver a pinderiquice desses congressos, com catering gourmet e guarda-sóis na relva, contrastar com a precariedade que generalizam à sua volta, com a precariedade em que vivem os seus próprios organizadores.

Ora, chegamos tanto a um ponto de exaustão como de incompreensão mútua. Para nós, trata-se de uma questão de vida – uma vida que mereça a pena ser vivida. Enquanto que a indiferença do restante corpo docente não é senão o sintoma do fechamento progressivo do seu horizonte crítico: a aceitação tácita e silenciosa dos preceitos da Universidade Neoliberal é, afinal, a condição da sua própria sobrevivência.

A precariedade não é uma questão suplementar; é o corolário de toda uma desqualificação da Universidade. Aquilo que todos deveriam, por agora, já ter percebido é que o estrangulamento financeiro do Ensino Superior não é consequência da crise, mas um modo de governação. Governar através da crise significa: disseminar a exploração e a desigualdade na Universidade, privatizar os seus serviços e a sua dimensão pública, dirigi-la exclusivamente às necessidades do mercado e, finalmente, dissipar da Universidade toda a função crítica social que sempre lhe pertenceu. A Universidade não serve apenas para ensinar, nem para produzir conhecimento, mas tem uma função social fundamental enquanto espaço único a partir do qual se pode interpelar a sociedade. E é a dissolução desta condição que está em jogo e cuja aceitação, essa sim, terá um custo demasiado elevado.

 


Texto originalmente publicado no Público a 5 de outubro de 2019:
https://www.publico.pt/2019/10/05/sociedade/opiniao/malestar-universidad...

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Neste dossier:

Transformar a Academia

Transformar é a palavra de ordem para os temas deste dossier: Democratização do governo das instituições de Ensino Superior, combate à precariedade laboral, a luta anti-propinas, por mais financiamento público e uma Ação Social que não deixe ninguém de fora.  E a centralidade do conhecimento científico para enfrentar a crise que vivemos. Dossier organizado por Luís Monteiro.

O Ensino da Economia na Universidade portuguesa

O ensino da economia nas universidades portuguesas é acanhado, acrítico e desligado dos verdadeiros desafios que a disciplina se propõe a enfrentar. Por André Francisquinho, Estudante de Economia na UNL.

 

Somos todos bem-vindos (?)

Há barreiras enormes no acesso ao ensino superior para os alunos do ensino regular, quer pelo método de seleção, alojamento, propinas, despesas. Nos cursos profissionais, a situação não é diferente. Apenas 18% dos estudantes do ensino profissional prosseguem estudos para o Ensino Superior. Por Eduardo Couto, Ativista Estudantil e LGBTI+, estudante do Ensino Profissional
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Por uma gestão democrática do ensino superior

É precisamente a ausência de democracia e poder real nas mãos dos estudantes, que o sabem concentrado num sistema piramidal e em interesses alheios ao serviço público, que os tem afastado da participação. Por Eduardo Esteves, estudante de Direito na UP, e Pedro Moura, estudante de Ciência política na UM.

Saúde Mental no contexto universitário

Quando se é jovem e se está a começar uma vida como estudante do ensino superior, é-nos exigida a paz de espírito, o controle e a felicidade porque com a nossa idade ‘’ainda não existe experiência de vida suficiente para se estar mal”. No entanto, os números não mentem. Por Catarina Ferraz, ativista estudantil e social. Aluna do Ensino Superior.

 

Somos a voz adormecida que precisa de ser acordada

Se somos os mais preparados, então saibamos utilizar essa ferramenta para transbordar o papel do estudante enquanto agente passivo de um futuro mercado de trabalho explorador e excludente. Por António Soares, ativista estudantil na Universidade do Minho.

 

Sobre a gestão da Carreira Docente (concursos e progressão)

Talvez por tradição, a gestão de carreiras no Ensino Superior é notavelmente singular porque parece que estas instituições têm um procedimento que mais organização nenhuma tem em Portugal ou no estrangeiro. Por Rui Penha Pereira, Docente do Ensino Superior
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RJIES: tirar o esqueleto do armário

As instituições que adotaram o regime fundacional passaram a reger-se pelo direito privado em várias áreas, nomeadamente, na gestão financeira, patrimonial e do pessoal. A passagem a este regime revelou-se sinónimo de precarização das relações laborais de docentes, não-docentes e investigadores. Por Tomás Marques, estudante universitário e ativista estudantil.

 

Humanizar e Artestizar

As humanidades e artes continuam a ser os cursos a quem se pergunta o que fará da vida com isso. São áreas deficitárias que, enquanto se gasta dezenas de milhões para atrair (com cursos de gestão e afins) estudantes de países ricos, mantêm alunos de faculdades de Letras ou de Belas Artes a conviver com a degradação e até com a insalubridade. Por Pedro Celestino, Ativista Estudantil na Universidade de Lisboa

 

Para uma mudança do paradigma: o ensino superior a Nordeste

As instituições de ensino superior e as unidades de investigação desenvolvem as suas atividades recorrendo ao “exército” de bolseiros de investigação criado pela FCT que dá cobrimento ao já velho corpo docente que é, muitas vezes, um entrave à legalização da contratação dos recentes doutorados. Por Pedro Oliveira, Assistente convidado (precário) no Instituto Politécnico de Bragança.

A Universidade: do Elitismo à sua Democratização

Não podemos continuar a assumir, de uma forma indireta, que o aumento do número de alunos no Ensino Superior em Portugal vale por si só. É preciso saber, ao mesmo tempo, aumentar a qualidade desse Ensino. Por Catarina Rodrigues, estudante e ativista.

“Dura Praxis, Sed Praxis”

Desde o horrível caso do Meco, que a sociedade civil se debruçou sobre este fenómeno social com outros olhos. Mas o que é, ao certo, a praxe? Um grupo de estudantes? Uma “instituição” académica? Uma seita? Uma tradição? Por Miguel Martins, ativista social e estudantil. Estudante do Ensino Superior
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Esta é a realidade de toda uma geração: a precarização dos Assistentes Convidados, dos Bolseiros, dos Investigadores. Aliciados pelas promessas dos ganhos futuros, iludem-se continuamente enquanto lubrificam as engrenagens da sua própria máquina de exploração. Por Pedro Levi Bismarck, Arquiteto e Docente Precário na Universidade do Porto

 

A Universidade em tempo de crise: democracia precisa-se!

A entrada em vigor do RJIES traduziu-se em perda de autonomia institucional, diminuição da participação democrática nas decisões e precariedade nas relações laborais de docentes, investigadores e outros trabalhadores.  Por Ernesto Costa, Professor Catedrático da Universidade de Coimbra

 

O que é que o COVID-19 nos ensinou sobre a Ciência?

Depois desta pandemia passar, tem de ser pensada a criação de um programa de literacia cientifica. Não precisamos todos de perceber a fundo a investigação toda que se faz, deixemos isso aos investigadores profissionais. Mas seremos um país melhor se toda a gente perceber conceitos básicos de Ciência. Por Ana Isabel Silva, Investigadora do i3s e Ativista contra a Precariedade

 

A politização da mentira

Apenas com a informação mais atual, trazida pelas pessoas mais capazes para a fornecer, que já debateram, analisaram e trabalharam entre elas os dados apresentados, é que podemos decidir da melhor forma como efectivamente deve estar estruturada e organizada a nossa realidade. Por Rodrigo Afonso Silva, ativista estudantil e membro da Greve Climática Estudantil

 

Desigualdade de género no Ensino Superior

Apesar de as mulheres, no geral, serem mais graduadas que os homens – existem mais mulheres licenciadas, mestres ou doutoradas do que homens - , são ainda quem ganha menos e quem tem menos acesso a posições de liderança dentro e fora das Instituições de Ensino Superior. Por Leonor Rosas, estudante universitária, ativista estudantil e feminista.

 

O Ensino Superior Politécnico em Portugal

Com o passar do tempo o ensino superior politécnico e o ensino universitário sofreram uma aproximação em algumas áreas científicas que se materializou no ministrar de licenciaturas de caráter semelhante. Mas esta aproximação não resultou numa uniformização ao nível do ensino e da carreira docente. Por Rui Capelo, estudante do Instituro Politécnico de Setúbal.

O (Sub)Financiamento do Ensino Superior e a Propina

Devido ao subfinanciamento crónico do Ensino Superior, houve um aumento cada vez maior do peso das propinas no financiamento das IES. Por consequência, apesar de a Propina poder variar entre o valor mínimo e máximo, tendo as IES autonomia nesta decisão, o valor fixado é sempre muito próximo do máximo, de forma a contrapor o subfinanciamento. Por Ana Isabel Francisco, Ativista Estudantil na FCT UNL.

 

O mantra da “Autonomia Responsável”

O confinamento ou o Estado de Emergência não podem servir de pretexto para comprimir a fraca vivência democrática que o RJIES trouxe ao Ensino Superior. Por Luís Monteiro, Museólogo e Deputado do Bloco de Esquerda.

O regresso à anormalidade

A projetificação da ciência é a consequência direta da construção de um modelo que desconsidera a segurança laboral e que, por isso mesmo, se torna desumano e ineficaz. Esse modelo tem sido materialmente estimulado pelas instituições financiadoras em Portugal e na União Europeia. Por Miguel Cardina, Historiador e Investigador do CES-UC.

A Ciência Desconfinada

Como vamos “desconfinar” a ciência? Volta para o seu cantinho semi-escondido? Continuará ser um sector cronicamente subfinanciado? Continuará a ser a campeã da precariedade? Ou terá finalmente o reconhecimento que merece? Por Teresa Summavielle, Investigadora do i3S.